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CAPÍTULO 2 CONTROLE JURISDICIONAL DE

2.1 O MODELO AMERICANO DA JUDICIAL REVIEW

2.1.2 O julgamento de Marbury v Madison (1803)

Nesse contexto de “indeterminação constitucional”, Marbury v. Madison

(1803)

86

se destaca como o primeiro caso no qual a Suprema Corte assinalou que uma corte

federal tem o poder de recusar efeito a uma legislação do Congresso em razão de sua

incompatibilidade com a Constituição

87

.

O caso surgiu em um contexto de fortes traços políticos. Na eleição nacional

de 1800, o Partido Federalista, herdeiro das tradições dos Founding Fathers e titular do

governo nacional durante a primeira década de existência da União, perdeu o controle da

Presidência e do Congresso. Com o intuito de preservar ao menos uma esfera de Governo

para a causa federalista, e utilizando-se de um Congresso composto por parlamentares prestes

a deixar seus cargos, aprovou inúmeras leis de criação de novas posições judiciais, que

deveriam ser preenchidas pelo Presidente John Adams antes da expiração do seu mandato, em

04 de março de 1801

88

.

Entre os nomeados de última hora, estava William Marbury, designado para o

cargo relativamente sem importância de juiz de paz do Distrito de Colúmbia. O Senado

confirmou sua nomeação, porém John Marshall, então Secretário de Estado, não logrou

em Life of John Marshall” (MACIEL, Adhemar Ferreira. O acaso, John Marshall e o controle de constitucionalidade. Revista da AJURIS - Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, a. 34, n. 105, mar. 2007, p. 42).

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Nesse sentido, os casos Hylton v. United States (3 Dallas 171 – 1796), e Calder v. Bull (3 Dallas 386 – 1798), mencionados por CARR, Robert Kenneth. Supreme Court and judicial review. Westport: Greenwood, 1970, p. 57.

85

O primeiro caso em que a Suprema Corte reconheceu a nulidade de uma lei estadual face à Constituição foi Fletcher v. Peck (6 Cranch 87 – 1810), conforme anota CARR, Robert Kenneth. op. cit., p. 57.

86

5 U.S. 137 (1803). Disponível em: <http://supreme.justia.com/us/5/137/case.html>. Acesso em: 12 fev. 2007. 87

TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. V. I, 3. ed., Nova York: The Foundation Press, 2000, p. 207-208.

88

Esse episódio ficou conhecido como "midnight judges" (CARR, Robert Kenneth. Supreme Court and judicial review. Westport: Greenwood, 1970, p. 58). Durante a Assembléia Constituinte de 1787, os “nacionalistas” se dividiram em dois grupos com interesses nitidamente opostos: 1) Federalist Party: desejava um executivo forte, centralizado, destacando-se entre seus integrantes Washington, Hamilton e Adams; 2) Anti-Federalist Party: preocupado com a força do executivo federal proposto, que amesquinharia a autonomia dos Estados-membros da Federação e colocaria em risco as liberdades fundamentais dos cidadãos. Com a presidência de Thomas Jefferson, a facção partidária passou a ser chamada de Democratic Republican Party (MACIEL, Adhemar Ferreira. O acaso, John Marshall e o controle de constitucionalidade. Revista da AJURIS - Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, a. 34, n. 105, mar. 2007, p. 42-43).

entregar sua comissão antes de o Presidente Adams deixar o cargo. Ao assumir a presidência,

em 04 de março de 1801, o republicano Thomas Jefferson determinou ao seu Secretário de

Estado, James Madison, que não entregasse a comissão à William Marbury, documento sem o

qual este não poderia assumir o cargo

89

.

Em dezembro de 1801, William Marbury e outros prejudicados, objetivando a

entrega de seus títulos de nomeação, ingressaram com um writ of mandamus perante a

Suprema Corte, presidida por John Marshall (nomeado ainda no governo anterior), que

pronunciou a decisão hoje considerada um marco histórico do controle jurisdicional de

constitucionalidade das leis

90

.

Na apreciação da matéria, três questões foram analisadas e decididas: (1) tem o

requerente direito à comissão demandada?; (2) se ele tem o direito, e esse direito foi violado,

as leis desse país lhe asseguram uma medida?; (3) se lhe é assegurada uma medida, consistiria

essa em um mandamus a ser concedido pela Suprema Corte?

Quanto à primeira questão, a Corte decidiu que, nomeado o cidadão para o

cargo, e aposto pelo Secretário de Estado o selo em sua comissão, é desnecessária qualquer

outra solenidade para a validade do ato, inclusive sua entrega a quem de direito. Destarte, a

discricionariedade do Executivo pode ser exercida até a efetivação da nomeação para o cargo

inamovível (como era o de juiz de paz), momento após o qual o direito ao cargo passa a ser da

pessoa nomeada, que tem o poder absoluto e incondicionado de aceitá-lo ou rejeitá-lo.

