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A política externa: perspectivas de mudança

É da praxe política que governos em início de mandato busquem ações que, de pronto, estabeleçam linhas de separação para com seus antecessores. Assim, pela diferenciação, busca- se construir uma identidade própria que servirá de base do discurso político instrumentalizado pelo governo em favor de sua legitimação e apoio social. Esse fenômeno é perceptível mesmo quando a sucessão se dá dentro de um mesmo espaço político e, evidentemente, torna-se ainda mais expressiva quando é uma força de oposição que assume o poder.

No caso argentino, essa tendência assume contornos mais vee- mentes. Fruto da própria dinâmica política do país, novos governos quase sempre se apresentam à sociedade sob uma prédica de refun- dação. Os graus efetivos de mudança, porém, tendem a ser muito menos profundos do que anunciam seus proponentes, e costumam refletir mais a necessidade de legitimação social diante de medidas drásticas do que necessariamente as demandas da cidadania.

A política externa não apenas está inserida nessa lógica como costuma ser uma das agendas nas quais as marcas distintivas costu- mam ser aplicadas com maior ênfase. Dois fatores favorecem essa situação. O primeiro, relativamente comum na América Latina, é o fato de a política externa não estar frequentemente submetida ao escrutínio popular. O segundo está relacionado a uma típica vincu- lação de caráter acessório que a política externa assume em relação à agenda econômica do país. Como as políticas concebidas nessa área tendem a apresentar diferenças pronunciadas em função da orientação de um governo, a política externa, por acompanhar essa tendência, é favorecida pelo fator anteriormente apontado10.

10 Um exemplo claro pode ser percebido acareando as políticas externas dos governos

de Carlos Menem (1989-1999) e de Néstor Kirchner (2003-2007)/Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015). No primeiro caso, a demanda por aval dos Estados Unidos às políticas de desregulamentação do mercado e privatizações, essencial para o êxito do Plano de Conversibilidade, conduziu a uma política de alinhamento a Washington que ficaria simbolizada na expressão “relações carnais”. No caso do kirchnerismo, a tentativa de recuperação econômica por meio de um modelo que pretendia incrementar

Em relação ao governo de Mauricio Macri, porém, as expec- tativas de mudanças na política externa não eram fruto apenas de um movimento já esperado quando uma força oposicionista assume o poder, mas se baseava também em elementos bastante concretos apresentados durante a campanha. Sobre esse aspecto, é importante considerar que foi Daniel Scioli, e não Macri, quem introduziu o elemento exterior com mais destaque na campanha, cumprindo uma intensa agenda internacional11 e buscando apoio de líderes estrangeiros.

Macri, por seu turno, não concentrou esforços importantes em uma agenda internacional, nem tampouco teve esse tema figurando com destaque em suas manifestações públicas. A baixa ressonância do tema na agenda na campanha não significava falta de posicio- namentos, que foram apresentados com relativa frequência ainda que dispersa. Com efeito, a política externa era uma das agendas de governo sobre a qual se previa maior ajuste em caso de vitória da oposição, justamente por ter sido um dos alvos mais frequentes de críticas aos governos kirchneristas.

A posição de que era necessário rever amplamente a política externa foi expressa por Mauricio Macri. Em uma entrevista ao jor- nalista Andrés Oppenheimer – ele próprio um crítico notório do kirchnerismo – ao ser perguntado o que mudaria em política exter- na no caso de ser eleito, Macri respondeu com um sintomático “eu diria que tudo” (Oppenheimer, 2015).

Igualmente categórica era a forma como a seção sobre relações internacionais e política de defesa foi aberta no programa de gover-

a presença da indústria na composição do PIB pressionava por maior autonomia diante dos centros tradicionais de poder mundial, que direcionou a política externa tanto para a América Latina como para polos alternativos de poder, como China e Rússia.

