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CAPÍTULO 2 CONTROLE JURISDICIONAL DE

2.1 O MODELO AMERICANO DA JUDICIAL REVIEW

2.1.3 Principais características

O modelo americano de controle de constitucionalidade, diante dos

precedentes historicamente firmados e das diretrizes consolidadas no caso Marbury v.

Madison (1803), consagrou-se como sistema difuso, incidental e concreto. Desta forma, o

poder de fiscalização pertence a todos os órgãos judiciários, que o exercitam incidentalmente,

por ocasião do julgamento das causas que lhes são apresentadas.

Em conformidade com esse sistema, todos os órgãos judiciários, inferiores ou

superiores, federais ou estaduais, têm o poder e o dever de não aplicar as leis inconstitucionais

aos casos concretos submetidos à sua apreciação.

Destarte, chega-se à Suprema Corte

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mediante o iter das normais

impugnações e recursos, não existindo qualquer tipo especial de procedimento para as

questões constitucionais, decididas quando se manifestem em cada caso determinado,

qualquer que seja a natureza dos direitos em questão e dos recursos interpostos

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.

No modelo americano, portanto, as questões de constitucionalidade das leis

não podem ser submetidas ao julgamento dos órgãos judiciários em via principal, ou seja, em

adequado e autônomo processo constitucional instaurado ad hoc, devendo ser argüidas

99

Nesse sentido, cf. CARR, Robert Kenneth. Supreme Court and judicial review. Westport: Greenwood, 1970, p. 66. Conforme observa Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, pelo menos três vezes, em meados do século em que foi enunciada, a doutrina em questão esteve a ponto de perder sua eficácia. Assim, mais de uma vez o Poder Executivo americano procurou abalar a legitimidade do controle exercido pelo Judiciário. Isso teria ocorrido sob a Presidência de Andrew Jackson, no caso do Banco dos Estados Unidos, sob a Presidência de Abraham Lincoln, no caso do escravo Dred Scott, e, mais recentemente, sob a Presidência de Roosevelt. Vencidas, porém, essas três crises e persistindo a Suprema Corte em seu ponto de vista, consolidou-se a doutrina de Marshall (BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2. ed., Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 14-17).

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Mais de meio século separa Marbury v. Madison do segundo caso em que a Corte invalidou um ato do Congresso, e não foi senão após a Guerra Civil que a Suprema Corte começou a exercer esse poder com alguma freqüência. Seria, então, um exagero, sustentar que, sem a decisão em Marbury v. Madison, o Judiciário poderia nunca ter intentado afirmar seu controle sobre a legislação federal, mas certamente a importância dessa prematura afirmação de poder por John Marshall não pode ser subestimada. Nesse sentido, cf. CARR, Robert Kenneth. op. cit., p. 57.

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A Suprema Corte repousa no topo da estrutura judicial federal, sendo a única corte federal efetivamente estabelecida pela Constituição, pois todas as outras foram organizadas pela lei sob a autoridade conferida ao Congresso pelo texto constitucional (CARR, Robert Kenneth. op. cit., p. 10).

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Ressalte-se que, entre 1891 e 1925, o Congresso aprovou uma série de leis estabelecendo que muitas apelações para a Suprema Corte deveriam passar pelo writ of certiorari, que confere à corte superior uma grande medida de poder discricionário para escolher os casos que serão objeto de revisão, e então analisar apenas aqueles casos que apresentem questões de maior importância (CARR, Robert Kenneth. op. cit., p. 10-11).

somente incidenter, isto é, no curso e por ocasião de um case or controversy, e só na medida

em que a lei, cuja constitucionalidade se discuta, seja relevante para a decisão do caso

concreto

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.

Desta forma, os tribunais norte-americanos enfrentam e resolvem as questões

de constitucionalidade das leis apenas dentro do contexto de uma lide concreta e somente na

medida em que isso se torne necessário para a decisão do caso concreto, independentemente

do tipo de procedimento judiciário

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.

Nesse contexto, a decisão no controle americano possuiria apenas eficácia inter

partes, limitada ao caso concreto e aos pontos decididos na sentença.