No que se refere à segunda questão, afirmou-se ser da essência da liberdade

civil o direito de cada indivíduo de reclamar a proteção das leis sempre que sofresse uma

ofensa, máxima vigente em um governo de leis, e não de homens, como o dos Estados

Unidos.

Assim, nas hipóteses em que os chefes dos departamentos de Estado atuassem

como agentes políticos ou de confiança do Executivo, simplesmente para executar a vontade

do Presidente, ou mais propriamente para agir nos casos em que o Executivo possui

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CARR, Robert Kenneth. Supreme Court and judicial review. Westport: Greenwood, 1970, p. 59. 90

MACIEL, Adhemar Ferreira. O acaso, John Marshall e o controle de constitucionalidade. Revista da AJURIS - Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, a. 34, n. 105, mar. 2007, p. 42-43. Sugeriu-se, inclusive, que sua relação pessoal com o caso deveria, de acordo com a ética judicial, ter impedido Marshall de participar dessa decisão (CARR, Robert Kenneth. op. cit., p. 59). No mesmo sentido: STRAUSS, David A. On having Mr. Madison as a client. In: TUSHNET, Mark (ed.). Arguing Marbury v. Madison. Stanford: Stanford University, 2005, p. 40. Susan Low Bloch, entretanto, ressalta que, sob os padrões éticos da época, apenas conflitos financeiros acarretavam a suspeição do magistrado (BLOCH, Susan Low. Marbury redux. A comment on Suzanna Sherry. In TUSHNET, Mark (ed.). Arguing Marbury v. Madison. Stanford: Stanford University, 2005, p. 62).

discricionariedade legal ou constitucional, nada poderia ser mais claro que o fato de que tais

atos são apenas politicamente examináveis.

Mas nos casos em que um dever específico fosse assinalado pela lei, e direitos

individuais dependessem do exercício de tal dever, parecia ser igualmente claro o direito do

indivíduo que se considerasse lesado de lançar mão das leis do país para pleitear uma medida

judicial. A decisão excluiu da apreciação das cortes, então, apenas as questões políticas,

dentre as quais não se enquadrava o pleito formulado no caso em apreço.

Por outro lado, a medida judicial cabível seria o mandamus, já que inexistiria

qualquer outro remédio específico para compelir a autoridade governamental a praticar o ato

que, dentro de sua competência e dever, afigurava-se conforme o direito e a justiça, no

entender da Corte.

Restava, portanto, a última questão, na verdade prejudicial de toda a

argumentação anterior, concernente à competência da Suprema Corte.

O Judiciary Act de 1789, na Seção 13, enunciava, dentre as competências

originárias da Suprema Corte, a apreciação dos writs of mandamus, em casos autorizados

pelos princípios e costumes legais, em face de quaisquer cortes designadas, ou ocupantes de

cargos públicos, sob a autoridade dos Estados Unidos

91

.

Desta forma, aplicando-se o referido dispositivo, a Suprema Corte teria

competência para apreciar o writ of mandamus de William Marbury, impetrado face ao

Secretário de Estado.

Entretanto, e aí residiu a inovação, a decisão afastou a incidência da lei federal,

por entender que esta contrariava o Artigo III, Seção 2, da Constituição americana, segundo o

qual a jurisdição originária da Suprema Corte se restringia aos casos relativos a embaixadores,

outros ministros e cônsules, e àqueles que envolvessem um Estado da Federação

92

; nas

demais hipóteses, sua atuação seria como Corte de Apelação.

Conforme o entendimento da Corte, a distribuição entre jurisdição ordinária e

apelativa efetivada pela Constituição seria imperativa, não podendo, assim, ser modificada

pelo Congresso.

Desta forma, a autoridade concedida à Suprema Corte pelo Judiciary Act não

estaria assegurada pela Constituição, devendo-se, assim, inquirir se tal jurisdição poderia ser

91

UNITED STATES OF AMERICA. Judiciary Act of 1789 (September 24). Disponível em: <http://www.constitution.org/uslaw/judiciary_1789.txt>. Acesso em: 13 mar. 2008.

92

UNITED STATES OF AMERICA. Constitution of the United States. Disponível em: <http://www.legislationline.org/upload/legislations/61/d2/ceeed890b3e729faadc2563d289d.htm>. Acesso em: 13 mar. 2008.

exercida no caso em análise. Para responder a tal indagação, a decisão se fundamentou em

certas premissas, a seguir resumidas.

