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As Múltiplas Arenas (Nested Games) e a racionalidade: uma possibilidade metodológica

No âmbito da Ciência Política, Tsebelis (1998) emprega um valioso esforço para explicar as decisões dos atores por meio da vertente da racionalidade, contribuindo para a literatura com sua teoria da lógica das Múltiplas Arenas. Ele trabalha com atores prin- cipalmente políticos, que detêm poder de decisão e/ou interesses em ambientes onde as decisões políticas e seu processo possuem grande importância. Para isso, o autor assume a premissa de que os atores agem seguindo a lógica da racionalidade e que cada uma de suas decisões é fundamentada nessa lógica.

O próprio Tsebelis (1998) considera que assumir que os ato- res são racionais é uma premissa válida, porém pode deixar espaço para o questionamento de até que ponto eles podem ser racionais. Primeiro é necessário observar que nas Ciências Sociais os atores, em última instância, são seres humanos. Não existem instituições ou organizações que atuem sozinhas, com uma lógica e comporta- mento separado da raiz humana. Aquilo que se considera um ator nas Ciências Sociais possui vontade humana, mesmo que se mani- feste de forma coletiva e seja constrangido, influenciado e/ou dire-

cionado por normas e regras. No limite, a fonte primária dos atores humanos e sociais está no elemento humano.

Assim, é preciso considerar que a racionalidade de um ator é condicionada pelas características e limites da vontade do ser humano. É importante ressaltar que o comportamento humano é produto da informação que o indivíduo recebe do mundo exterior, por meio de suas experiências pessoais; daí se encontra a exclusivi- dade do comportamento humano. Se cada ser humano (na con- dição de ator) possui uma infinidade de experiências individuais e diferentes das dos demais, então cada pessoa possui um comporta- mento diferente. A experiência e a informação, então, podem ser consideradas as fontes da heterogeneidade cultural do ser humano.

As Relações Internacionais nada mais são do que a escala máxi- ma dessa heterogeneidade de comportamentos. Grupos de pessoas que compartilham experiências similares, justamente por dividirem a convivência, possuem identificação de experiência, que leva à for- mação social de uma cultura coletiva comum. Em escala global, o que se tem são diferentes culturas (que dentro de si mesmas já são compostas por elementos variados), que interagem e se chocam, gerando as ditas relações internacionais.

Na esfera da Ciência Política (normalmente mais focada no ambiente doméstico) não é diferente, os atores são, em suas raízes, compostos pelo elemento humano, que por sua vez é marcado por sua informação e experiência individual. Atores coletivos (como organizações ou instituições, por exemplo) são um agrupamento de informação e experiências. As formas como esses agrupamentos se organizam variam e dependem, mas, no cerne, todos eles são base- ados nas informações e experiência que as pessoas que fazem ou fizeram parte dos mesmos possuíam.

Quando Tsebelis (1998) utiliza a racionalidade para abordar a Teoria das Múltiplas Arenas, ele reconhece a complexidade do comportamento humano, e delimita a racionalidade para explicar principalmente as decisões da esfera política, a partir da seguinte definição para a racionalidade:

No lugar do conceito de racionalidade como um modelo de comportamento humano, proponho o conceito da racionali- dade como um subconjunto de comportamento humano. A mudança de perspectiva é importante: não afirmo que a esco- lha racional pode explicar qualquer fenômeno e que não há lugar para outras explicações, mas sustento que a escolha racio- nal é uma abordagem melhor para situações em que a identi- dade e os objetivos dos atores são estabelecidos, e as regras da interação são precisas e conhecidas pelos atores em interação. À medida que os objetivos dos atores se tornam confusos, ou à medida que as regras de interação se tornam mais fluídas e imprecisas, as explicações de escolha racional irão tornar-se menos aplicáveis. (Tsebelis, 1998, p.45).