Com efeito, nos sistemas do common law, tal como o norte-americano, vigora

a doutrina do stare decisis et non quieta movere (mantenha-se a decisão e não se disturbe o

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Em alguns casos, certas autoridades federais ou estaduais podem intervir no processo (amicus curiae brief), mas então figuram como simples terceiros interessados em facilitar a tarefa dos juízes, manifestando sua opinião sobre a questão em debate (BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. Revista forense, v. 55, n. 179, set.-out. 1958, p. 16).

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Thomas Cooley enuncia, nesse contexto, uma série de regras e princípios que devem nortear o Poder Judiciário no exercício da interpretação dos dispositivos constitucionais, e que evidenciam as principais características do sistema americano de controle de constitucionalidade. Primeiramente, afirma que o dever de examinar uma questão de Direito Constitucional pode recair sobre um tribunal de qualquer grau, tanto da jurisdição federal como da estadual, pois o seu poder de aplicar a lei ao caso controvertido implica, necessariamente, o poder de decidir qual lei deve prevalecer. No caso dos tribunais, em regra, devem estar presentes no julgamento todos os magistrados que o compõem. Ademais, o juiz ou tribunal, a princípio, somente se pronunciará sobre a validade de uma lei por oportunidade do julgamento de um caso concreto (case or controversy limitation) e se tal manifestação for absolutamente necessária para a decisão da questão apresentada (disposing of cases on non-constitutional grounds), sendo necessário, outrossim, que a demanda seja suscitada por pessoas cujos direitos tenham sido afetados pelo ato normativo. Por outro lado, a conveniência, a justiça e a oportunidade da legislação devem ser exclusivamente determinadas pelo Poder Legislativo, razão pela qual o Poder Judiciário não pode reconhecer a invalidade de uma lei sob a simples alegação de ser ela injusta e opressiva, sem que haja uma violação da Constituição. Ressalta, outrossim, que os debates havidos na Convenção Constituinte, em O Federalista e nas Convenções dos Estados devem ser considerados na interpretação de dispositivos constitucionais que pareçam ambíguos ou obscuros. Além disso, a simples dúvida acerca da constitucionalidade da lei não é motivo suficiente para afastar sua aplicação (the benefit-of-the-doubt rule), admitindo-se, outrossim, o reconhecimento da invalidade parcial do ato normativo (parcial validation of statutes). Da mesma forma, a validade do ato legislativo não depende dos motivos que levaram o legislador a adotá-lo (the issue of statute motivation). Por fim, o ato legislativo inconstitucional é nulo para todos os fins, devendo ser considerado como se nunca tivesse existido. Por esta razão, não pode servir de fundamento para contrato algum, não pode criar direitos, não pode proteger pessoa alguma que tenha atuado sob a sua égide, não sendo possível atribuir a condição de delinqüente àquele que se tenha recusado a obedecer-lhe (COOLEY, Thomas. Princípios gerais de Direito Constitucional dos Estados Unidos da América do Norte. Campinas: Russell, 2002, p. 152-160). A essas regras, segundo Robert Kenneth Carr, a Suprema Corte teria acrescentado as seguintes: 1) a lei deve ser interpretada de tal forma que se permita mantê-la, se assim for possível (preferring a favorable interpretation of a statute); 2) não devem ser decididas questões de constitucionalidade em casos que apresentem as chamadas “questões políticas”, inerentes ao poder discricionário dos outros departamentos governamentais (CARR, Robert Kenneth. Supreme Court and judicial review. Westport: Greenwood, 1970, p. 185-197). Conforme salienta esse autor, todavia, todas essas regras foram, em algum momento, sujeitas a exceções ou restrições (CARR, Robert Kenneth. op. cit., p. 199-200).

que foi decidido), segundo a qual “um princípio de direito deduzido através de uma decisão

judicial será considerado e aplicado na solução de um caso semelhante no futuro”

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.

Assim, no processo de análise e interpretação das leis, as decisões anteriores

das cortes têm valor de precedente e são seguidas nos casos seguintes em que o fundamento

fático seja similar

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.