Primeiramente, a Corte assinalou o direito original do povo de estabelecer para

seu futuro governo princípios que, em sua opinião, devam conduzir à sua própria felicidade,

sendo esta a base sobre a qual toda a estrutura americana foi erigida. O exercício desse direito

original consubstanciaria um imenso esforço, que não poderia ser freqüentemente repetido.

Sendo assim, os princípios assim estabelecidos deveriam ser considerados fundamentais e

predispostos à permanência.

Tal vontade original e suprema seria responsável por organizar o governo e

assinalar aos diferentes departamentos seus respectivos poderes, podendo parar neste ponto ou

estabelecer certos limites que não deveriam ser ultrapassados por esses departamentos,

enquadrando-se nessa última hipótese o Governo dos Estados Unidos.

Desta forma, as competências do Poder Legislativo seriam definidas e

limitadas; e esses limites não poderiam ser confundidos ou esquecidos, tendo em vista ser a

Constituição escrita. Com efeito, que sentido haveria em limitar os poderes, e em registrar por

escrito tais limitações, se elas pudessem a qualquer tempo ser afastadas por aqueles que a

pretendessem restringir? A distinção entre um governo com poderes limitados e ilimitados

seria abolida se tais limites não confinassem as pessoas às quais eles são impostos, e se os

atos proibidos e permitidos tivessem a mesma obrigatoriedade.

Desta forma, colocar-se-iam duas alternativas, entre as quais não haveria meio

termo: o controle pela Constituição de qualquer ato legislativo a ela repugnante, ou a

possibilidade de o Legislativo alterar a Constituição por um ato ordinário. Assim, a

Constituição seria uma lei suprema, imodificável por meios ordinários, ou estaria no nível dos

atos legislativos ordinários, sendo alterável a critério do Legislador.

Se a primeira alternativa fosse verdadeira, então o ato legislativo contrário à

Constituição não seria lei. Entretanto, se verdadeira a segunda, então as constituições escritas

seriam tentativas absurdas do povo de limitar um poder que em sua natureza é ilimitado. Nos

termos do voto, porém, certamente todos que conceberam constituições escritas imaginaram-

nas como a lei suprema e fundamental da nação, e conseqüentemente a teoria de todo governo

deveria ser a de que o ato legislativo contrário à Constituição é nulo.

Nesse contexto, caberia indagar se as cortes estariam obrigadas a aplicar um

ato contrário à Constituição, não obstante a sua invalidade. Ora, segundo o entendimento

fixado na decisão, sendo expresso o âmbito e o dever do Poder Judiciário de dizer o direito, e

de expor e interpretar as regras quando de sua aplicação ao caso concreto, não poderiam ser

afastadas da função judicial a apreciação e a decisão do conflito entre a lei suprema e a lei

ordinária.

Por outro lado, se às Cortes cabe a guarda da Constituição, e sendo esta, como

visto, superior a qualquer ato ordinário do Poder Legislativo, então a lei suprema, e não o ato

ordinário, deveria conduzir o caso em que se manifesta o conflito.

Tal entendimento seria reforçado pelo próprio texto constitucional, ao

prescrever, em seu Artigo III, Seção 2, que o Poder Judiciário dos Estados Unidos se estende

a todos os casos nascidos sob a Constituição, e em seu Artigo VI, que os juízes prestariam

juramento se comprometendo a defender a Constituição

93

.

Seguindo esse raciocínio, afirmou a Corte a nulidade das leis federais

contrárias à Constituição, e a possibilidade de sua não aplicação pelo Poder Judiciário na

análise e julgamento dos casos particulares que lhe fossem apresentados, sendo oportuno

transcrever, neste ponto, trecho da ementa da decisão:

É expressivo o dever do Poder Judiciário dizer o que é a lei. Aqueles que aplicam a regra a casos particulares devem, necessariamente, esclarecer e interpretar a regra. Se há conflito entre duas leis, a Corte deve decidir acerca da incidência de cada. Se as cortes devem respeitar a Constituição, e a Constituição é superior a qualquer ato ordinário da legislatura, a Constituição, e não o ato ordinário, deve reger o caso ao qual ambos se aplicam94.

Assim, negando-se a conhecer o pleito de William Marbury e demais

impetrantes, a Suprema Corte decidiu favoravelmente ao Governo anti-federalista de Thomas

Jefferson, evitando, então, a possibilidade de recusa de cumprimento de eventual decisão

concessiva pelo Executivo

95

, o que enfraqueceria o respeito pelo Poder Judiciário, bem como

geraria o risco de um impeachment de seus juízes federalistas

96

.

93

UNITED STATES OF AMERICA. Constitution of the United States. Disponível em: <http://www.legislationline.org/upload/legislations/61/d2/ceeed890b3e729faadc2563d289d.htm>. Acesso em: 13 mar. 2008.

