• Nenhum resultado encontrado

Desenvolvimento e Qualidade de Vida: à procura dos sentidos para a trans formação

social significativo

1. Desenvolvimento e Qualidade de Vida: à procura dos sentidos para a trans formação

O ponto de partida para esta reflexão centra-se na compreensão da qualidade de vida enquanto conceito de desenvolvimento pessoal e social. Foi pelas páginas do relatório93 da Comissão Independente sobre População e Qualidade de Vida

(ICPQL), elaborado em 1998 sob coordenação de Maria de Lourdes Pintasilgo, presidente da ICPQL, que comecei a percorrer um caminho de questionamento dos sentidos do termo desenvolvimento. Este questionamento foi, por sua vez, sendo enquadrado e fortalecido por uma aproximação às perspetivas críticas na educação e no trabalho social, pelo que a abordagem da ICQPL ao desenvolvi- mento pela qualidade de vida foi sendo percebida como um contributo fundamen- tal para a transformação da sociedade e, mais particularmente, do trabalho social contemporâneo.

O relatório da ICQPL apresenta-nos uma grande diversidade de significados, re- presentações, modelos, processos e metas associados ao desenvolvimento social, ilustrando como, ao longo do tempo e ao sabor das ideologias, se consolidou a polissemia do conceito. Após a 2ª Guerra Mundial, a maior parte dos países oci- dentais orientou-se segundo estratégias de estímulo ao crescimento económico (ICPQL, 1998: 50) como via para o desenvolvimento, estratégias essas assentes em princípios de liberalização dos mercados, mas usualmente contemplando uma dinâmica simultânea e complementar para a criação de sistemas públicos e uni- versais de cuidados de saúde, educação e segurança social, sustentado em políticas cuja objetivo central era a redistribuição de riqueza, bens e serviços.

O Estado-Providência europeu floresceu neste período, assente na crença de que o desenvolvimento se construía através do crescimento económico, via pela qual se alcançariam as metas sociais sintetizadas na máxima da equidade económica e social. No entanto, numa altura em que o estabelecimento de soberanias nacionais estava no centro da agenda mundial, dentro do paradigma de desenvolvimento 93 Cuidar o Futuro: um programa radical para viver melhor, Lisboa, Trinova

traduzido pelo Estado-Providência desenham-se diferentes configurações em di- ferentes países, consoante o modelo endógeno de desenvolvimento que norteou ideologicamente cada estado soberano.

Noutro quadrante geopolítico, metas semelhantes de desenvolvimento foram tra- çadas, mas desta feita por via de políticas e estratégias centralmente planificadas para o conjunto de nações que constituía o bloco comunista. Ao mesmo tempo, nos países ditos em desenvolvimento, são implementadas políticas de desenvolvimento filiadas nos modelos de desenvolvimento dos países ocidentais ou do bloco comu- nista, desembocando-se numa grande diversidade de entendimentos do sentido do desenvolvimento e das vias para a sua concretização. A título de exemplo, desen-

volvimento foi sinónimo de satisfação de necessidades básicas da população; de

consolidação de infraestruturas económicas e sociais; de corporativização de fun- ções públicas; de estabelecimento de políticas de redistribuição de riqueza, bens e serviços; de qualificação e capacitação da população; de crescimento endógeno sustentado (ICPQL, 1998: 51).

Mais tarde, com o fim da Guerra Fria e a implementação de um sistema económi- co de escala global, o principal alvo dos esforços de desenvolvimento nacionais passa a ser a “rápida e completa integração na economia global” (ICPQL, 1998: 52), o que acarretou processos profundos de alteração das políticas económicas nacionais em prol da convergência. A pluralidade de entendimentos de desenvol- vimento é quase invisibilizada por um aparente consenso em torno da necessidade de redefinir os princípios do crescimento económico em função da integração na economia globalizada, sendo que os vários processos de ajuste estrutural que cada país encetou fragilizaram os setores da segurança social, dos cuidados de saúde e da educação.