11 O candidato peronista promoveu atos com importantes lideranças políticas sul-

americanas, como os ex-presidentes do Brasil e Uruguai, Lula da Silva e José ‘Pepe’ Mujica, além de ter viajado a Cuba para se encontrar com Fidel Castro e ter recebido apoio explícito dos presidentes de Bolívia e Venezuela. Scioli viajou ainda ao Chile e ao Brasil, encontrando-se com as presidentes Michele Bachelet e Dilma Rousseff. Tais atos, porém, estiveram voltados mais à militância peronista do que propriamente a um movimento significativo dentro do esquema de campanha, considerando o baixo impacto que o apoio de líderes estrangeiros tem no processo eleitoral argentino.

no da coalizão Cambiemos, no qual se afirmava que “nosso governo não verá o mundo exterior como um inimigo, mas sim como uma oportunidade para o desenvolvimento do potencial argentino” (Cambiemos, 2015, s/p. Grifos do original).

O programa da coligação Cambiemos apresentava um diag- nóstico segundo o qual havia um potencial não explorado na inserção internacional do país. Ao afirmar que “na última déca- da a Argentina perdeu gravitação e credibilidade regional e glo- bal” (Cambiemos, 2015, s/p) a plataforma eleitoral repercutia uma crítica frequente à diplomacia kirchnerista, atribuindo-lhe responsabilidade por um suposto isolamento do país (Cf. De La Balze, 2010).

Na sequência, as prioridades da política externa, em caso de vitória da coalizão, eram apresentadas, conforme o trecho abaixo:

[...] a Argentina deve começar resolvendo temas internos, incluindo as travas aos movimentos financeiros e comerciais que lhe causaram sentenças desfavoráveis na OMC. [...] deve- rá normalizar seus vínculos com seus vizinhos, avançando em agendas positivas com Uruguai, Chile, Bolívia, Paraguai e Brasil, e se deve revisar com os países integrantes a situação do Mercosul, para que potencie o desenvolvimento da região. Em terceiro lugar, deverá equilibrar suas relações internacio- nais que, nos últimos anos, transformaram-se muitas vezes por meio de acordos secretos ou com cláusulas secretas que vão em detrimento de uma diplomacia sustentável e transparente. A Argentina pode e deve relançar agendas positivas, buscan- do realizar seu aporte aos grandes temas das agendas regional e global: desenvolvimento sustentável, luta contra o terroris- mo, não-proliferação nuclear, questões humanitárias e direitos humanos, aquecimento global, avanço da democracia e das liberdades (Cambiemos, 2015, s/p. Tradução nossa).

Essas posições justavam-se aos marcos mais gerais das críti- cas feitas à política externa dos governos kirchneristas. Tais crí- ticas podem ser sumarizadas em dois eixos principais. O primei- ro deles é uma suposta “ideologização” da política exterior. Esse aspecto corresponderia a uma predominância das concepções de

mundo e afinidades políticas do governo sobre o cálculo racio- nal do interesse nacional na tomada de decisão em política exter- na. Nesse sentido é que, por exemplo, teriam sido privilegiados os vínculos com a Venezuela e preterida uma relação mais densa com os Estados Unidos.

Esse conjunto de preferências teria levado àquilo que é o segundo foco de críticas: o entendimento de que o legado kirch- nerista em política externa é o isolamento internacional do país. Segundo essa leitura – de aberta inspiração neoconservadora do Realismo Periférico12 – o custo de uma política externa de cor- te autônomo é o afastamento dos principais centros de poder do mundo, que leva ao isolamento13.

A ênfase em que não se veria o exterior como inimigo deno- ta uma diferença capital com os governos Kirchner e Fernández de Kirchner, cuja política externa foi marcada pela posição crítica em relação ao establishment financeiro internacional, organismos internacionais e crédito e à política externa das grandes potências. Tratava-se de inserir a política externa no marco geral de “união” que propunha Macri, buscando-se contrapor ao confronto – que foi a pedra de toque dos governos kirchneristas.

12 Termo em referência à proposta de política exterior formulada pelo filósofo e

cientista político Carlos Escudé a partir de sua crítica à Teoria Neorrealista da Política Internacional.

