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DIáLOgO, INVESTIgAÇÃO E EMANCIPAÇÃO: PERCURSOS PARTILHADOS

1. Para uma ideia relacional de liderança

Num magnífico texto intitulado “Manifesto contra a distração ou Redes de Mu- lheres”, Maria de Lourdes Pintasilgo subscreve, sob o signo de Ana Hatherly78, a

seguinte intencionalidade: “Avaliar lucidamente as relações de poder informais (não-institucionais) e tornar claras as relações (ou os medos) a este nível” (Pin- tasilgo, 2005: 21). Simples e direta na sua intenção panfletária, esta passagem atravessa longitudinalmente as dimensões mais vulgares da problemática do po- der: as mais sombrias e, por isso mesmo, as mais esmagadoramente injustas. Ao dar como prioridade uma avaliação lúcida (suscetível de iluminar ou de trazer luz), o texto pressupõe a obscuridade como morada preferencial do poder, que, na sombra, se adivinha como particularmente temível. Desocultar, desvelar ou 78 “A distração/porém/ é uma forma superior de ocultação”

aclarar é então também uma forma de o desassombrar, avaliando-o, numa espécie de inversão que permite que tomemos posse do poder. Daí o caráter libertador do “dar a palavra”.

Discutir é um processo crítico de clarificação. No diálogo, na conversa, os silên- cios geridos e apagados por uma rotina impositiva, ela própria poderosa, são pos- tos em confronto, desalojando poderes: no registo do excerto citado, permitindo

avaliar o poder não manifesto, situá-lo e – isto o texto não diz – ensaiando parti- lhá-lo. Discutir poderes é talvez o primeiro passo para convertê-los noutra coisa,

sujeitando-os ao jogo dialógico e à exigência do pensamento. Como é sabido, não se combate eficazmente desigualdades sem este trabalho de desocultação e discus- são que, no que concerne às questões de género, adquire um peso particularmente simbólico e difícil de reapropriar. Uma desigualdade fundada numa tradição cul- tural, social e científica e que, como sabemos, se reproduz com grande impacto em redutos pessoais, sociais e profissionais, numa impunidade persistente e nefasta. A frase de Pintasilgo serve-nos de mote, na intenção de retomar a discussão em

torno de autoridade e de liderança, num exercício conceptual que permita susten- tar lideranças no solo das vivências democráticas. Ou, na senda de Pintasilgo, que possa servir para avaliar lucidamente as formas de manifestação de conceitos que se concretizam, indiscriminados, nos percursos pessoais, sociais e organizacionais mais diversos79.

1.1. Discutindo a autoridade

A noção de autoridade é ampla e polissémica. Vulgarmente associada a um poder concreto, a uma posição e a um estatuto determinados, a autoridade afigura-se, na sua aceção mais comum, como uma concentração de poder numa só pessoa ou entidade, da qual dependem todos/as os/as restantes que a não detêm. Porém, será forçoso reconhecer que nem sempre a autoridade se concretiza. Frequentemente, a autoridade não se manifesta diretamente, impondo-se de forma subliminar, discre- ta e inconsciente em atitudes e discursos que não raras vezes reproduzem o próprio mecanismo autoritário. A autoridade vive, nessa variação invisível, nos discursos das pessoas sobre as quais incide, que assim se tornam veículos principais de todo o ardil autoritário. A cada uma destas noções correspondem dois posicionamentos distintos, duas posturas principais: a primeira diz respeito ao modo como cada um/a diferencia e encara a relação com a pessoa ou entidade que detém a autori- dade; a segunda, mais complexa, tem a ver com a forma de lidar com a autoridade quando esta transcende o domínio da pessoa ou da entidade específica, “quando a autoridade é uma força social ou uma tradição cultural” (Bingham, 2008: 87). Todo um universo de distinções se impõe, desde logo admitindo-se a diferença entre uma autoridade monolítica, autolegitimada e manifestamente opressora e, 79 Uma diversidade auscultável e permanente ao longo dos workshops do Projeto “Literacia para a

