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C. Workshops de literacia para a liderança de mulheres

3. Projeto Lideranças Partilhadas (2010-2012) A caminho de um novo para digma?

3.3. Lideranças em transição, à procura de um chão

Há quarenta anos Han Fortmann1015 (no chão holandês, mas fortemente inspirado

pelo Oriente) escrevia: “Já não estamos à espera de figuras paternais […], pre- cisamos de pessoas que inspirem e que demonstrem poder, sem que procurem e cultivem esse poder. Mas isso é uma nova fase na cultura” (Fortmann, 1970: 53- 54). Será que estamos mesmo a entrar numa nova fase em termos de uso de poder? Estamos a caminho de um novo paradigma de liderança? Recorro a duas iniciati- vas recentes realizadas na Holanda (o meu chão de origem) que demonstram pelo menos que há muito desejo e esperança que isto esteja a acontecer.

À procura de líderes

A primeira iniciativa é um documentário de Jeroen Smit1116 sobre a evolução na

cultura de lideranças, intitulado À procura de Líderes, (Leiders Gezocht)1217,

emitido em sete episódios pelo Canal 2 da televisão pública holandesa nos meses de novembro e dezembro de 2010. De que tipo de líderes precisamos no século XXI e o que é que estes líderes, eles e elas, devem saber fazer? Esta é a pergunta central colocada no documentário. Jeroen Smit viajou pelo mundo para entrevistar líderes nos mais diversos contextos.

O primeiro episódio, intitulado a mulher líder, começa com uma entrevista a duas mulheres, lla Tomasdottir e Kristen Petursdottir1318, fundadoras e diretoras do ban-

co Islandês Audur Capital1419. Defendem no site do banco que “um corpo crescente

de pesquisa mostra que as empresas que são propriedade de, ou geridas por mulhe- res, têm um retorno maior a longo prazo”. Afirmam que no mundo dos negócios predomina “um mesmo género, a mesma idade, os mesmos círculos, os valores masculinos. Nós, mulheres, aprendemos as regras do jogo, falamos a língua dos homens, mas há uma falta de diversidade, de valores femininos”.

Outra entrevistada, a psicóloga social americana Alice Eagley1520 refere os dois

tipos de exigência que as mulheres em posições de liderança têm de enfrentar. Por 15 Nas décadas 50 e 60 do século passado, Han Fortmann (1912-1970) foi o primeiro a ensinar a psicologia e antropologia da religião na Universidade Católica de Nijmegen. Sentia-se cada vez mais desencantado com a cultura e a moral religiosa do mundo ocidental. Por isso, destacou a necessidade de uma exploração de um diálogo com as religiões orientais, principalmente com o hinduísmo e o budismo, para regenerar a vida e a cultura no mundo ocidental.

16 Professor Catedrático de Jornalísticas na Faculdade de letras da Rijksuniversiteit de Groningen. Autor dos livros Het drama Ahold (2004) e sobre a crise no banco ABN Amro, intutulado De

Prooi (2008), (A Presa).

17 Ver: http://www.jeroensmit.net/leiders-gezocht/.

18 Ver: http://www.audurcapital.is/english/about-audur/the-founders/.

19 Ver: http://www.audurcapital.is/english/about-audur/audurs-philosophy/.

um lado é exigido que “seja uma líder e simultaneamente uma mulher simpática e cuidadora”. Por outro, são confrontadas com a crítica “ela é simpática demais, portanto não pode ser uma boa líder. Não é respeitada como líder”.

Rosiska Darcy de Oliveira já referia em 1991 esta situação de double bind: (...) a situação em que se encontra uma pessoa submetida, permanentemente, a ordens que se excluam ou se negam umas às outras, sem que ela tenha possibi- lidade de escapar do campo onde interagem essas ‘injunções contraditórias’. (...) ‘Seja homem, mas continue mulher’ (Darcy de Oliveira, 1991:77, citada em Koning,

2006: 83).

Na entrevista com a comissária europeia Neelie Kroes1621, esta afirma que as mulhe-

res são mais capazes de dizer “Isto não sei” e neste sentido seriam mais honestas. Trabalhariam melhor em equipa o que levava a decisões com mais qualidade. E conclui que “no século XXI estamos finalmente preparados/as para haver mais mulheres no topo”.

Os seguintes excertos de textos de Jeroen Smit, retirados do site do programa, foram utilizados como textos de apoio num dos workshops de literacia para a liderança.

Quadro 5: textos de apoio para workshops

Criar diversidade

A total falta de diversidade nos principais conselhos directivos das organiza- ções proporciona uma liderança deficiente. Se tivesse havido mais mulheres nos conselhos directivos de bancos, a crise de crédito teria sido menos grave! As mulheres não são melhores líderes do que os homens, os homens não são melhores líderes do que as mulheres, mas reunindo-os/as garante-se uma me- lhor liderança. Trata-se de criar uma maior diversidade possível na tomada de decisões, de uma maior riqueza de perspectivas e de mais espaço para a discussão que contribui para a qualidade.

