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DIáLOgO, INVESTIgAÇÃO E EMANCIPAÇÃO: PERCURSOS PARTILHADOS

3. Entre investigação e intervenção

3.2. Diálogo e diagnóstico

A questão que se coloca incide na posição do/a investigador/a, sabendo-se da exigência híbrida – investigação/intervenção – que o motiva e prevendo as di- ficuldades epistemológicas que nela se intercetam. Fora de um registo de saber rigidificado, o/a investigador/a inscreve-se numa realidade fluida, variável, cheia de vasos comunicantes e de relações justapostas e possíveis. Daí que, quanto ao posicionamento, se defina por uma ausência de definição, ou seja, abdicando de uma posição dominadora e aplicando-se em fazer funcionar formas de diálogo, de autocrítica e de resposta diferida, na mesma lógica de liderança relacional e de ética do confronto que vimos defendendo. Numa palavra, o problema principal da investigação/intervenção desliga-se das tradicionais epistemologias da validação, para quem a pergunta se congrega sob a forma ‘como conceder cientificidade ao discurso?’, como dos mais vulgares planeamentos metodológicos – ‘como forma- tar fases, modos, finalidades e frações de tempo na intervenção?’ – para se centrar na busca sustentada de formas de fazer com que a realidade fale nela, por ela e, finalmente, apesar dela. Impõe-se refletir sobre a fluência da palavra, nas inúme- ras formas de expressão que cabem a cada realidade, assumindo-se uma diagnose permanente, em cuja natureza é necessário incidir.

É necessário retomar dialogicamente o termo ‘diagnóstico’, perguntando pelo seu cabimento numa investigação participada e transformadora91. Problemático, este

termo tem vindo a ser usado, prioritariamente, em contextos clínicos e educacionais, 90 Este é um dos aspetos que melhor potencia a hibridação entre investigação e intervenção. Na con-

versa, não apenas se processa uma caracterização dinâmica e mediada de cada organização, com contributos investigativos de apreciável qualidade, como se constrói o primeiro degrau na análise de problemas e perspetivas negociadas na sua resolução.

para declarar, de forma mais finalizada possível, a existência ou ausência de uma patologia, no caso médico, ou para inferir, de modo mais localizado possível, o estado do/a aluno/a face ao conhecimento, no caso educativo. A retoma do diag- nóstico na perspetiva do diálogo exige a decomposição etimológica do termo, ainda antes da orientação finalista e técnica que um certo uso quotidiano nas práticas especializadas, como as clínicas ou as pedagógicas, lhe imprimiu. O grego gnosis era utilizado, em Aristóteles, como palavra vulgar e abrangente para conhecimento, compreendendo aí tanto a perceção sensível como o conheci- mento científico. Já no contexto da doutrina cristã, o termo gnose adquire um sen- tido religioso e salvífico, como revelação divina (Peters, 1983: 94). A inscrição do elemento etimológico diferencial – dia – imprime uma orientação fundamental na palavra; mais do que uma questão etimológica, o elemento ‘dia’ em ‘diagnós- tico’ convoca um problema epistemológico, uma orientação metodológica e um imperativo ético, de certa forma apagados da sua aceção mais imediatamente científica: a inclinação para a diferença e o dizer da diferença, em todas as suas aceções. Impossíveis de retratar totalmente aqui, não deixaremos de sublinhar al- gumas dessas aceções, tentando mostrar em que medida elas se presentificam na investigação/intervenção socioeducativa e, concretamente, no Projeto que aqui se questiona.

