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Parte da literatura sobre o risco nas RI discute como certos atores, especialmente os EUA e a Otan, passaram a incorporar a administração de risco em suas agendas de segurança e doutrinas estratégicas. Heng (2006a), por exemplo, explora a recente defini- ção da segurança nacional dos EUA em termos de riscos e desa- fios à segurança e, portanto, à própria racionalidade ou justificativa de empreender esforços militares em Kosovo (1999), Afeganistão (2001) e Iraque (2003). Para o autor, nos três casos preponderou a mesma premissa estratégica de atuar preventivamente diante de riscos globais à segurança, evitando cenários catastróficos, respecti- vamente a instabilidade regional europeia, novos ataques terroristas a partir de santuários (safe havens) no Afeganistão ou a posse de armas de destruição em massa pelo regime de Saddam Hussein.

Heng (2006a) aponta que a transformação da guerra em termos de administração de risco (riskisation of warfare) tem início ao final

da Guerra Fria, quando o cenário estratégico passa a ser descrito como incerto e imprevisível. O engajamento militar nas últimas décadas foi direcionado a riscos pré-existentes, mas agravados com a globalização. Os elementos de probabilidades e consequências são cada vez mais importantes para os tomadores de decisão em maté- ria de segurança, o que representa um rompimento com a avalia- ção clássica que traduz ameaças em termos de capacidades bélicas e intenções hostis. “Riscos mal definidos estão se tornando a princi- pal chave conceitual da segurança ocidental” (Heng, 2006a, p.24).

Rasmussen (2006) argumenta, ainda, que os padrões pelos quais a segurança é mensurada mudaram, ressaltando a diferença conceitual entre ameaça e risco. A ameaça se refere a um perigo precisamente identificado e medido em termos da capacidade do inimigo de realizar uma intenção hostil, numa relação racional entre meios e fins. O risco, por sua vez, é a definição de um cenário futuro em que o perigo pode se materializar ou não. Sua essência é a incerteza: “[...] a probabilidade de eventual dano, avaliado em termos de frequência de ocorrência, gravidade de perdas e vulnera- bilidade” (Heng; McDonagh, 2009, p.26).

Diante do risco, não se pode atingir a segurança completa (como a eliminação da ameaça de um país invasor), mas apenas administrá-lo e investir em sua prevenção. Para Rasmussen (2006, p.2-3), a emergência da sociedade de risco traz profundas mudan- ças na forma como os governos ocidentais buscam garantir sua segurança em termos de tecnologias, doutrinas e agentes. A formu- lação estratégica olha menos para o que já aconteceu (padrões do passado) do que para aquilo que pode acontecer (cenários futuros).

Os riscos definidos pelas lideranças ocidentais são bastante variados: instabilidades regionais, crises humanitárias, regimes hostis, proliferação de armas de destruição em massa, degradação ambiental, fluxos migratórios ilegais, crime organizado (tráfico de drogas, armas e pessoas), terrorismo, entre outros. Esses riscos são transnacionais e não podem ser completamente delimitados no tempo-espaço. Para administrá-los é necessária uma estratégia de antecipação ativa, que significa agir preventivamente para evitar consequências adversas (ainda que diante de riscos mal defini-

dos e grandes incertezas). Conforme já apontado, essa lógica traz uma ruptura com o padrão bipolar, em que a estratégia era rea- tiva (num contexto de potências rivais e corrida armamentista) e tinha como principal instrumento a deterrência e a manutenção do equilíbrio de poder. Quando o risco predomina, conforma-se um clima geral de ansiedade que favorece “[...] uma abordagem antecipatória e mesmo distópica para administrar todo tipo de riscos, variando de crime à segurança alimentar e meio ambiente” (Heng, 2006b, p.73).

Não foi o cálculo de capacidade e intenções que levou às guerras no Afeganistão e Iraque, mas a probabilidade de cenários pessimis- tas (worst-case scenarios) e consequências catastróficas, na tentativa de evitar a repetição de grandes catástrofes como os ataques terro- ristas de 11 de setembro. (Heng, 2006a, p.147) Lideranças ociden- tais, com destaque para George W. Bush e Tony Blair, defenderam repetidamente a lógica de que “os riscos da inação superam os ris- cos de agir imediatamente”.

