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O risco na agenda internacional contemporânea

Desde o fim da Guerra Fria, as principais lideranças ocidentais e organizações internacionais demonstram crescente preocupação com a administração de riscos, num contexto global definido por “novos problemas de segurança”. Instabilidades domésticas advin- das de conflitos civis, desastres ambientais, epidemias, fluxos migratórios indesejados, proliferação de armas de destruição em massa, ou atividades criminosas (como o tráfico de armas, drogas e pessoas) e terroristas, estão cada vez menos restritas às fronteiras nacionais. A natureza transnacional desses fenômenos se soma ao contexto de déficit de capacidade estatal na periferia do sistema, adensando transbordamento de seus impactos. Assim, os princi- pais aspectos de (in) segurança hoje não advêm de um cenário de guerra entre Estados, mas de instabilidades, da ausência de gover- nança e de conflitos intraestatais, configurando um conjunto de riscos com alto teor de imprevisibilidade e alto nível de complexi- dade na sua gestão.

No âmbito dos organismos internacionais, destaca-se a refor- mulação da agenda da Otan em 1991, quando a tradicional ameaça soviética deu lugar aos riscos e “desafios à segurança” do mundo pós-bipolar. Em 1999, a organização incorporou a estra- tégia de “administração de crises” para evitar que incertezas e ris-

cos se tornem crises agudas, ou mesmo administrar aquelas que não podem ser prevenidas. O documento da União Europeia de 2003, Internal Security Strategy, aponta que um ataque em larga escala contra os países do continente é improvável e que as pre- ocupações do novo milênio advêm de Estados fracos, do crime organizado e da proliferação de armas de destruição em massa. Conforma-se, assim, um complexo de inseguranças e riscos à segurança europeia (Williams, 2008, p.58).

Nos documentos estadunidenses, da mesma forma, a centra- lidade do risco é notável. A Quadrennial Defense Review, lançada em setembro de 2001, coloca o risco como o princípio estratégico mais importante para segurança nacional do país: “O Pentágono desenvolveu uma nova estratégia de defesa e uma estrutura de administração de riscos...” (QDR, 2001). No documento de 2006, concretiza-se a percepção de que as incertezas representam o maior desafio à segurança:

Nós não podemos caracterizar precisamente o ambiente de segurança de 2025; assim, nós precisamos nos proteger dessa incerteza desenvolvendo um largo conjunto de capacidades. Nós precisamos ir além e organizar nossas forças para lidar de maneira ágil e flexível com o desconhecido e as surpresas das próximas décadas (QDR, 2006).

A definição de risco em Washington é dada por outro docu- mento estratégico:

A globalização e crescente interdependência econômica ao mesmo tempo que criam riqueza e oportunidades, criam tam- bém uma rede de vulnerabilidades interligadas e propagam ainda mais riscos, aumentando a sensibilidade a crises e cho- ques ao redor do globo e gerando mais incertezas com relação a sua velocidade e efeitos. [...] Nossa estratégia deve abordar como podemos avaliar, mitigar e responder aos riscos. Aqui, nós definimos o risco em termos de potenciais danos à segu- rança nacional, combinado à probabilidade de ocorrência e à mensuração de consequências caso o risco subjacente perma- neça sem solução. (NDS, 2008)

Nesse sentido é paradigmático o discurso de Donald Rumsfeld, então Secretário de Defesa dos Estados Unidos, numa conferência de imprensa sobre a (in) existência de armas de destruição em mas- sa no Iraque, pouco antes da intervenção de março de 2003:

Qual é a mensagem aqui? A mensagem é que não há certe- zas. Há coisas que nós sabemos que sabemos. E existem desco- nhecidos conhecidos. Isso equivale dizer que há coisas que no presente nós sabemos que não conhecemos. Mas há também desconhecidos desconhecidos. Há coisas que nós não sabemos que não sabemos. Então nós damos o nosso melhor, juntamos todas as informações e dizemos: bom, isso é basicamente como vemos a situação, isso é realmente o que sabemos e não sabe- mos. E a cada ano nós descobrimos outros desconhecidos des- conhecidos. Soa como um trocadilho. E não é um trocadilho. É uma questão muito séria e importante3 (Rumsfeld, 2002).

Esse tipo de avaliação sobre os riscos, que predominou na tomada de decisão neste início de século XXI, revela uma mudan- ça profunda na descrição do ambiente de segurança internacio- nal. Durante a Guerra Fria, o bloco ocidental capitaneado pelos Estados Unidos (EUA) estava preocupado com as ameaças que a União Soviética (URSS) colocava para seu modelo político, eco- nômico e social. No campo militar, a ameaça vinha das inten- ções hostis soviéticas no pós-Segunda Guerra Mundial (ímpeto expansionista), e do crescimento do seu aparato bélico. Essa ame- aça unidirecional foi contida por meio de uma aliança militar no campo ocidental, a Otan.