Admitida a curiosa partilha do termo diagnóstico entre a ação clínica e a prática psicopedagógica, importa estabelecer graus de confluência do uso pragmático do termo entre ambas as disciplinas. Para antes de mais salientar que um diagnóstico acontece na altura em que a observação naturalista se revela insuficiente. A saúde clínica, como a “saúde” pedagógica, não são elementos concretos, diretamente observáveis ou totalmente redutíveis a escalas de medida. São por isso – ou de- veriam ser – imunes a um processo meramente classificatório e finalista, na es- tagnação passiva de um resultado verificável. A saúde não é um produto nem um facto, mas algo que se restabelece numa relação de entrega e de confiança. Como refere Gadamer, refletindo sobre a relação médico-doente, “tanto o poder de con- vicção do médico como a confiança e a colaboração do paciente representam um fator curativo essencial” (Gadamer, 1997a: 28). O mesmo se passa em contextos socioeducativos, onde a instrumentalização dos processos e o mecanicismo das práticas leva à perda de identidade profissional, como à erosão dos princípios antropológicos e éticos em que estes contextos se encontram enraizados. As inter- venções socioeducativas são relacionais, abertas e intersubjetivas (Cf. Carvalho & Baptista, 2008: 31). Uma vez mais, a autoridade intromete-se nesta relação, colocando-se novamente em causa as diversas formas de problematização da au- toridade, em nome do que é desejavelmente uma relação pactuante. No que con- cerne ao cabimento do diagnóstico, tudo se passa nas formas de convocar para 91 Devo a maturação desta ideia, que aqui abrevio, à amizade e ao diálogo com a minha colega Deolinda Araújo. O debate, revigorante e em curso, em torno do „diagnóstico‟ e seu potencial transformador ou regulador, tem contribuído decisivamente para o aprofundamento desta questão.

um presente fluido uma experiência anterior, favorecendo algo que está por fazer. Ouvindo uma vez mais Gadamer:

(…) assim como é absurdo considerar a autoridade em si mesma como algo de ilegítimo, que deveria ser substituído por formas de decisão “racio- nais” (como se se pudesse excluir o peso da autêntica autoridade em qual- quer forma de organização da convivência humana), a participação da “experiência” na constituição da sabedoria é tão inegável como convincente, espe-

cialmente no caso do médico, mas não apenas nele (Gadamer, 1997a: 29).

Tudo se passa, então, como se a insuficiência de uma razão calculadora, herda- da de uma tradição epistemológica que ainda molda a investigação/intervenção, fazendo-se evidente na palavra fugidia ‘diagnóstico’, fizesse desaguar o horizon- te disciplinar específico em que o termo é utilizado em territórios sociais, onde a possibilidade de encontro realmente se perspetiva. Para se dizer que, realmente, não há diagnóstico finalizador e acabado que possa responder responsavelmente ao elemento de diferença que subsiste no seu próprio étimo. O tempo do diag- nóstico é fluido e permanente, passageiro mas decisivo, no jogo dialógico que lhe ritma cada passagem. Enquanto dimensão investigativa, a conversa torna-se por isso prática privilegiada no esboço de diagnósticos, traçáveis e retraçáveis de forma intersubjetiva. O diagnóstico assume um pendor ensaístico no todo da investigação/intervenção. Mas para isto, como não é demais sublinhar, deve ser- -lhe restituída a vocação dialógica, sem a qual não pode haver nenhum tipo de

diagnóstico, seja ele clínico, pedagógico ou social (Cf. Pereira, 2002: 43). Na conjuntura em apreço, tendemos a encarar o diagnóstico menos como um processo decorrente de uma recolha sistematizada de dados, à maneira das mais correntes aproximações ao diagnóstico social (Cf. Romero & García, 2011: 145), e mais como uma prática relacional constante, independente e dinâmica. O diag- nóstico transporta, desta maneira, elementos contextuais, laborais, funcionais e pessoais suscetíveis de retratar vivências, desocultar desigualdades e formas ocultas de opressão e estabelecer pontes para a transformação e emancipação. Di- álogo e diagnóstico, como elementos mutuamente implicados e não como fases marcadas de trabalho de investigação/intervenção, encontram na aprendizagem pela conversa correlatos capazes de potenciar o valor investigativo e transfor- mador desta postura, central na escuta responsável e empenhada que é preciso mobilizar na ação.