A imperatividade de integração na ordem económica global tem vindo a contribuir para perpetuar a ideia de razoabilidade na apropriação do desenvolvimento pela es- fera económica em sentido estrito, sendo assim possível que vários dos instrumen- tos estatísticos usados para a aferição do desenvolvimento sejam uma compilação de dados provenientes da atividade económica, como por exemplo o produto inter- no bruto (PIB) ou o rendimento per capita. O uso de indicadores do crescimento económico como indicadores de desenvolvimento tem coexistido de forma estável com o uso de outros índices, mais recentes, que traduzem de forma mais completa um entendimento multidimensional e complexo do desenvolvimento social e hu- mano, o mais popular dos quais será talvez o índice de desenvolvimento humano (IDH), usado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) desde 1990 como medida comparativa do desenvolvimento humano sustentável dos países. Este índice integra o PIB per capita (depois de corrigido pelo poder de compra da moeda de cada país), a longevidade e a educação94.

94 United Nations Development Programme – Human Development Reports [online] disponível em http://hdr.undp.org/en/statistics/hdi [consultado em 30 de outubro de 2011].

O IDH traduz a necessidade de visibilização de um paradigma de desenvolvimento – desenvolvimento humano sustentável – equilibrado num plano que congrega di- versos vetores da vida das pessoas, aqueles em torno dos quais assentam expecta- tivas e aspirações congruentes com projetos sociais e projetos de vida adivinhados na carta universal dos direitos humanos: equidade, preservação do ambiente, em- prego e coesão social (ICPQL, 1998: 73). Apesar de, em determinados setores, ser possível invisibilizar as implicações sociais que a visão sociopolítica estritamente económica tem na vida quotidiana das pessoas e na definição de um modelo de desenvolvimento e de sociedade, as consequências vão-se instalando e marcando inexoravelmente as disponibilidades percebidas pelas pessoas para a concretiza- ção de todos os projetos sociais e pessoais que, como atores/as sociais, possam encetar (Boutinet, 1990: 288).

O momento de crise económica em que vivemos reatualiza a necessidade de ques- tionamento em relação à(s) meta(s) de um grande projeto social humano. Queremo- -las unidimensionais e unidirecionais? Ou antes assumimos a vocação social huma- na de buscar um desenvolvimento multidimensional que nos lance na procura dos caminhos para a melhoria sustentada da qualidade de vida de cada um/a de nós? Retomando os vetores enunciados pela ICPQL (1998: 73) para a definição dos sentidos multidimensionais nos quais devemos construir o desenvolvimento – crescimento económico, equidade, preservação do ambiente, emprego e coesão social – a melhoria sustentada da qualidade de vida como meta implica que os vejamos com um olhar qualitativo para além do quantitativo.

A perspetiva quantitativa é essencial ao nível do combate à pobreza, entendi- da enquanto “situação de escassez de recursos de que um indivíduo, ou família, dispõem para satisfazer necessidades consideradas mínimas” (Pereirinha, 1996: 170), definição que destaca o estabelecimento de um limiar mínimo em termos de

quantidade, mas também aponta para a questão da (re)distribuição dos recursos (riqueza, bens e serviços) numa sociedade. Porque sabemos que a pobreza abre as portas a processos cumulativos de exclusão (Xiberras, 1993: 31) dos diversos sistemas sociais em que a integração social se define (Costa, 1998: 14), sem as- segurar equidade na distribuição da riqueza e dos bens – tarefa central do Estado- -Providência – não podemos atingir a equidade social de forma transversal na so- ciedade no que respeita ao acesso aos serviços sociais e às dimensões simbólicas. Por isto continua a ser essencial a manutenção de um olhar quantitativo sobre o desenvolvimento.

