• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 A EFICÁCIA TEMPORAL DAS DECISÕES DE

4.4 EFEITOS TEMPORAIS DA DECISÃO DE

4.4.1 A postura tradicional

A Constituição Federal de 1988, a exemplo das anteriores, não contém

qualquer previsão acerca do tipo de censura a qual deva ser submetida a norma

inconstitucional.

500

“a jurisdição constitucional brasileira tem sido progressivamente conformada de modo a conduzir ao triunfo definitivo do modelo europeu, concentrado e abstrato, de fiscalização da conformidade de normas à Constituição Federal” (JARDIM-ROCHA, José. Supremacia da Constituição ou Supremacia do "defensor" da Constituição? O stare decisis e o efeito vinculante nas decisões da Suprema Corte. Revista Jurídica, v. 7, n. 73, jun.-jul. 2005, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_73/artigos/JoseJardim_rev73.htm>. Acesso em: 30 set. 2006).

501

Sobre a matéria, confira-se MENDES, Gilmar Ferreira. Teoria da Legislação e Controle de

Constitucionalidade: Algumas Notas. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/teoria_da_legislacao_e_controle_de_constitucionalidade_algumas_nota

Entretanto, o dogma da nulidade da lei inconstitucional arraigou-se na tradição

do direito brasileiro

502

. Tal definição resultou da construção doutrinária e jurisprudencial,

marcadamente influenciada, em um primeiro momento, pela sistemática norte-americana,

recebida no Brasil sem maiores questionamentos.

Com efeito, consoante visto acima, o sistema brasileiro de controle de

constitucionalidade, em sua fase inicial, era exclusivamente concreto, difuso e incidental, e,

inspirado no modelo norte-americano, acolheu a idéia da correspondência entre o vício da

inconstitucionalidade e a sanção de nulidade da norma impugnada.

A transposição dessa concepção para o Brasil se deveu sobretudo ao trabalho

de Rui Barbosa, para quem poderiam ser identificados três dogmas fundamentais no direito

político brasileiro: (1) os atos inconstitucionais do Congresso ou do Poder Executivo são

nulos; (2) a nulidade desses atos se autentica pelos tribunais; (3) pronunciada pelo tribunais, a

nulidade abrange toda a existência do ato, retroagindo até sua edição, e obliterando-lhe todos

os efeitos

503

.

Assim, no entender de Rui Barbosa, “tôda medida, legislativa, ou executiva,

que desrespeitar preceitos constitucionais, é, de sua essência, nula” (destaques no

original)

504

.

Por outro lado, para o referido autor, cabia rejeitar a possibilidade de controle

por via direta e principal, devendo a fiscalização da constitucionalidade das leis e atos

normativos ocorrer apenas em sede incidental e concreta, por ocasião da análise da existência

de ofensa a um direito individual pelo Poder Judiciário. Tais atos reconhecidos nulos

deveriam ser considerados como se nunca tivessem existido; seriam írritos, não lhes

assistindo, desde o início de sua vigência, a mínima autoridade legal. A declaração de

inconstitucionalidade, entretanto, somente produziria efeitos entre os litigantes do caso

concreto, mantendo-se a validade do ato com relação a todos que não demandaram

judicialmente sua nulidade

505

.

502

MENDES, Gilmar Ferreira. As decisões no controle de constitucionalidade de normas e seus efeitos. Revista da Escola Nacional da Magistratura, a. II, n 3, Brasília, Escola Nacional da Magistratura, abr.-2007, p. 24. No mesmo sentido: SARMENTO, Daniel. Eficácia temporal do controle de constitucionalidade (o princípio da proporcionalidade e a ponderação de interesses) das leis. Revista de Direito Administrativo, n. 212, abr.-jun. 1998, p. 27.

503

BARBOSA, Ruy. Os Actos Inconstitucionaes do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal. Rio de Janeiro: Companhia Impressora, 1893. In Obras Completas de Ruy Barbosa. Trabalhos Jurídicos. V. XX, T. V, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p. 196.

504

BARBOSA, Ruy. op. cit., p. 61. 505

Os juristas pátrios, por muito tempo, limitaram-se a repetir as lições referidas,

sem a preocupação em desenvolver uma doutrina genuinamente nacional, e consentânea com

as peculiaridades aqui vigentes. Afirmou-se, sem maiores questionamentos, a nulidade do ato

normativo inconstitucional, e a conseqüente natureza declaratória da decisão de

inconstitucionalidade, que deveria, então, produzir necessariamente efeitos retroativos

506

.

Nesse contexto, conforme observa Paulo Roberto Lyrio Pimenta

507

, abalizada

corrente doutrinária passou a defender a existência de um princípio constitucional implícito da

nulidade da norma inconstitucional

508

.

Oportuno transcrever, neste ponto, a observação de Alfredo Buzaid, segundo a

qual “sempre se entendeu entre nós, de conformidade com a lição dos constitucionalistas

norte-americanos, que toda lei, adversa a Constituição, é absolutamente nula; não

simplesmente anulável”

509

.