Igualdade de Género e Qualidade de Vida: Lideranças Partilhadas”, numa riqueza que mereceria por si só um trabalho independente.

por outro lado, uma autoridade social e simbolicamente induzida, alimentada pelas interações e alicerçada na própria herança cultural. Na primeira das ace- ções estaríamos perante o que chamaríamos uma autoridade de imposição, na segunda, confrontámo-nos com uma autoridade de ocultação. Encarar a noção de autoridade, numa ou noutra das conceções referidas, parece induzir um juízo de valor negativo, capaz de neutralizar o reconhecimento da omnipresença da noção, anulando no mesmo gesto as múltiplas vias do seu questionamento e da sua defi- nição. O que para já se encontra por pensar é uma variação partilhada e questiona-

dora de autoridade, a que chamaríamos uma autoridade de relação, mas que está

amplamente dependente de uma orientação crítica e emancipatória, obscurecida pelo uso mais lato do termo. Entre o que se oculta estará uma relação não garan- tida entre autoridade e liderança, que se relacionam sem que se confundam, mas cuja relação dependerá sempre de um gesto de problematização e de crítica capaz de precaver uma conceção de liderança que, sem se descartar completamente de uma noção transferível e pontual de autoridade, não se poderá confundir com ela. Desde logo, pelo que se deixa envolver na amplitude do termo ‘autoridade’, como na subtileza marcada num plural ‘lideranças’. Ao não se problematizar a autori- dade, ao não se estabelecer diferença entre autoridade e liderança, branqueia-se a possível relação entre dois termos distintos, por não se reconhecer que à historia da autoridade, descontínua e sinuosa, equivale-se – sem que forçosamente se cor- responda – uma evolução não linear das definições de liderança.

1.2. De Arendt a gadamer

A este respeito, torna-se pertinente revisitar Hannah Arendt, quando associa a ambiguidade da noção de autoridade com uma crise generalizada das mais tradi- cionais manifestações autoritárias. Numa muito curiosa reflexão, Arendt coloca a autoridade em direta oposição com a coação ou a violência; a autoridade, quando a há, anula qualquer ato de força ou de imposição, mas também exclui qualquer debate ou legitimação exterior. Nas palavras de Arendt:

(…) o facto é que a autoridade exclui o uso de meios exteriores de coação; quando se usa a força, isso significa que a autoridade falhou. Por outro lado, a autoridade é incompatível com a persuasão, já que esta pressupõe uma paridade e funciona

através de um processo de argumentação (Arendt, 2006: 108. Itálico nosso).

A autoridade é, na impiedosa análise de Arendt, um sintoma de desequilíbrio pro- fundo e inquestionável, de tal forma que qualquer processo de aproximação, (des) equilíbrio ou legitimação correria o risco de anular a sua definição. A autoridade é solitária e inalcançável. Situa-se numa ordem silenciosa e prioritariamente sim- bólica, alheia ao processo de argumentação, isto é, à partilha e à paridade. A auto- ridade não é relacional, por assentar numa estabilidade hierárquica prévia em que todos os elementos reconhecem uma ordenação estabelecida. Se existe, à laia de boa notícia, a oposição à coação pela força – que agrediria a autoridade enquanto

inquestionado absoluto e consensual – por outro lado estamos no pólo oposto da partilha, da possibilidade de diálogo ou da conversa, dado que nos encontramos longe da horizontalidade ou da negociação não hierárquica.

Uma possível perda de autoridade, a sua crise, corresponderia então a um genera- lizado abalo de fundamentos do mundo moderno, em que a ânsia de novos ordena- mentos do mundo, deslocalizados dos lugares mais instituidamente autoritários80,

revelam a recusa deste reino silencioso e seguro, docilmente traduzido numa man- sa vigência autoritária. Um reino ou um domínio que o diálogo, a conversa, po- dem contrariar desde a origem, no intuito de operar um desvio sobre a estagnação silenciosa em que a autoridade se alimenta, para, deste modo, gizar percursos de partilha, empoderamento e participação com a discussão direta das representações de liderança nos espaços público e privado81.

