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DIáLOgO, INVESTIgAÇÃO E EMANCIPAÇÃO: PERCURSOS PARTILHADOS

3. Entre investigação e intervenção

3.1 A posição do/a investigador/a

De alguma forma, a conceção desenvolvida por Matthew Lipman (Lipman, Sharp, & Oscanyan, 1998) em torno do que apelidou por “comunidade de investigação” ou “comunidade reflexiva” auxilia metodologicamente esta ética da confrontação, como possibilidade de crescimento intersubjetivo e empenhado numa transforma- ção de práticas e de posturas. Uma comunidade de investigação entende-se por uma forma grupal de partilhar problemas e laborar sobre as suas soluções conjun- tamente, e trabalhando sobre o dissenso, mais do que sobre o consenso. Cedo se entenderá, como o próprio Lipman reconhece, que esta comunidade pode conter subconjuntos de outras pequenas comunidades, questões pessoais e subgrupais que se envolvem e se põem em jogo na prática salutar da confrontação, sendo a própria conversa a conjugar os fatores de diferenciação, tão inevitáveis quanto necessários. Nas palavras de Lipman:

É o conhecido efeito de expansão de uma onda, como o da pedra lançada na lagoa: cada vez mais amplas, as comunidades vão-se abarcando umas às outras, todas elas formadas por indivíduos comprometidos com a expansão autocorretiva e a criativi- dade (Lipman et al., 1998: 40).

Esta ideia, em ação neste contexto específico com trabalhadores/as sociais, agentes educativos/as, profissionais direta ou indiretamente ligados/as ao de- senvolvimento e implementação de políticas sociais, pode adquirir expressão relevante, pela ampla fatia de sujeitos passíveis de nela se abarcarem. Por ou- tro lado, transporta inegavelmente uma oposição às práticas mais comuns nas organizações educativas e sociais, possibilitando novas e outras visões sobre o trabalho, sobre a vida quotidiana, sobre a formulação da ideia vasta de quali-

dade de vida, cuja formulação tende a adiar-se nas mais instituídas rotinas. As-

sim sendo, também os contextos laborais são amplamente problematizados ao longo das conversas, autênticas indagações conjuntas, com a crítica explícita ou implícita à solidez das estruturas hierárquicas, organogramas e dispositivos variados de docilização86, que projetam e regulam a própria ideia de trabalho.

Proporcionar aprendizagem pela conversa passa também pelo prazer do face-a- -face, pelo gosto da partilha inerente a uma ética da confrontação.87 Nesta fase,

torna-se útil revisitar a noção de Ricoeur, anteriormente adiantada – “vida boa, com os outros e para os outros em instituições justas” –, sublinhando-se o com- plemento de lugar: em instituições justas. A justiça de uma instituição afere-se 86 O termo ‘dispositivo’ é aqui empregue num sentido amplamente teorizado por Michel Foucault como conjunto heterogéneo de discursos, regras, enunciados, elementos arquitetónicos, elementos sociais discursivos ou não discursivos combinados que servem de mecanismos de dominação (Cf Foucault, 2001; Revel, 2008: 41-42).

87 Retoma-se o “argumento” do Projeto: “Conversar apenas com o objetivo de “encontrar novos sentidos” e “deixar emergir novos conhecimentos”, na esperança de poder desenvolver um olhar crítico em cada participante. Assim, e num tempo em que escasseiam as versões críticas, não se perde de vista que é importante ir construindo histórias mais críticas” (Múrias et al., 2010: 68).

partilhadamente e, acima de tudo, evolui de forma partilhada. Quer isto dizer que a justiça não corresponde a um absoluto. A justiça é fundamentalmente relacional, não se encontrando por isso, exclusivamente – nem principalmente – em normas, estatutos e documentação. A justiça institucional é um elemento de ação, pelo que se concretiza e deixa entrever intersubjectivamente, fenomenologicamente e dialogicamente. Uma ética da confrontação valoriza a disputa, a troca convergente ou divergente de argumentos e de posições, no sentido de um crescimento efetivo. Desviada do espaço ermo da retórica e raramente sustentada em consensos, este posicionamento assenta sobretudo no escrutínio e aperfeiçoamento de regras e de ações através do diálogo. Assume-se uma confrontação dado que, como se torna assaz evidente, vinca o processo sobre a finalidade e a liberdade sobre o roteiro, numa coerência participada e negociada que faz convergir ética e epistemologias num sentido de construção conjunta e democrática. Esta confrontação, no projeto em apreço, tende a recair sobre três planos fundamentais e interligados: Plano pessoal, social e organizacional.

i) No plano pessoal há um ponto de partida que deve ser, também, um ponto de retorno. O plano pessoal reflete expectativas, angústias, zonas claras ou encobertas de satisfação ou de fracasso diretamente implicadas na conver- sa, em qualquer conversa. Evidencia-se aqui o potencial crítico que toca os restantes planos, quando se reforça e agradece a oportunidade de se falar sobre aspetos que frequentemente se silenciam no plano social e or- ganizacional.88 Chame-se a este silêncio rotina, quotidiano, hábito… mas

todos estes nomes têm lugar próprio no que a tradição crítica designou por opressão.

ii) No plano social, ao tratar-se de desigualdades bem vivas e claramente rei- teradas no atual ordenamento social, está lançado o primeiro ímpeto para o seu reconhecimento e superação. Isto mesmo se verifica, desejavelmen- te, nas desigualdades de género e nos seus mais arreigados estereótipos, com os seus remanescentes dispositivos de regulação89, denunciando-se

e ultrapassando mistificações prejudiciais à construção de uma sociedade mais igualitária e mais justa. Tais mistificações e/ou estereótipos surgem no limiar do discurso e lançam-se a debate, dando oportunidade à crítica conjunta de constantes socialmente induzidas e quotidianamente reiteradas. Esta dinâmica favorece a construção de uma plataforma de clarificação e de consciencialização dialógica e partilhada.

88 De forma recorrente, durante os workshops do projeto “Lideranças Partilhadas”, os/as participan- tes sublinham o caráter invulgar do que ali os une pontualmente, destacando a rareza de tratamento dos assuntos focados.

89 Veja-se a título de exemplo a ideia, veiculada em mais do que um momento nos workshops do projeto, segundo a qual as mulheres se revelam essencialmente como elementos de contenda no plano laboral. Solidificada esta ideia, e sem o necessário questionamento, facilmente se torna justificável a exclusão ou menosprezo da mulher em espaços de trabalho em equipa, a coberto do preconceito naturalizado segundo o qual a mulher é automaticamente rival da outra mulher.

iii) No plano organizacional, uma ética da confrontação tende a instigar uma inversão: enquanto os quotidianos normalizam o plano visível da organização, a confrontação tende a privilegiar o seu lado invisível. A conversa, ao fazer acontecer o seu caráter fluido, vai desvelando pro- gressivamente formas de relação, instâncias de poder e práticas instituí- das, usualmente invisibilizadas por quotidianos sem questionamento90

. Iluminam-se aspetos mais práticos e mais vivenciais da profissionalidade, produzindo-se distanciamentos, apreciações e avaliações sem a rigidez do parâmetro formal.

A interseção entre estes três planos é evidente e desejável. A confrontação permi- te que aspetos sociais e organizacionais, frequentemente desvalorizados ou dis- persos numa rotina silenciadora, sejam criticamente considerados pelo crivo do eu, e dialogicamente lançados na relação com os/as outros/as. Questionam-se as práticas, mas é impossível ocultar o que esta conceção exige ao/à investigador/a, confrontado/a com uma postura alheada das mais tradicionais conceções metodo- lógicas.