Nessa perspectiva, fundada a inconstitucionalidade na antinomia entre lei e

Constituição, e baseando-se a solução adotada no princípio da supremacia da Constituição

sobre a lei ordinária, atribuir a esta uma eficácia transitória, enquanto não afastada pela

sentença judicial, equivaleria a negar durante todo esse tempo a autoridade da Constituição.

506

BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2. ed., Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 140-141. No mesmo sentido, confira-se: ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 48.

507

PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. A atribuição de efeitos prospectivos à decisão de inconstitucionalidade em matéria tributária em face da recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista do Tribunal Regional Federal 1ª Região,v. 19, n. 1, jan. 2007, Brasília, p. 63.

508

Nesse sentido, confira-se Gilmar Ferreira Mendes, para quem o direito brasileiro atribui hierarquia de norma constitucional ao postulado da nulidade das leis inconstitucionais. Segundo este autor, a Constituição Federal de 1988 “não parece fornecer qualquer fundamento para a aplicação indiscriminada da lei inconstitucional. O princípio do Estado de Direito e a vinculação dos poderes estatais aos direitos fundamentais, estabelecida no art. 5º, §1º, da Constituição, indicam que não basta a promulgação de uma lei. A lei exigida pela Constituição, tal como ocorre no Direito alemão, não pode ser qualquer lei, mas lei compatível com a Constituição”. Assim, “o princípio do Estado de Direito (art. 1º), a vinculação dos poderes estatais aos direitos fundamentais (art. 5º, §1º), a proteção dos direitos fundamentais contra eventual mudança da Constituição (art. 60, §4º), bem como o processo especial para a revisão constitucional (artigo 60), não só ressaltam a diferença entre lei e Constituição e estabelecem a supremacia desta sobre aquela como também fixam as condições que devem ser observadas na promulgação das leis ordinárias”. Desta forma, “a aplicação geral e continuada da lei considerada inconstitucional representaria uma ruptura com o princípio da supremacia da Constituição” (MENDES, Gilmar Ferreira. As Decisões no Controle de Constitucionalidade de normas e seus efeitos. Revista da Escola Nacional da Magistratura, a. II, n 3, Brasília, Escola Nacional da Magistratura, abr.-2007, p. 57-58). Ainda no sentido da hierarquia constitucional do postulado da nulidade das leis inconstitucionais, confira-se: SARLET, Ingo Wolfgang. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: alguns aspectos controversos. In TAVARES, André Ramos (coord.). Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001, p. 158-159; CLÈVE, Clèmerson Merlin. Declaração de inconstitucionalidade de dispositivo normativo em sede de juízo abstrato e efeitos sobre os atos singulares praticados sob sua égide: parecer. Boletim de Direito Administrativo, v.14, n.6, p.364-366, jun., 1998, p. 365.

509

Nesses termos, para o referido constitucionalista, a eiva de inconstitucionalidade atingiria a lei no berço, ferindo-a ab initio, podendo-se afirmar, então, que a lei não chegou a viver, nasceu morta, não teve, assim, nenhum único momento de validade (BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. Revista forense, v. 55, n. 179, p. 14-37, set.-out. 1958, p. 34).

Por esta razão, se a lei ordinária pudesse adquirir validade, ainda que temporariamente,

resultaria daí uma necessária suspensão da eficácia da Constituição durante o período de

vigência da lei

510

. Trata-se da posição manifestada expressamente em Marbury v. Madison.

Uma lei não poderia, portanto, a um só tempo, ser e deixar de ser válida. Na

verdade, até o julgamento pelo Tribunal, a lei seria executória, embora inválida, razão pela

qual a sentença que decretasse a inconstitucionalidade seria predominantemente declaratória,

não predominantemente constitutiva, retroagindo seus efeitos até o nascimento da lei (eficácia

ex tunc), o que autorizaria a revisão de todas as situações jurídicas, mesmo aquelas

decorrentes de sentença transitada em julgado, mediante ação rescisória

511

.

Nesse sentido, Francisco Campos, afirma ser a nulidade a sanção designada em

nosso regime para a inconstitucionalidade dos atos do Governo e a Legislatura

512

. E

aparentemente equiparando as noções de inexistência e nulidade, consigna o referido autor

que “um ato ou uma lei inconstitucional é um ato ou uma lei inexistente; uma lei

inconstitucional é lei apenas aparentemente, pois que, de fato ou na realidade, não o é”. Desta

forma, “o ato ou lei inconstitucional nenhum efeito produz, pois que inexiste de direito ou é

para o Direito como se nunca houvesse existido”, razão pela qual os tribunais

ao reconhecerem a inconstitucionalidade de uma suposta lei, não a anulam ou vetam, mas, apenas, reconhecem e declaram a inexistência do ato como lei, constatam que o ato em litígio não é manifestação da vontade do povo tal como se acha prévia e solenemente declarado no instrumento constitucional513.

Da mesma forma, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desde o

princípio, manifestou-se no sentido da nulidade e conseqüente eficácia ex tunc da decisão de

inconstitucionalidade.

Assim, já em suas primeiras manifestações em sede de controle difuso de

constitucionalidade das leis, a Corte Suprema afirmou ser o ato inconstitucional nulo e

incapaz de produzir qualquer efeito, devendo ser considerado como se nunca tivesse

existido

514

.