Nesse sentido, a segurança traz uma racionalidade reflexiva: os agentes se referem reflexivamente às suas ações/inações em ter- mos de potenciais consequências adversas (antes mesmo de sua materialização). Heng argumenta que essa abordagem reflexiva estava presente na postura das potências ocidentais desde o final da Guerra Fria, a exemplo da justificativa de intervir em Kosovo com base num cenário de risco. O então presidente norte-ameri- cano Bill Clinton (1999) afirmou: “os perigos de agir agora são superados pelos riscos de não agir”. O mesmo vale para o “des- conhecido conhecido” (known unkowns) de Rumsfeld quanto ao Iraque. Conforme sumariza Heng (2006b, p.82), “O 11 de setembro apenas consolidou uma tendência proativa na política militar reflexiva no Ocidente”.

Clapton (2011) destaca, todavia, que é preciso considerar tam- bém os atores que resistiram ao processo de “descrição de riscos” (riskization) e criticaram, por exemplo, a ação preventiva americana no Iraque a partir da personificação do risco em Saddam Hussein e do cenário hipotético em que o Iraque possuísse armas de destrui- ção em massa ou que estivesse colaborando com redes terroristas (a

Al Qaeda em especial). Nas palavras do então Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld: “ausência de evidência não é evidên- cia de ausência”. A própria indefinição do risco foi a justificati- va para a ação militar, o que tornou o caso iraquiano um grande exemplo de falso positivo (riscos superestimados), já que as suspeitas que levaram à intervenção preventiva foram refutadas pela ausência de um projeto nuclear sob o comando de Saddam Hussein.

De fato, as controvérsias bem documentadas em diversos paí- ses na preparação para a invasão de março de 2003, bem como a discordância entre o Pentágono e o Departamento de Estado nos Estados Unidos, sugerem que havia um nível substancial de resistência à descrição de riscos e particularmente aos méto- dos de administração de riscos advogados pelos proponentes da ação militar contra o Iraque (Clapton, 2011, p.286).

Ao definir as guerras contemporâneas como administração de riscos, Heng destaca também seu caráter minimalista. A guerra se tornou mais modesta em seus objetivos, que não focam em algo positivo (por exemplo, a paz ou justiça), mas na tentativa de evitar o pior. Não há mais a perspectiva de segurança completa, vitória sobre o inimigo ou soluções perfeitas, “[...] não-eventos e sugestões vagas sobre simplesmente evitar danos foram, como previsto, crité- rios centrais para o sucesso [militar], em vez de ‘soluções perfeitas’ inequívocas e cerimônias formais normalmente identificadas com o final das guerras” (Heng, 2006a, p.149). Se a administração do risco é o objetivo da guerra, essa se torna, portanto, dilatada no tempo. Uma vez que a reprodução de riscos é constante, a guer- ra como gestão de riscos é infinita: “[...] a administração de riscos é um processo contínuo e paciente, que deveria ser tão rotineiro quanto possível” (Heng, 2006a, p.14).

No processo de administração de riscos, a territorialização e a personificação dos mesmos ajudaram a materializá-los e legitimar as reações dos “administradores de risco”. Assim, a ação preven- tiva foi descrita como forma de evitar o sofrimento de novas víti- mas nas mãos de Milosevic, Bin Laden e Saddam Hussein, inter- vindo especificamente em Kosovo, Afeganistão e Iraque (Heng,

2006a, p.147). Para Clapton (2014), trata-se da necessidade de delimitar “zonas de risco” (risky zones) ou “estados de risco” (risky

states), dando contornos mais palpáveis ao risco. Esse processo

aparece na agenda das potências ocidentais com os conceitos de Estados frágeis ou falidos que apresentam problemas de gover- nança, e seriam alvo de atores ilícitos (crime organizado ou terro- ristas), além de incapazes de lidar com desafios advindos de con- flitos internos, surtos de doenças ou mesmo desastres ambientais. Sem a devida capacidade institucional, esses Estados não conse- guiriam impor a lei, monitorar suas fronteiras ou garantir os ser- viços essenciais aos seus cidadãos.

Clapton argumenta que a definição da agenda de segurança em torno de risky states gera uma hierarquia no sistema interna- cional, pois coloca os Estados ocidentais como “administradores de risco” responsáveis por intervir nos locais onde a instabilida- de e a incerteza predominam. A revisão dos pressupostos centrais ao sistema westfaliano – igualdade soberana e não-intervenção – é essencial para a administração de riscos globais. A partir do momento que os Estados (frágeis) são considerados incapazes de exercer governança e conter os riscos em suas fronteiras, sua sobe- rania se torna contingente e esses se tornam objeto de interven- ção dos “administradores de risco”.