Sua proposta é a de transportar a teoria das Múltiplas Arenas do autor supracitado para o campo da análise de conjuntu- ra internacional – e que esse campo emprega uma variedade de ambientes de maior escala do que a que Tsebelis trabalha inicial- mente – é necessária, também, uma adaptação desse conceito de racionalidade para explicar variáveis que possam cair justamente no escopo dos atores com objetivos mais confusos e com intera- ções mais fluídas e imprecisas. Nesse sentido, o que se entende por racionalidade não se restringe somente a um simples cálcu- lo matemático por parte dos atores, mas sim a todo o contexto de informações e experiências únicas e limitadas que lhe permi- tem realizar esse cálculo e produzir ações racionais. Assim, ações racionais não se limitam a ações com resultados “ótimos”, mas sim abarcam toda e qualquer decisão e ação produto da condição humana em seus diversos e possíveis estados ou agrupamentos.

A decisão ou ação de um ator coletivo, como uma organização, por exemplo, possui uma racionalidade  que é composta: i) pela combinação dos interesses individuais dos participantes daquela organização; ii) pela informação coletiva que a organização dis- põe; iii) por como essa informação é distribuída na organização; iv) como ela é recebida pelos indivíduos com poder de decisão final e v) como todos esses diversos elementos se organizam nos limi- tes estruturais da organização. Essa complexa rede que compõe a

racionalidade de atores coletivos pode ser aplicada para institui- ções, empresas, grupos etc., sempre considerando as individualida- des da dinâmica de funcionamento interno desses atores. Também é importante ter em vista que a racionalidade não é puramente um processo interno. As experiências e informações são exógenas aos atores e a forma como elas são assimiladas por eles afeta os mes- mos, com base em seu funcionamento interno.

É relevante ainda a distinção do que seria o comportamento racional para o ator observado e como o observador pode se guiar pela racionalidade para compreender suas decisões, mesmo nas situações em que Tsebelis (1998) considera que a escolha racional pode ser menos aplicável. Propomos que para o observador com- preender as ações e decisões de atores influenciadas por elemen- tos que enfraquecem a perspectiva da escolha racional e que, por assim dizer, chamamos de “irracionais”, se deve racionalizar os pos- síveis resultados aleatórios e/ou imprevisíveis, tornando o resultado incerto como uma variável presente. Por exemplo, se uma pessoa possui alguma anormalidade comportamental, consequência de uma patologia que a faça divergir do comportamento humano considerado “normal” e agir com total aleatoriedade, ao estar infor- mado sobre essas condições individuais da pessoa, o observador consegue analisar seu comportamento como racional, uma vez que está consciente que ela produzirá ações aleatórias divergentes da lógica comum. Isso não significa que é possível prever o compor- tamento “irracional”, mas sim que é possível racionalizá-lo, tendo em consideração que determinada variável com tal comportamento produzirá resultados aleatórios e, com base nisso, computar a pos- sibilidade da aleatoriedade na análise lógica do pesquisador.

Todavia, neste estudo não se pretende trabalhar necessariamen- te com elementos considerados irracionais, mas sim encontrar uma forma de mapear qualquer tipo de decisão/ação de atores, compre- endendo sua lógica de racionalidade individual e como ela afeta a conjuntura geral. Logo, para mapear atores, a informação, as experiências e a forma como eles se organizam nas estruturas são elementos fundamentais para entender a racionalidade que orienta seu comportamento nos diferentes contextos.

Na teoria das Múltiplas Arenas de Tsebelis (1998), o contexto é dividido em diversas arenas, nas quais ocorrem disputas políticas entre interesses de diversos atores, sendo que o mesmo ator pode ter diversos interesses, e, portanto, participa de mais de uma are- na simultaneamente. Em uma instituição política como um parla- mento, diversos políticos votam em diversos temas que compõem toda a política do país. Cada um desses temas é uma arena; assim, para cada arena, os políticos defendem diferentes interesses. A raiz desses interesses se originaria nas prioridades do eleitorado que esses políticos representam ou em uma estratégia partidária, por exemplo. No entanto, a contribuição principal de Tsebelis (1998) é compreender como esses diversos interesses se organizam.