Já Hans-Georg Gadamer assinala, na sua abordagem fenomenológico-hermenêu- tica, que na altura em que se impõe pela declaração ou pela imposição, toda a autoridade é em si mesma pouco autoritária (Gadamer, 1997b: 348). Num sentido distinto do de Arendt, a análise gadameriana de autoridade aponta para o que chama uma “autoridade produtiva”, caracterizada por ser uma autoridade diferida, assente no exterior de cada sujeito. Esta “autoridade produtiva” opõe-se a uma “autoridade restritiva”, esta unicamente alimentada pela unilateral reclamação de um poder. Torna-se interessante notar que todo o cabimento da “autoridade pro- dutiva” se determina exteriormente: nos/nas outros/as, nos textos, na cultura e nas aprendizagens. Na verdade, este sentido de autoridade desliga-se totalmente do poder e do circuito da obediência, por ter a ver fundamentalmente com o conhe- cimento e sua valorização (Cf. Gadamer, 1997b: 347-348). Toda a “autoridade produtiva” advém da relação, cresce e fundamenta-se relacionalmente, sendo fator de possibilidade de uma hermenêutica da compreensão. Vista desta perspetiva, a autoridade sustenta, em vez de invalidar, todo o ato emancipatório de afirmação e de reconhecimento da outra pessoa como fonte (inesgotável) de aprendizagem, interpretação e mistério sem apropriação.

Sublinha-se uma abordagem à noção de autoridade assente na autoridade do/a outro/a, em oposição ao autoritarismo frágil e autoimposto apoiado unicamente no poder. Aqui, o plural ‘lideranças’, principalmente porque ‘partilhadas’, parece poder traduzir sociologicamente o que Gadamer entendeu por “autoridade produ- tiva”. No seu processo de apóstrofe de hierarquias, a partilha legitima deliberações e permutas de sentido, sustentadas num método de conversação que se reclama, a par e passo, do uso circulatório da palavra em partilhas.

80 Lugares tradicionais de autoridade que, ao se desligarem da sua dimensão autoritária, se reconstro- em em si mesmos e na sua definição. Veja-se, referindo os exemplos mais óbvios e eventualmente mais relevantes neste contexto: a igreja e o ecumenismo; o poder político e a democracia; a família e a sua redefinição alargada; o homem na sua preponderância genérica de humanidade.

81 Tal como consta nas linhas de apresentação do Projeto “Literacia para a Igualdade de Género e Qualidade de Vida: Lideranças Partilhadas”.

Partilhas, pois, que põem sob foco de discussão e crítica os mais silenciosos ter- renos da autoridade. Partilhas que contornam as mais estagnadas regiões de con- senso, possibilitando passagens e concedendo lugar ao confronto salutar, refletido e escrutinador de uma certa rotinização de práticas. Do consenso ao dissenso, do silêncio à palavra, do sujeito à relação, estas passagens possibilitam a erosão de um silêncio autoritário, em favor de lideranças que se querem partilhadas82. De

lideranças que se processam como consequência do próprio fluir democrático, e que, por isso mesmo, se afirmam como lideranças relacionais.

Construir lideranças não-autoritárias, geradas pela construção conjunta de uma outra noção de autoridade, passará inevitavelmente por verter a autoridade em

liderança, transformar a liderança em lideranças, converter a tentação sobera-

nista numa interação partilhada. Reconhecer a dimensão sócio-cultural das desi- gualdades implica uma literacia, ou seja, uma interpretação de mundo que ponha a descoberto as dimensões subliminares da desigualdade, como a solidificação dos estereótipos que regem e sedimentam posições autoritárias. Torna-se neces- sário um processo de conscientização que, pondo em jogo o mesmo processo de partilha que sustenta, seja capaz de iluminar criticamente os veios de censura e de autocensura geradores de minimização, resignação e apagamento presentes na dialética autoridade – submissão. Propomos, neste mesmo sentido, uma ética da confrontação em alternativa ao silêncio autoritário.