Essa hierarquia formada no sistema internacional revela tam- bém uma baixa tolerância à diversidade, já que modelos alternati- vos (aos ocidentais) de organização política, social e econômica são vistos com receio. Assim, a promoção de valores e instituições libe- rais funciona como instrumento de administração de risco. “[...] a segurança doméstica em países ocidentais depende cada vez mais do liberalismo e democracia no exterior” (Clapton, 2014, p. 51). O trecho da National Security Strategy dos EUA exemplifica:

No mundo de hoje, o caráter fundamental dos regimes impor- ta tanto quanto a distribuição de poder entre eles. O objetivo de nossa política é ajudar a criar um mundo de Estados demo- cráticos e bem governados que possam atender às necessidades de seus cidadãos e comportar-se de forma responsável no siste- ma internacional. Essa é a melhor forma de promover seguran- ça duradoura para o povo americano (NSS, 2006, p.1).

Os modernos sistemas de “intervenções liberalizantes” realiza- das pelas potências ocidentais funcionam como mecanismo pre- ventivo dentro da lógica de que o rompimento com prévias con- dições socioeconômicas e políticas em ambientes de risco poderia reduzir o apoio local ao radicalismo, ao terrorismo e à economia criminosa4: “[…] esses territórios que são potencialmente propícios à produção de riscos não limitados à segurança podem ser submeti- dos à ‘manipulação do ambiente’ por meio da promoção de valores e instituições da democracia liberal” (Clapton, 2014, p.55-56).

Segundo Duffield (2001), trata-se da percepção de que o sub- desenvolvimento se tornou perigoso: as atuais instabilidades do sis- tema internacional advêm do spillover de problemas internos em Estados descritos como frágeis, sem capacidade institucional para manter bons padrões de governança. O documento estratégico norte-americano sintetiza:

Quando os governos são incapazes de garantir as necessidades básicas de seus cidadãos e cumprir sua responsabilidade de garantir segurança dentro de suas fronteiras, as consequências geralmente são globais e podem ameaçar diretamente o povo americano. Para avançar nossa segurança comum, precisamos abordar os déficits políticos e econômicos subjacentes que promovem instabilidade, permitem a radicalização e o extre- mismo, e finalmente minam a capacidade dos governos de administrar as ameaças dentro de suas fronteiras e de serem parceiros na resposta a desafios comuns (NSS, 2010, p.26).

Esse enquadramento estratégico da chamada paz liberal supõe mecanismos de intervenção (que vão desde ajuda externa a inter- venções humanitárias ou de mudança de regime) para administrar as relações centro-periferia. O nexo segurança-desenvolvimento presente na agenda ocidental (de lideranças como Estados Unidos,

4 A narrativa da promoção da democracia por potências ocidentais não é uma

novidade. O que teria mudado, de acordo com os autores, é a justificativa e motivação para levar valores liberais ao mundo. Não se trata da supremacia dos valores em si, tampouco de questões altruístas (levar liberdade e prosperidade ao mundo), mas de um mecanismo utilitário e autointeressado de administração de riscos, funcionando como um mecanismo preventivo (Clapton, 2014, p.50).

Canadá, Reino Unido, além de organizações como Banco Mundial e OCDE)5 teria, assim, a função de conter os riscos ao sistema internacional: “[...] a ideia de que o subdesenvolvimento é perigoso e desestabilizador fornece uma justificativa para a vigilância e con- tínuo engajamento” (Duffield, 2001, p.7).

Nesse contexto, a administração de riscos depende de instru- mentos não-militares como a vigilância, diplomacia preventiva e a estratégia de “moldar o ambiente internacional” garantindo a esta- bilidade em regiões críticas, promovendo normas democráticas e de direitos humanos, minimizando a proliferação de armas de des- truição em massa, entre outros. A tentativa de moldar o ambiente foca na redução de riscos sistêmicos por meio da administração de condições de instabilidade e turbulência para reduzir as possibili- dades de danos futuros (por exemplo, por intermédio de zonas de exclusão aérea ou desmantelamento de santuários terroristas).