A questão é: como conseguir isso? As mulheres emergem naturalmente? Uma hierarquia masculina costuma nomear automaticamente a sua imagem- -espelho. A este ritmo terá de se esperar por 2090 para haver 30 por cento de mulheres-líderes no mundo de negócios holandês. Deve haver intervenção activa do Estado, como na Noruega?1722

21 Ver: http://ec.europa.eu/commission_2010-2014/kroes/about/cv/index_en.htm.

22 http://www.jeroensmit.net/aflevering-1-de-vrouwelijke-leider/.

Cuidar do contexto

Nos últimos vinte anos, as empresas e seus líderes foram impulsionados por um objectivo: a maximização dos lucros. A liderança do século XXI não pode permitir isto, terá de cuidar do contexto no qual a organização opera. Os/as líderes terão de tornar plausível como a pobreza, a saúde e o ambiente infor- mam os seus projectos de negócio. A visão do futuro não é mais um prognósti- co feito de números, mas um discurso em palavras. Isto exige uma perspectiva diferente de líder: não é mais a empresa contra o mundo exterior. A empresa é parte deste mundo, e assume responsabilidade para este mundo.

Liderança interactiva

A liderança do futuro não é mais directiva, mas interactiva. O século XXI proporciona líderes que se encontram situado/as no meio de colaboradores/ as e desempenham papéis diversificados. Não têm escolha: a transparência radical garante que os funcionários tenham as mesmas informações que os seus patrões. As organizações mudam devido ao avanço das novas tecnolo- gias, tanto aceleram, como encurtam as linhas de comunicação. As distâncias geográficas não são mais um obstáculo para o trabalho em equipa. O que importa no futuro é que a tecnologia trabalhe para nós.1823

Liderança partilhada

A segunda iniciativa que emergiu no chão holandês é a publicação do livro Ge-

deeld Leiderschap (Liderança Partilhada) de Jelle Dijkstra en Paul-Peter Feld,

em janeiro de 2011. Os autores começam por afirmar que o objetivo do livro é estimular o diálogo sobre um conjunto de questões fundamentais que se prendem com o processo de evolução da nossa sociedade, nomeadamente sobre “trabalhar em conjunto, organizar, aprender e liderar” (Dijkstra e Feld, 2011: 6). Apontam sete mudanças nos competitive landscapes (cenários competitivos) das nossas so- ciedades, que tornam necessário reinventar as formas de organização do trabalho: 1. Mudança na economia, em que hoje a tónica se coloca sobre a criação de valor

em conjunto por diversas partes interessadas, o que se chama co-criação; 2. Aumento enorme do volume de informação e conhecimento e a necessidade de desenvolver novas formas de processamento;

3. Envelhecimento da população, necessidade de haver uma empregabilidade sus- tentável, proporcionar condições que permitam a pessoas mais velhas poderem contribuir com um output de qualidade. “Não investir no desenvolvimento de 23 http://www.jeroensmit.net/leiders-gezocht/.

trabalhadores mais velhos é um beco sem saída e um desperdício de um enorme reservatório de talento não utilizado” (p.21);

4. Sociedade mais aberta e transparente, o que implica uma maior vulnerabilidade de líderes “tradicionais”;

5. Necessidade de corrigir regras regulamentares na organização do trabalho, por- que muitas vezes impedem que, no trabalho, as pessoas se possam sentir respon- sáveis enquanto pessoas;

6. As organizações já não são instituições – solo. A liderança torna-se cada vez mais um processo coletivo, que se realiza transcendendo fronteiras entre organi- zações, países e até continentes;

7. Globalização, perda de laços tradicionais em organizações de trabalhadores e empregadores, necessidade de proteção e garantia dos meios de subsistência. Os autores mencionam que a liderança partilhada (shared leadership) é referida na literatura também como dispersed ou distributed leaderhip (liderança dispersa ou distribuída). Dijkstra e Feld consideram mais apropriado o uso do termo shared

leadership, porque

deixa espaço para a iniciativa própria e para a responsabilidade das pessoas que fazem parte de um grupo (no sentido de ‘community’), de modo a poderem assumir, numa base igualitária mútua, papéis de liderança (…). Distributed leadership suge- re demasiado que a iniciativa parte de um líder central, que está disposto a partilhar os papéis e tarefas de liderança com os subordinados, disposto a delegar” (Dijkstra & Feld, 2011: 64).

Liderança partilhada é muito mais do que saber como se pode liderar de uma for- ma eficaz. É uma questão do evoluir da sociedade e da tradução desta evolução em novas formas de trabalho, de organização, de aprendizagem, de gestão e liderança. Os autores afirmam que o que é importante neste processo, não é “o encontrar do santo graal”, mas o que importa é “o processo de procura em si” (Ibid.: 10). Num regime de co-criação todas as pessoas devem poder dar o seu contributo com as suas qualidades e os seus talentos, conectando-se com outras para criar mais-valia para todos/as e para dar forma à inovação. “Não utilizar o potencial contributo das pessoas é um desperdício de recursos coletivos” (Jacobsson, nesta publicação). Para que isto possa acontecer “é preciso libertarmo-nos do sistema actual cen- tralizador e hierárquico de organização e de liderança”. A relação hierárquica entre chefe e colaborador/a será cada vez mais “substituída pela relação mestre – aprendiz” (Dijkstra & Feld, 2011: 10). A figura de líder formal vai dar lugar a um processo de liderança. Assim, a liderança é fruto de um processo coletivo que dá lugar a um nível mais elevado de resultados. A liderança não é mais uma tarefa delimitada e definida, determinada por um conjunto estático de funções e marcada por um status associado. Tornar-se-á um processo social, construído em conjunto por várias pessoas.