510

BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. Revista forense, v. 55, n. 179, p. 14-37, set.-out. 1958, p. 35.

511

BUZAID, Alfredo. op. cit., p. 35-36. 512

CAMPOS, Francisco. Direito constitucional. V. I, São Paulo: Freitas Bastos, 1956, p. 405. 513

CAMPOS, Francisco. op. cit., p. 430-433. 514

O libelo é inepto; tal conclusão decorre das suas premissas. Com efeito, sendo como é, inconstitucional o Decreto de 7 de abril de 1892, que reformou o Marechal José de Almeida Barreto, ora apelado, contra a sua vontade e sem a idade compulsória ou outro motivo legal e privou-o do cardo de membro efetivo do Conselho Supremo Militar; como ofensa dos arts. 74, 76 e 77 da Constituição Federal; e sendo por isso nulo e incapaz de produzir qualquer efeito jurídico, pois considera-se como se jamais houvera existido, a conseqüência é a

Tal entendimento persistiu após a adoção da modalidade abstrata e concentrada

de controle de constitucionalidade. Nesse sentido, pode-se conferir o voto proferido pelo

Ministro Soares Muñoz, por ocasião do julgamento da Representação nº 971/RJ, quando este

afirma que

O efeito ex tunc da decisão declaratória de inconstitucionalidade constitui fator relevante em prol do julgamento da representação, ainda que revogada a lei no curso de ação direta, pois o acórdão, que acolher a argüição de inconstitucionalidade, fulmina a lei desde o seu berço e tem efeito de preceito no que concerne a invalidade dos atos praticados em decorrência das normas impugnadas515.

E igualmente prosseguiu com o advento da Constituição Federal de 1988 e a

instituição da ação direta de inconstitucionalidade. Assim, já na Ação Direta de

Inconstitucionalidade nº 02, o Ministro Paulo Brossard, então relator, consignou que

Segundo a doutrina consagrada, é ex-tunc o efeito da declaração de inconstitucionalidade. Por que ela é congênita à lei, ela pre-existe à declaração judicial. O julgado não muda a lei, fazendo-a nula quando era válida, apenas declara o vício pre-existente. A Corte verifica e anuncia a nulidade, como o joalheiro pode afirmar, depois de examiná-lo, que aquilo que se supunha ser um diamante, não é diamante, mas um produto sintético. O joalheiro não fez a pasta sintética, apenas verificou que o era.

Também a decisão judicial não muda a natureza da lei, como o joalheiro não mudou a natureza do suposto diamante.

Ela nunca foi lei, ele nunca foi diamante. Aquilo que se supunha ser um diamante e que o perito verificou ser um produto sintético, não deixou de ser diamante a partir da verificação do joalheiro, mas ab initio não passava de produto sintético.

Também a lei inconstitucional. O Judiciário não a fez inconstitucional, apenas verificou e declarou que o era. Por isso seu efeito é ex tunc516.

No mesmo sentido, oportuno transcrever trecho do voto proferido pelo

Ministro Celso de Mello, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 652-5/MA:

O repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição (JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Aplicabilidade das normas constitucionais", p. 202/204, 1968, RT). Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos revestidos de menor grau de

reintegração do apelado na efetividade do pôsto e a restituição à sede do juiz, com direito à percepção de vencimentos que deixou de receber durante a vigência do referido decreto e mais pronunciações legais (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Apelação Cível nº 112, j. em 19 set. 1895. In Obras Completas de Ruy Barbosa. Trabalhos Jurídicos. V. XX, T. V, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p. 227). 515

BRASIL. Representação nº 971/RJ. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Relator Ministro Djaci Falcão. Julgamento em: 03 nov. 1977. Publicação no DJ: 07 nov. 1978. Disponível em <www.stf.gov.br>. Acesso em: 26 set. 2007.

516

BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 02-1/DF. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Relator Ministro Paulo Brossard. Julgamento em: 06 fev, 1992. Publicação no DJ: 21 nov. 1997. Disponível em <www.stf.gov.br>. Acesso em: 26 set. 2007.

positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de sua ineficácia e de sua completa inaplicabilidade.

Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica.

Esse tem sido o entendimento doutrinário compatível com o sentido das Constituições rígidas, tal como a que hoje vigora no Brasil. E diversa não tem sido, neste tema, a orientação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cujo magistério, de um lado, sublinha a nulidade plena do ato inconstitucional, e, de outro, proclama - a partir de sua absoluta ineficácia jurídica - o caráter retroativo da declaração judicial que reconhece a sua incompatibilidade hierárquico-normativa com a Lei Fundamental.

É por essa razão que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos do passado com base nela praticados (RTJ 19/127), eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe - ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos - a possibilidade de invocação de qualquer direito (RTJ 37/165 - 55/744 - 102/671; RE 84.230- PR)517.

Percebe-se, então, que a doutrina e jurisprudência pátrias, na esteira de

Marbury v. Marshall (1803), equiparava as noções de inconstitucionalidade e nulidade,

produzindo esta sempre efeitos retroativos.