Em certos casos, ademais, tais precedentes têm caráter vinculativo, conforme

ressalta Charles D. Cole:

(...) na coluna jurídica americana, as interpretações e determinações de uma Corte de segunda instância estadual, envolvendo lei estadual, ou uma Corte de segunda instância dos Estados Unidos, uma Corte recursal federal, ou a Suprema Corte dos Estados Unidos (doravante designada por “Suprema Corte”), envolvendo lei federal, constituem precedente vinculante se a decisão da Corte for exarada por voto da maioria da respectiva Corte. Assim, essencialmente, uma decisão da Corte que é precedente é “lei”, e vinculante para as Cortes subordinadas à Corte de última instância em questão, até que tal precedente seja derrogado ou modificado por um precedente subseqüente. (...) A decisão de uma Corte de primeira instância não constitui precedente vinculante. A decisão de uma Corte recursal estadual é precedente dentro do sistema estadual para as questões estaduais decididas e, quando o caso começa na Corte distrital federal, a decisão da Corte recursal federal é precedente para o circuito. O precedente para o circuito no sistema federal é, contudo, sujeito a ser revogado por uma contradecisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, que estabelece precedente nacional. A decisão da Suprema Corte é vinculante em todas as Cortes, sejam estaduais ou federais, uma vez que a interpretação é aplicável à Constituição federal, leis promulgadas de acordo com a Constituição, ou tratados federais.107.

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RE, Edward D. Stare decisis. Revista Forense, Rio de Janeiro, a. 90, v. 327, jul.-set. 1994, p. 282. Além de “prestigiar a estabilidade e permitir o desenvolvimento de um direito consistente e coerente”, esse princípio assegura igualdade de tratamento aos litigantes em idêntica situação, poupa os juízes da tarefa de reexaminar as regras de direito a cada caso subseqüente, e assegura à lei uma desejável medida de previsibilidade (RE, Edward D. Stare decisis. Revista Forense, Rio de Janeiro, a. 90, v. 327, jul.-set. 1994, p. 282-283). Entretanto, conforme ressalta o referido autor, essa doutrina “não exige obediência cega a decisões passadas”, permitindo “que os tribunais se beneficiem da sabedoria do passado, mas rejeitem o que seja desarrazoado ou errôneo” (RE, Edward D. op. cit., p. 285). No mesmo sentido, confira-se: COLE, Charles D. Precedente judicial – a experiência americana. Revista de Processo, a. 23, n. 92, out.-dez. 1998, p. 82-83.

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CARR, Robert Kenneth. Supreme Court and judicial review. Westport: Greenwood, 1970, p. 18. No mesmo sentido, confira-se: TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. V. I, 3. ed., Nova York: The Foundation Press, 2000, p. 235-236. Conforme ressalta esse autor, “se a Corte “descobre” mais do que “elabora” o direito constitucional, que peso deve ser dado às decisões passadas? Desentendimentos sobre o uso do stare decisis ocorrem dentro de limites estreitos; poucos dispensariam completamente o peso das decisões passadas, e poucos argumentariam que a Corte deveria atribuir tamanho peso a ponto de recusar-se a reverter qualquer de suas regras anteriores. Se o direito constitucional era científico em sua natureza, é possível argumentar que decisões passadas não merecem maior deferência que a atribuída por Copérnico à visão de Ptolomeu de que a Terra era o centro do sistema solar, mas a Corte tem há muito rejeitado a visão de que o julgamento constitucional está na mesma classe que um bilhete ferroviário restrito, bom para este dia e trem apenas. Ao invés, stare decisis é o método preferido porque promove o eqüitativo, previsível, e consistente desenvolvimento dos princípios legais, promove a confiança nas decisões judiciais e contribui para a efetiva integridade do processo judicial” (TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. V. I, 3. ed., Nova York: The Foundation Press, 2000, p. 235-236). 107

COLE, Charles D. op. cit., p. 72-75. Por outro lado, conforme ressalta este autor, “se o caso encontrado não for de decisão majoritária, ele será tido como autoridade persuasiva. Tal caso será também de autoridade persuasiva se não tiver sido do mesmo foro, dentro do Estado em questão ou da circunscrição judiciária em questão” (COLE, Charles D. op. cit., p. 79).

Em razão dessa peculiaridade do sistema norte-americano, a decisão proferida

pela Suprema Corte no controle de constitucionalidade vinculará, em determinadas hipóteses,

os demais órgãos do Poder Judiciário, afastando a eficácia meramente inter partes própria da

fiscalização de tipo concreto adotada nos Estados Unidos.

Em contraposição a este modelo, coloca-se aquele implantado originariamente

na Áustria, a seguir analisado.

2.2 MODELO AUSTRÍACO: A CONCEPÇÃO KELSENIANA SOBRE A DEFESA DA