No entanto, para além da meta em torno da redistribuição da riqueza e dos bens, a perpetuação de objetivos centrados na quantidade comporta o risco da deterio- ração de outras dimensões essenciais ao desenvolvimento pessoal e social, pre- cisamente aquelas que devem ser abordadas segundo uma perspetiva qualitativa – equidade e coesão social. A qualidade percebida destas dimensões, numa ótica necessariamente intersubjetiva, deve guiar-nos no tal caminho de melhoria susten- tada da qualidade de vida – de desenvolvimento social humanizado.

Equidade e coesão social são dimensões que atravessam transversalmente os vá- rios sistemas e subsistemas em que se desenrola a vida quotidiana, e onde se tra- çam projetos pessoais sustentados em projetos de construção social e comunitária, onde se pode destacar o emprego, a vida familiar e privada, a educação, a saúde, a ação política, o associativismo, etc. É nos mecanismos que se desenham para o acesso e fruição plena das oportunidades que as sociedades atuais conseguem produzir nestes sistemas – e que configuram as possibilidades de integração social por via da inclusão (Amaro, 2000) - que devemos procurar perceber a qualidade da equidade e da coesão social, ou seja, a sua profundidade e amplitude. Sistemas que garantam a equidade e coesão social de forma efetivamente transversal a to- das as dimensões da vida humana são sistemas capazes de integrar todos os seus membros: porque são inclusivos, e porque o seu funcionamento permitirá, de for- ma universal, o desenvolvimento pessoal dos seus membros numa perspetiva de capacitação – empoderamento – para a conceção de projetos de vida satisfatórios (Amaro, 2000).

Na medida em que o género determina de forma clara as oportunidades de acesso e fruição das oportunidades geradas num dado tempo numa dada sociedade, há inevitavelmente que considerar a igualdade de género como um fator indisso- ciável da qualidade de vida. A discriminação assente em qualquer caraterística expressada e socialmente percetível em qualquer uma das dimensões de vida das pessoas, é um fator gerador de exclusão social, e a discriminação com base no género atravessa todas as sociedades humanas de uma forma durável e ampla, já que se faz efetivamente sentir em todos os sistemas e subsistemas sociais. A me- lhoria sustentada da qualidade de vida não é uma meta alcançável sem equacionar a influência do género nas disponibilidades – reais e percebidas – que as pessoas poderão mobilizar para os seus projetos de vida (Boutinet, 1990: 288), nem sem compreender as formas concretas que assume a exclusão pelo género.

No Projeto Lideranças Partilhadas a igualdade de género foi um dos temas es- truturantes. Nesta reflexão, ficar-me-ei por este breve e genérico destaque do seu papel na qualidade de vida das pessoas, porque o foco está deslocado para um patamar distinto: o da necessidade de tomar consciência dos conceitos, valores e ideologias que sustentam o trabalho social, repolitizando este campo de uma forma consequente com os sentidos desejados para o desenvolvimento social. Se as questões de conceptualização do sentido que damos ao desenvolvimento devem integrar o quadro de reflexão de qualquer cidadã/o, aos/às trabalhadores/ as do setor social exige-se-lhes que ajam quotidianamente, de forma sistemati- zada e sustentada, a partir do seu conceito de desenvolvimento – a sua ação pro- fissional organiza-se em torno da promoção do desenvolvimento de indivíduos/ grupos/comunidades, donde se impõe como central a necessidade de desocultar os entendimentos de desenvolvimento sobre os quais tomam decisões e as agem. Para os/as trabalhadores/as sociais que se inscrevem em perspetivas críticas para o trabalho social, é particularmente presente que o desenvolvimento pessoal e social – ou a melhoria sustentada da qualidade de vida – são conceitos-ação, e

que todas as suas representações, crenças, valores e princípios se verterão em práticas que, com eles, formam movimentos/sistemas de reflexão-ação mais ou menos congruentes, mas sempre dinâmicos e inscritos no pulsar da sociedade em que se inserem.

Daqui se parte para a pertinência da definição do trabalho social em prol do de- senvolvimento como campo de análise e reflexão, numa ótica que inclui a (re) conceptualização do trabalho social em si mesmo, enquanto processo e em relação às suas metas.