De best practices a next practices

Para que novas formas de organização do trabalho possam ser desenvolvidas é preciso ir à procura de “next practices”, em vez de pensar em termos de “best practi- ces” (Ibid.: 31). Best practices ainda se situam no paradigma dominante, em formas de fazer baseadas na experiência já acumulada. Em termos de liderança “a experi- ência é sobretudo importante quando o futuro é semelhante ao passado” (Ibid.: 73).

Next practices são outras práticas, não copiáveis, nem baseáveis apenas em boas ex-

periências do passado, práticas ainda a descobrir no futuro, a reinventar. Em termos de liderança, next practices requerem uma nova forma de liderança, não mais ligada a apenas uma ou algumas pessoas, não mais baseada no poder inerente a funções administrativas e de gestão. Implicam um processo realizado por várias pessoas, com diferentes qualidades de liderança, conjuntamente preenchido e constantemen- te ajustado. As novas formas de liderança devem ser aprendidas e desenvolvidas. Segundo Dijkstra e Feld a nossa sociedade ainda não está preparada para as no- vas formas de trabalhar, cooperar, aprender, organizar processos de aprendizagem e liderar. Indicam um conjunto de fatores cruciais que prepara o chão capaz de aguentar com sucesso as mudanças necessárias:

• Autenticidade, envolvimento e capacidade de tomar iniciativas como valores cen- trais nos processos de trabalho em equipa;

• Confiança nos outros, deixar espaço para que possam definir prioridades e organizar o trabalho;

• Disponibilização ilimitada de experiências e saberes sem receber diretamente algo em troco (partilhar para multiplicar);

• Ligação contínua a outras pessoas, dentro e fora da própria organização (em “com- munities” e redes sociais);

• Tomada de decisões conjunta sobre novas formas de parceria e colaboração; • Partilha de tarefas de liderança de acordo com as exigências da situação e com as

preferências e qualidades de participantes envolvidas no processo; renovação con- tínua desta liderança partilhada durante o processo de colaboração;

• Criação de espaços para experimentar, cometer erros e desenvolver novas formas de colaboração (Dijkstra e Feld, 2011: 89).

Dijkstra e Feld esperam ter dado um impulso no novo devir da nossa sociedade e “talvez até para a espécie humana” (Ibid.: 89).

Aproximando-me do fim deste artigo, em que foram dadas voltas nómadas através de palavras ditas e textos escritos, e na esperança de ter conseguido introduzir alguma sistematização na experiência realizada, espero poder dizer que regresso diferente desta viagem, já que a mudança é fruto de múltiplas repetições:

O que importa para o sujeito nómada é o ir, a possibilidade de arrumar e partir. O destino é relativamente pouco importante. É a viagem que conta, e a viagem tem

a ver com o contar de histórias e o revisitar de lugares onde já se esteve (Braidotti, 2004: 61, citada em Koning, 2006: 238).

Retomando a afirmação de Dijkstra e Feld sobre o devir da espécie humana, refiro aqui as palavras de Maria de Lourdes Pintasilgo sobre o devir de cada pessoa, na esperança que o trabalho realizado nos percursos de literacia para lideranças parti- lhadas, aqui apresentado, tenha contribuído para a nossa capacidade de dar nome às coisas, de modo de as poder recriar:

Vou recuperar uma palavra escrita e dita há mais de 50 anos pelo Padre Teilhard de Chardin: a noção de noosfera – a camada dos humanos que envolve a terra. (...) a pessoa emerge dessa noosfera. Por outras palavras, a pessoa só advém, enquanto pessoa humana, na comunidade humana (...) e, mais do que isso, só advém na comunidade humana estruturada por valores. Quando a comunidade não está estru- turada por valores, a pessoa humana não advém; quando está fora da comunidade humana, não chega a tornar-se pessoa humana na sua plenitude.

É que a comunidade humana confere-lhe a linguagem, a vinda à palavra - e essa vinda à palavra é o primeiro dado da sua definição.

A comunidade humana confere-lhe, também, a capacidade de dar um nome às coi- sas: “Ia e vinha / E a cada coisa perguntava / Que nome tinha”. Ao escrever estas linhas, Sophia, como alguns dos nossos grandes poetas, enunciou um princípio filo- sófico: a capacidade de dar nome às coisas é reconhecê-las de modo inédito e recriá- -las. E é esse conhecimento que nos constitui enquanto pessoas que torna possível a capacidade decisiva de representação simbólica como fundadora em humanidade (Pintasilgo, 1998: 7, citada em Koning, 2006: 211).