13 Objetivamente, existe pouco respaldo para afirmar que a Argentina restou em uma

postura de isolamento internacional como fruto da política exterior kirchneristas. O país está presente em todos os espaços que são relevantes para seus interesses. Participa de fóruns multilaterais, ocupou em duas ocasiões uma vaga não permanente no Conselho de Segurança da ONU, desempenhou um papel importante nos processos políticos sul-americanos, é membro ativo do G-20 e das negociações agrícolas na OMC. Que a voz da Argentina seja cada vez menos ouvida em questões importantes da política internacional é algo a ser creditado mais à perda de poder do que a malogro da política externa dos governos Kirchner. A adoção de uma política de corte mais autonomista, entretanto, levou a um afastamento do país em relação a polos de poder do ocidente, notadamente os Estados Unidos e, em menor grau, da Europa. Desse continente, o esfriamento das relações com Espanha e Itália – países tradicionais no arco das relações exteriores da Argentina – pode ser destacado. Nesse sentido, o que os autores chamam de isolacionismo estaria mais bem definido como um afastamento de países e espaços de poder que seriam preferidos em contextos nos quais a política externa estivesse sujeita a um conjunto distinto de interesses.

Frequentemente, essas posições foram tomadas como anties- tadunidenses e a frieza que marcou as relações com os Estados Unidos desde a Cúpula das Américas, em 2005, reforçou essa pecha. Assim foi apontado pelo presidente dos EUA, Barack Obama, que em entrevista à rede CNN afirmou que considerava as políticas de Cristina Kirchner como “sistematicamente antiestadu- nidenses” (La Nación, 2016).

Esses posicionamentos aparecem na forma de contraponto pro- gramático num documento produzido por um grupo de intelectuais e políticos, autointitulado “Grupo Consenso”, aglutinado no Consejo

Argentino de Relaciones Internacionales (Cari). O texto divulgado pelo

grupo, que contou com membros do PRO e da comunidade epis- têmica do Realismo Periférico, condensa uma proposta de política externa baseada essencialmente em inserção comercial.

Assim, faz-se a defesa da revitalização do Mercosul em marcos comerciais e de regionalismo aberto, bem como da aproximação com países de economia mais aberta e acordos multilaterais de comércio. Do ponto de vista da segurança internacional, o texto prescreve a adesão às agendas quem vêm sendo patrocinadas pelos Estados Unidos nos últimos anos, sobretudo no combate ao narco- tráfico e ao terrorismo internacional (Grupo Consenso, 2015).

Embora não tenha sido um documento produzido pelo PRO ou um de seus aliados, as afinidades entre o texto do Grupo Consenso são explicitas. Observe-se, por exemplo, que o subtítulo do docu- mento do Grupo é “seremos fora o que sejamos dentro”, enquanto o trecho dedicado à política externa, anteriormente citado, começa justamente com a defesa de solução de questões internas.

Não podemos inferir uma conexão linear e direta entre as for- mulações desses dois documentos, mas é lícito notar que as posi- ções da aliança Cambiemos são representativas das demandas por correção de rumos nas relações exteriores do país, seja no arco de parcerias preferenciais, ou ainda nas posições ligadas à política eco- nômica. Esses interesses, longe de constituírem um dado novo no debate sobre a inserção internacional argentina, representam uma agenda conhecida, característica dos interesses dos setores mais dependentes da economia.

Considerando os elementos apresentados na seção anterior, percebe-se que as expectativas de mudança estavam concentradas em três aspectos principais: ajuste da pauta econômico-comercial em direção a maior liberalização; afastamento político dos países do chamado “eixo bolivariano”, sobretudo a Venezuela; e retomada de vínculos políticos mais fluidos com parceiros tradicionais, como França, Espanha e Estados Unidos. Um quarto elemento é a revi- são das relações com China e Rússia, tacitamente sublinhado na referência às “cláusulas secretas”. Em relação ao Brasil, tratava-se de ajustar a relação em marcos de “sinceridade” – o que remetia à revisão de posturas protecionistas no âmbito do Mercosul.

Do ponto de vista da política regional o tema de maior relevo é, sem dúvida, a questão envolvendo a Venezuela. Desde o início da campanha, Macri e a coligação que encabeçava deixaram claras as críticas ao governo de Nicolás Maduro, sobretudo no que diz res- peito aos direitos humanos. Em várias ocasiões, o então candidato reafirmou esse ponto, como quando disse que “em caso de ser elei- to presidente, vou pedir, dados os abusos havidos na Venezuela, os presos políticos existentes e a participação de militares no governo, que se exerça a cláusula democrática, suspendendo a Venezuela” (TeleSUR, 2015).