94

UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court. Marbury v. Madison. 5 U.S. 1 Cranch 137 (1803). Disponível em: <http://supreme.justia.com/us/5/137/case.html>. Acesso em: 12 fev. 2008.

95

Conforme observa David A. Strauss, o desprezo por uma decisão da Suprema Corte – algo que o Poder Executivo dificilmente chegaria sequer a considerar nos dias de hoje – era, aparentemente, uma opção realista em 1803 (On having Mr. Madison as a client. In: TUSHNET, Mark (ed.). Arguing Marbury v. Madison. Stanford: Stanford University, 2005, p. 38).

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Com o partido anti-federalista (republicano) no exercício do governo e com maioria nas duas casas do Congresso, os juízes da Suprema Corte, de linha federalista, corriam permanentemente o risco de impeachment durante esse período (TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. V. I, 3. ed., Nova York: The Foundation Press, 2000, p. 212-213). No mesmo sentido, CARR, Robert Kenneth. Supreme Court and judicial review. Westport: Greenwood, 1970, p. 69.

Entretanto, a decisão foi estruturada de modo a declarar a ilegalidade da

conduta de James Madison, assinalando, sobretudo, o poder do Judiciário de neutralizar uma

conduta do Executivo contrária à Constituição.

Ressalte-se, neste ponto, que a inadmissibilidade do writ of mandamus poderia

ter sido obtida, entretanto, com base em outros fundamentos

97

.

Primeiramente, o reconhecimento de um conflito entre lei e Constituição

poderia ter sido evitado. Com efeito, a redação do Ato Judiciário era suficientemente geral e

ampla a ponto de permitir interpretação no sentido de que a competência da Corte se

restringia a apreciar os tipos de writs enunciados na Constituição, bem como aqueles que a ela

chegassem em fase de apelação.

Ademais, poderia ter sido estabelecida uma versão limitada de judicial review,

restrita aos casos em que a legislação contrariasse o texto constitucional em parcela referente

à atuação e competência das Cortes, e não extensiva a todo ato legislativo do Congresso,

relativo a qualquer matéria (exceto a política).

Note-se, ademais, que o voto em análise é baseado somente em argumentos

lógicos, insuficientes para a conclusão ao final apresentada, como evidenciam as inúmeras

discussões existentes acerca da legitimidade do controle jurisdicional da constitucionalidade

dos atos dos demais Poderes.

Entretanto, independentemente das razões que levaram à escolha desse

caminho

98

, e das discussões acerca de sua legitimidade, não comportadas nos estreitos limites

deste trabalho, certo é que Marbury v. Madison (1803) se destaca como um marco na história

97

Sobre a matéria, confira-se CARR, Robert Kenneth. Supreme Court and judicial review. Westport: Greenwood, 1970, p. 67-68.

98

Afirma-se que a decisão no caso foi em parte resultado das conclusões dos juízes acerca do nível superior dos princípios constitucionais, mas que existiram certamente outros fatores de caráter mais realista que influenciaram a Corte Federalista nesta decisão. Nesse sentido, aponta-se que Marshall e sua Corte desejavam exercer a judicial review, pois esta forneceria aos juízes federalistas os meios de controlar eventuais excessos decorrentes da vitória de Thomas Jefferson nas eleições de 1800. Nesse contexto, o julgamento do caso em espécie teria sido utilizado deliberadamente para estabelecer um forte precedente que apoiasse tal possibilidade de controle, em uma época na qual a idéia de que as legislaturas poderiam ignorar princípios para favorecer facções dominantes era amplamente compartilhada. Confira-se, sobre a matéria, CARR, Robert Kenneth. op. cit., p. 68-70; TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. V. I, 3. ed., Nova York: The Foundation Press, 2000, p. 212. No mesmo sentido, Susan Low Block afirma que os demandantes não estavam realmente preocupados em assumir seus cargos, desejando, na verdade, oferecer à Suprema Corte esta oportunidade inacreditável de estabelecer a judicial review sem risco de oposição. Tanto é assim que os demandantes não impetraram novo mandamus perante a corte competente, eximindo-se de utilizar a argumentação extremamente favorável ao seu pleito desenvolvida pela Suprema Corte antes de reconhecer sua incompetência para processar e julgar a demanda (BLOCH, Susan Low. Marbury redux. A comment on Suzanna Sherry. In: TUSHNET, Mark (ed.). Arguing Marbury v. Madison. Stanford: Stanford University, 2005, p. 62-63).

da judicial review, e a Suprema Corte parece não estar disposta a reverter a competência e as

diretrizes nele firmadas há mais de dois séculos

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.