Um resultado totalmente ótimo seria que os políticos conse- guissem aprovar todos os seus interesses em todas as arenas, porém esse resultado não é somente ideal, como improvável, considerando que, para isso, os interesses de um ator só teriam que ganhar em todas suas arenas, derrotando interesses divergentes. É nesse ponto que se encontra o mérito da teoria de Tsebelis, no sentido de ajudar os pesquisadores a compreenderem seu objeto e até a verificarem se existem variáveis omissas em sua análise.

Considerando que o resultado totalmente ótimo é improvável e que os atores atuam em diversas arenas, o que acontece é um proces- so de barganha. Esse processo ocorre porque os diferentes interesses de um mesmo ator estão organizados em uma ordem hierárquica. Assim, visto a improbabilidade de alcançar um resultado ótimo ide- al, os atores se articulam para obter resultados subótimos, a partir de sua hierarquia de interesses. Nesse sentido, por meio do processo de barganha, os atores podem priorizar um interesse em detrimento de outro para garantir vitória em, pelo menos, uma arena.

Além disso, os atores possuem informações e experiências limi- tadas acerca das arenas em que participam, seja sobre o contexto ou sobre os demais atores e seus diversos interesses em outras are- nas. Como consequência, as decisões de quais interesses priorizar e como barganhar nunca serão “matematicamente perfeitas”. Por conseguinte, resultados subótimos também podem ser o resulta- do de decisões ruins ou equivocadas considerando a conjuntura

inteira. Isso só reforça a racionalidade desses resultados, visto que é racional que um ator tome uma má decisão caso ele tenha informa- ção limitada/incompleta ou até falsa sobre um tema crucial. O ator simplesmente agiu baseado em seus recursos e informações dispo- níveis, o que o levou a produzir um resultado negativo, conside- rando o contexto completo que ele desconhecia. O mesmo pode se aplicar para as experiências, já que um ator com fortes motivações ideológicas, por exemplo, pode vir a tomar decisões “irracionais”, mesmo que munido de informações completas. No entanto, por conta de suas experiências, esse ator foi condicionado a agir moti- vado pela ideologia, optando por decisões subótimas, ainda que seguindo os limites de sua racionalidade e motivações.

Tsebelis (1998) afirma que quando as decisões de um ator são irracionais e escapam de um sentido lógico, na verdade é o obser- vador que possui informações incompletas acerca dos fenômenos e atores que ele está analisando. Assim, o observador poderia estar deixando de levar em conta aspectos sobre os atores que não estão presentes em seu recorte de análise ou conexões importantes com outras arenas, que explicariam os resultados produzidos nos fenô- menos observados.

Na obra Jogos Ocultos, Tsebelis (1998) trabalha com um ambien- te político institucionalizado e, prioritariamente, com atores políti- cos. Por consequência, a elaboração da teoria das Múltiplas Arenas acontece dentro dos limites de instituições construídas sob regras formais. Nesse sentido, ele identifica dois tipos de jogos nos quais os atores se engajam por meio das arenas que participam:

1. Os jogos por resultados nas arenas, nos quais se busca obter um interesse priorizado, ou seja, prefere-se a vitória desse interesse em vez de outros existentes naquela mesma arena. 2. Os jogos pelas regras do jogo (o desenho institucional), nos

quais os atores barganham resultados por mudanças nas regras das arenas.

Esses dois tipos de jogos indicam a relação de barganha entre os atores. Enquanto um mesmo ator cede em determinada arena a

mudança de regras a favor de outro, este, por sua vez, cede algum resultado de interesse do primeiro em outra arena. A definição dos dois tipos de jogo é particularmente pertinente para a análise de jogos políticos em ambientes institucionalizados, visto que institui- ções pressupõem regras formais que ditam os limites das arenas e podem ser alvo de interesse de atores interessados em mudar a con- figuração dessas instituições a seu favor.