3 O original em inglês soa como um trava-línguas: “Now what is the message there? The message is that there are no ‘knowns’. There are things we know that we know. There are known unknowns. That is to say there are things that we now know we don’t know. But there are also unknown unknowns. There are things we don’t know we don’t know. So when we do the best we can and we pull all this information together, and we then say well that’s basically what we see as the situation, that is really only the known knowns and the known unknowns. And each year, we discover a few more of those unknown unknowns. It sounds like a riddle. It isn’t a riddle. It is a very serious, important matter”.

Na era dos riscos, todavia, os desafios à segurança são multidi- recionais e multifacetados. Não podem ser avaliados por intencio- nalidade ou capacidade de um ator hostil. Não são quantificáveis. Enquanto o sistema de ameaças da Guerra Fria era relativamente sólido, os riscos são fluidos (Williams, 2008, p.69). Para lidar com esse vasto conjunto de desafios à segurança, que envolvem desde surtos epidêmicos à falência de Estados, as lideranças ocidentais passam a compor um sistema flexível de alianças.

Instituições como a Otan deixam de ser o único instrumento da segurança internacional com o surgimento de diversas coalizões

ad hoc, sem sede formal ou recursos próprios. A partir da inter-

venção norte-americana no Iraque, essas ficaram conhecidas como “coalizões dos dispostos” (coalition of the willing). O discurso do então presidente norte-americano, George W. Bush, é ilustrativo: “Ao longo do tempo é importante que as nações saibam que vão ser responsabilizadas por sua inação [...] ou vocês estão conosco ou contra nós na luta contra o terror” (CNN, 2001).

A maior diferença das alianças no período bipolar para as coa- lizões contemporâneas é que as últimas não lidam com ameaças militares concretas, mas com riscos abstratos, com destaque para o terrorismo global. Para Williams, há uma profusão de “coalizões dos dispostos” para lidar com os mais variados desafios à segurança, geralmente organizadas de forma ad hoc e com expressa seletivida- de quanto às parcerias: “Uma coalizão dos dispostos orientada para o risco […] existe para administrar um risco amorfo, que é difícil de definir; é também difícil determinar quando o risco foi reduzido ou extinto” (Williams, 2008, p.70).

Ou seja, para Williams (2008, p.65), durante a Guerra Fria as ameaças eram descritas em termos bastante específicos, no con- texto do equilíbrio de poder. Enquanto as ameaças são quanti- ficáveis (proporcionalmente aos recursos de poder), os riscos são incalculáveis. A incerteza é intrínseca à atual concepção de ris- co, que depende tanto da probabilidade (no presente) quanto da magnitude das consequências (no futuro). No período bipolar era

possível estimar o nível da ameaça pela quantidade de soldados e tanques soviéticos dispostos no globo, e também apreender as intenções soviéticas por meio da rotina diplomática num contex- to de racionalidade política de balanceamento de poder. Todavia, sobretudo após os eventos de 2001, o grau de incerteza dificulta a clara distinção das ameaças – muitos são os “conhecidos desco- nhecidos” a que se refere Rumsfeld.

Na linguagem comum, cotidiana, utilizamos os termos inse- gurança, perigo, ameaça e risco como sinônimos. Mesmo nos discursos políticos e documentos estratégicos parece haver insu- ficiente distinção conceitual entre os mesmos. Para Yee-Kuang Heng (2006a), os próprios autores que trabalham na incorpora- ção da teoria de Beck nos estudos de segurança, muitos dos quais serão abordados neste capítulo, evitam adentrar na discussão con- ceitual de ameaça e risco. Heng retoma Beck ao definir os riscos como ameaças incontroláveis, pois não há condições de prever quando, onde e com qual intensidade eles podem se materiali- zar, já que o “risco implica a probabilidade de uma ação ou ina- ção produzir resultados indesejados” (Heng, 2006a, p.48). Para o autor, o elemento diferenciador não está na origem dos riscos/ ameaças (por exemplo, no setor militar ou ambiental) ou na sua essência material/ideacional, mas na sua racionalidade. Ou seja, na mudança de uma racionalidade mais determinista para outra condicional e probabilística.

Na abordagem da sociedade de risco, não são as capacidades ou intenções de atores hostis que apontam desafios à segurança, mas a possibilidade de materialização do risco e a magnitude de suas consequências. Os perigos advêm não de Estados fortes, mas justa- mente daqueles fracos e falidos. Consoante Shlomo Griner (2002), os problemas ali presentes (terrorismo ou epidemias, por exemplo) são considerados riscos porque, no contexto da globalização, abrem um cenário futuro com a possibilidade de altos danos (tanto para si mesmos como para os demais Estados). “O conceito de risco implica, portanto, probabilidades e consequências; a ameaça envol- ve capacidades e intenções” (Heng, 2006a, p.50).