Não se trata, pois, de um método, mas de um posicionamento crítico transversal, que comporta imperativos ético-ontológicos, bem como posicionamentos episte- mológicos relacionais ao qual o diagnóstico, reabilitado enquanto ideia de diálo- go diferido, se encontra diretamente vinculado.

Limiar

lógica de homogeneização ainda preponderante nos discursos científicos (Santos, 2006), em que se submetem realidades parcelares a uma espécie de retroversão para uma totalidade soberana. As partes, na sua permanente remissão e submis- são ao todo, são assim entendidas como aspetos particulares desse todo. Ora a crítica a este modelo de racionalidade levará a admitir que essa totalidade sobe- rana, largamente englobante, não é mais do que a ampliação de uma das partes, assim revelando a hierarquia oculta da relação, aparentemente simétrica, entre as parcelas; daí a preponderância da relação dicotómica e binária desta conjuntura, operando sempre tendo em conta o poder maior de um dos elementos do par. Revelam-se jogos de força de um só sentido e de um só poder. A crítica de Santos é penetrante:

(…) todas as dicotomias sufragadas pela razão metonímica contêm uma hierarquia: cultura científica/ cultura literária; conhecimento científico/ conhecimento tradicio- nal; homem/ mulher; cultura/ natureza (…) (Santos, 2006: 91).

Detenhamo-nos aqui, embora a tensão assimétrica destes pares se pudesse pro- longar quase indefinidamente. Destacando o poder evidente desta relação hie- rárquica, encontrámo-nos com uma das formas pelas quais as desigualdades se introduziram subliminarmente na ciência moderna, potenciando injustiças e va- lidando poderes em sede de ciência. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de ser assinalável o modo como formas outras de ciência se instituem como críticas ne- cessárias a este modelo, não enjeitando a responsabilidade político-social que lhes cabe enquanto dimensões maiores da criatividade e de transformação.

Num contexto que nos lança, privilegiadamente, no assumir do diálogo como re- duto constitutivo do homem e da mulher, encontramo-nos obrigados a uma con- clusão difícil: a ciência é ainda monolingue. O seu domínio, feito deste privilégio do todo e na surda preferência de uma das partes, não traduz a diversidade do tempo, em que a voz viva e plural de cada outro/a vive a mais justa emergência de afirmação. Problematizar percursos de desigualdade de género, promovendo lideranças partilhadas capazes de deter poderes impostos e monolíticos, implica perguntar pelo lugar das singularidades nos discursos científicos como parte inte- grante e integradora do tecido social.

O desafio de encontrar um correlato epistemológico para a ambiência diversa, plu- ral e divergente (Santos, 2006: 133) que pauta as sociedades atuais, em todos os seus quadrantes, passa também por assumir a hibridação entre investigação e pro- jeto, construindo-se discursos outros de modo participado, inclusivo e contra-he- gemónico. Reinventar lideranças, promovendo lógicas de partilha e desvelando veios opressores remanescentes nas dinâmicas pessoais, sociais e laborais passa pela capacidade de ouvir e de dar palavra, numa lógica conflitual e empoderadora, até aqui largamente arredada das formas de se viver em conjunto.

O alargamento do espaço democrático, incrementando a intensidade de todos os seus lugares – o seu aperfeiçoamento e perfetibilidade –, engendra-se numa lógica de proximidade, discursividade e ação92, com a consequente crítica às práticas e

discursos que tendem a incidir no centro a despeito das margens, nas centralidades em detrimento das periferias, no que não deixa de ser uma versão da ‘razão meto- nímica’ como abordagem epistemológica ainda dominante.

Invariavelmente, a crítica é o lugar onde a democracia acontece.

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92 Lemos na apresentação do Projeto: “procura-se desafiar as pessoas para iniciar um processo de reflexão-ação em torno das lideranças emergentes, que seja promotor de processos de empodera- mento pessoal, político e comunitário” (Múrias et al., 2010: 28).

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