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PRODUzIR CONHECIMENTO A PARTIR DAS PESSOAS teresa martinho toLdy

3. Direito ao silêncio

Contudo, se o acesso à palavra para nos dizermos a nós mesma/os é um direito, o silêncio também o é: como se dizia no Workshop realizado com o grupo de dina- mizadores/as sobre “Aprendizagem pela Conversa na Literacia para a Igualdade de Género”, no âmbito do nosso projeto (Literacia para a Igualdade de Género e

Qualidade de Vida: Lideranças Partilhadas), “o silêncio pode ser uma poderosa

forma de comunicação”, “o silêncio tem muitas linguagens”:

(…)? Será ele uma expressão de timidez, pressupondo que há o direito ao silêncio? Ou seja, ao contrário de na prisão de Abu Ghraib há o direito de uma pessoa calar- -se, portanto, não dizer, não falar. (…) A participação não é só a verbalização, a

expressão por palavras.

Quais poderão ser os desafios colocados à palavra por silêncios que se constituem como formas de “resistência ao discurso regulador” (como se pergunta Wendy Brown, 2005: 89), já que “qualquer linguagem de regulação, incluindo aquela que originariamente foi pensada em prol da emancipação, tem potencial para se tornar oficial”? Uma das linguagens que, segundo Wendy Brown correm esse risco é, precisamente, a do universalismo feminista. Mas, vejamos como a autora chega a esta conclusão. Partamos da ideia central do seu texto intitulado – significativa- mente – “Freedom’s Silences”: o silêncio e a palavra não têm de significar opostos. A palavra é um direito: a insurreição exige a quebra do silêncio por parte daqueles

que são silenciados. Contudo, segundo Brown, “apesar de os silêncios nos discur- sos de dominação serem um lugar de insurreição ruidosa, apesar de serem corre- dores para encher de contra-relatos explosivos, também é possível transformar a quebra do silêncio num fetiche” (Brown, 84). A autora pergunta-se, aliás, se “a nossa crise de verdade contemporânea não se transformou numa torrente infini- ta de palavras sobre nós mesmo/as, palavras que presumem escapar aos desafios epistemológicos da verdade, por serem pessoais ou experienciais” (Brown, 84-85). Neste sentido, parece haver um esvaziamento de si no tornar público todos os as- petos da vida, mesmo (senão mesmo precisamente) os mais dolorosos. E o silêncio pode ser considerado “um valor político, uma forma de preservar certas práticas e dimensões da existência do poder regulador, da violência normativa, assim, como dos raios escaldantes da exposição pública” (Brown, 85). É que o trazer à lingua- gem também pode abrir a porta a usurpações da palavra – mesmo discursos eman- cipatórios podem tornar-se reguladores, quando se consolidam institucionalmente, por exemplo, e quando pretendem encerrar os sujeitos nas categorias que estabele- cem para eles – mesmo que, supostamente, com intenção de os defenderem. Assim, segundo a autora, a tentativa legislativa de quebrar o silêncio em torno das

experiências de subordinação das mulheres, por vezes, acaba por voltar a impor- -lhes outros silêncios: a que mulheres se refere um discurso a-histórico, univer- salista, legal? Esta normatividade universalizante pode ocorrer, igualmente, nos discursos feministas que “tipificam” os comportamentos e as pessoas, com uma dupla consequência: a de poderem considerar “atípicos” os comportamentos e as pessoas que não se reveem em “códigos feministas fechados” e a de encerrarem as pessoas “em comportamento e situações típicas”:

Assim, o adulto que não sofre manifestamente com a sua experiência sexual na infância, a lésbica que não sente vergonha, a mulher de cor que não se identifica primeira ou “correctamente” com a sua identificação como tal – estas figuras são excluídas como membros bona fide das categorias de identidade que também as reclamam. O seu estatuto dentro desses discursos é de um ser “em negação”, que

sofre de “falsa consciência”, ou que é “um traidor à sua raça”. Esta é o processo de constituição da norma em tradições de “quebra do silêncio”, que, ironicamente, silenciam e excluem as próprias pessoas que essas tradições pretendem empoderar. Ao silenciarem tacitamente aqueles que não partilham as experiências daqueles cujo sofrimento é mais marcante (ou que o discurso produz como marcadamente em sofrimento), estas práticas também condenam aqueles cujo sofrimento elas re- gistam a uma identificação permanente com esse sofrimento (Brown, 92).

Por isso, o silêncio é um direito à construção de uma identidade que se rebela con- tra a sua regulação através de uma palavra interpretativa que não é da/o própria/o ou que pretende abarcar toda a realidade da/o própria/o, como se em vez de mo- vimento, o sujeito fosse imagem parada, como se uma imagem pudesse dizer toda a identidade.

Conclusão

A evocação das vozes das autoras referidas pretendia chamar a atenção para al- guns dos desafios que se colocam à construção de conhecimento em perspetivas feministas. O primeiro deles diz respeito à própria demanda de objetividade no conhecimento: não parece óbvio que abdicar de uma objetividade pretensamente assexuada e sem-lugar exija abdicar da própria demanda de objetividade. Esta estará no reconhecimento de que todas as formas de conhecimento são situadas e, por isso, parciais, parcelares, incompletas.

O segundo desafio está relacionado com este primeiro: se o sujeito é relevante para a produção de conhecimento, se é um sujeito situado, como se fará ouvir a sua voz, melhor, as suas vozes, pois falamos de sujeitos plurais? Será útil rever cri- ticamente discursos feministas burgueses, bem-falantes, nos quais as “outras mu- lheres” são “apresentadas” e “representadas”, sem terem uma voz, como se a sua auto-consciência fosse insuficiente para a interpretação da sua própria realidade. O terceiro desafio resulta do direito a um dizer que rompe formas de silêncio opressivas e do direito ao silêncio face à tentação da palavra dos outros para cap- turar a palavra da/o própria/o, sequestrando, mais uma vez, através de discursos reguladores, aquilo que é considerado “relevante” ou “irrelevante” para uma lei- tura feminista.

Em suma, o desafio está em procurar formas de conhecimento surgidas das pró- prias pessoas e não impostas às pessoas. Vulnerável? Muito. Mas, como diria Don- na Haraway (1988: 590), “os nossos mapas exigem demasiadas dimensões” para que uma só metáfora ou uma só linguagem nos bastem.

Referências bibliográficas

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DIáLOgO, INVESTIgAÇÃO E EMANCIPAÇÃO: