CAPÍTULO 2 CONTROLE JURISDICIONAL DE
2.4 INFLUXOS EM OUTROS ORDENAMENTOS JURÍDICOS
2.4.3 Portugal
A Constituição de 1933 (Constituição do “Estado Novo”) manteve, com
algumas alterações
232, o sistema de controle judicial difuso, incidental e concreto introduzido
pela Constituição de 1911 (primeira Constituição republicana)
233. Em sua última revisão, em
230
LUENGO, Juan Antonio Doncel. op. cit., p. 86. 231
Nesse sentido, confira-se: ENTERRÍA, Eduardo García. La constitución como norma y el tribunal constitucional. Madrid: Civitas, 1994, p. 67.
232
Conforme ressalta Rui Medeiros, em dois pontos se nota a divergência: a) a Constituição de 1933 afasta da fiscalização jurisdicional a inconstitucionalidade orgânica e formal dos diplomas promulgados pelo Presidente da República; b) a Constituição de 1933 não somente atribui às partes o direito de invocarem a inconstituiconalidade, como também comete aos juízes o poder e o dever de a considerarem de ofício (MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica, 1999, p. 13).
233
A Lei Fundamental de 1911 foi a primeira Constituição européia a prever a fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis (MEDEIROS, Rui. op. cit., p. 17).
1971, a Constituição de 1933 passou a admitir a possibilidade de fiscalização abstrata
concentrada
234.
Esse sistema misto foi acolhido pela estrutura constitucional provisória
montada após a Revolução Democrática de 25 de abril de 1974, e que deveria vigorar até a
aprovação da futura Constituição. Nesse modelo temporário, a fiscalização abstrata foi
confiada ao Conselho da Revolução, que possuía competência para declarar a
inconstitucionalidade de quaisquer normas com força obrigatória.
A Constituição da República Portuguesa, de 25 de abril de 1976, em sua
redação originária, preservou as características essenciais desse modelo, introduzindo,
contudo, algumas novidades. Primeiramente, deve-se fazer referência à criação de dois novos
tipos de fiscalização: o controle das omissões constitucionais e o controle preventivo dos atos
legislativos e equiparados.
Ademais, a Constituição instituiu a Comissão Constitucional, novo órgão
constitucional com dupla função: órgão consultivo do Conselho da Revolução quanto à
fiscalização abstrata e órgão de julgamento concentrado dos recursos de constitucionalidade
provenientes dos tribunais.
Por fim, o texto constitucional previu a possibilidade de recurso, para a
Comissão Constitucional, das decisões dos tribunais que acolhessem a alegação de
inconstitucionalidade da norma, deixando essas de ter caráter definitivo. Tal recurso,
inclusive, afigurava-se obrigatório para o Ministério Público em alguns casos, dentre os quais
se destaca a hipótese em que fosse reconhecida a inconstitucionalidade de uma lei ou de um
tratado internacional.
Tratava-se, portanto, de um sistema complexo, que contava com a intervenção
do Conselho da Revolução (órgão político), da Comissão Constitucional (órgão jurídico
similar aos tribunais constitucionais) e dos tribunais ordinários. Por outro lado, afigurava-se
possível um controle a priori pelo Conselho da Revolução, mediante recurso do Presidente da
República, e um controle a posteriori, exercido, a depender das circunstâncias, pelo Conselho
da Revolução, pela Comissão Constitucional e pelos tribunais ordinários.
A primeira revisão constitucional (Lei Constitucional nº 01, de 30 de setembro
de 1982) promoveu, dentre outras inovações, a criação do Tribunal Constitucional
234
Sobre este ponto, conferir: MOREIRA, Vital. O Tribunal Constitucional português: a "fiscalização concreta" no quadro de um sistema misto de justiça constitucional. Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 20-21, jan.-jun. 2001, p. 95; FAVOREU, Louis. Los Tribunales Constitucionales. Barcelona: Ariel, 1993, p. 126.
(estabelecido em 06 de abril de 1983), que substituiu e absorveu as funções do Conselho da
Revolução e da Comissão Constitucional.
Ademais, estendeu o modelo de fiscalização de constitucionalidade a alguns
casos de controle de legalidade, em especial na hipótese de conflito entre estatutos das regiões
autônomas e diplomas regionais ou dos órgãos de soberania, e entre as “leis gerais da
República” e diplomas regionais.
As revisões constitucionais posteriores de 1989, 1992 e 1997 não implantaram
modificações substanciais, limitando-se a alargar as funções do Tribunal Constitucional, que
passou a ser o principal órgão da justiça constitucional
235.
Desta forma, dentre as competências do Tribunal Constitucional, destacam-se:
(1) órgão de controle de constitucionalidade das leis, atos normativos, tratados e acordos
internacionais (e em alguns casos, também o controle de legalidade); (2) tribunal
administrativo; (3) órgão responsável pela proteção ao equilíbrio entre o Estado e as
coletividades que o compõem; (4) julgamento de recursos de apelação dos tribunais relativos
ao contencioso eleitoral; (5) contenciosos relacionados à constitucionalidade e legalidade dos
partidos políticos; (6) atribuições relativas à designação do Presidente da República e à
cessação de suas funções; (7) deliberação a priori acerca da constitucionalidade e da
legalidade dos referendos nacionais (art. 223, Constituição da República Portuguesa)
236.
No que pertine ao controle de constitucionalidade, podem ser enunciadas
quatro formas de fiscalização: (1) fiscalização preventiva da constitucionalidade por ação; (2)
fiscalização sucessiva abstrata da inconstitucionalidade por ação; (3) fiscalização sucessiva
concreta da inconstitucionalidade por via incidental; (4) fiscalização da inconstitucionalidade
por omissão
237.
O controle preventivo pode ser exercido em relação a qualquer norma por
provocação do Presidente da República. Tratando-se de lei orgânica, o controle pode ser
instaurado também pelo Primeiro-Ministro ou por um quinto dos Deputados da Assembléia da
República em efetividade de funções.
235
O Tribunal passou, por exemplo, a ser competente para verificar a conformidade dos atos legislativos “ordinários” em relação às leis de valor reforçado entre as quais as leis orgânicas, bem como para verificar a constitucionalidade e a legalidade dos referendos, antes de eles serem convocados (MOREIRA, Vital. O Tribunal Constitucional português: a "fiscalização concreta" no quadro de um sistema misto de justiça constitucional. Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 20-21, jan.-jun. 2001, p. 95).
236
PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa de 02 de abril de 1976. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/crp.html#art202>. Acesso em: 17 mar. 2008.
237
MOREIRA, Vital. O Tribunal Constitucional português: a "fiscalização concreta" no quadro de um sistema misto de justiça constitucional. Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 20-21, jan.-jun. 2001, p. 96.
Caso o Tribunal Constitucional decida pela inconstitucionalidade da norma,
esta deve ser vetada pelo Presidente da República. Entretanto, a Assembléia pode decidir pela
manutenção das disposições julgadas inconstitucionais, por maioria de dois terços dos
deputados presentes (desde que esta maioria supere a maioria absoluta dos deputados
efetivamente em atividade)
238.
A fiscalização sucessiva abstrata por ação é exercida exclusivamente pelo
Tribunal Constitucional, em relação a qualquer norma do sistema jurídico, por provocação do
Presidente da República, do Presidente ou por um décimo dos deputados da Assembléia da
República, do Primeiro-Ministro, do Provedor de Justiça (Ombudsman) e do Procurador-
Geral da República.
A legitimidade se estende aos Representantes da República, às Assembléias
Legislativas das regiões autônomas, aos presidentes ou a um décimo dos deputados das
Assembléias Legislativas das regiões autônomas, ou aos presidentes dos Governos Regionais,
quando o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação dos direitos
das regiões (art. 281, al. 2, Constituição da República Portuguesa)
239.
Ademais, tal modalidade de controle é instaurada de ofício quando o Tribunal
Constitucional tenha julgado a norma inconstitucional em três casos concretos (art. 281, al. 3).
O controle concreto, por sua vez, é exercido diretamente pelos tribunais, aos
quais cabe apreciar a constitucionalidade das normas que devam aplicar nos processos
submetidos ao seu julgamento.
Nessas hipóteses, o Tribunal Constitucional atua como uma corte de revisão,
julgando os recursos interpostos das decisões que recusem a aplicação de qualquer norma com
fundamento na sua inconstitucionalidade ou que apliquem norma cuja inconstitucionalidade
haja sido suscitada durante o processo (art. 280, al. 1, Constituição da República Portuguesa).
Ressalte-se, entretanto, que a análise do Tribunal Constitucional se restringe à questão da
inconstitucionalidade (art. 280, al. 6).
O recurso somente pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão
da inconstitucionalidade, exceto na hipótese de a decisão do tribunal ter aplicado norma
anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Nesse último caso, o
recurso é obrigatório para o Ministério Público (art. 280, al. 4 e 5, Constituição da República
Portuguesa).
238
FAVOREU, Louis. Los Tribunales Constitucionales. Barcelona: Ariel, 1993, p. 129-130. 239
PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa, de 02 de abril de 1976. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/crp.html#art202>. Acesso em: 17 mar. 2008.
Os efeitos da decisão proferida em sede de controle abstrato ou concreto de
normas constitucionais são definidos no art. 282 da Constituição da República Portuguesa, e
serão objeto de análise do próximo capítulo.
O Tribunal Constitucional é competente, ainda, para realizar o controle das
chamadas omissões inconstitucionais. Assim, a requerimento do Presidente da República, do
Provedor de Justiça ou dos presidentes das Assembléias Legislativas das regiões autônomas
(essas últimas apenas com fundamento em violação de direitos das regiões autônomas), o
Tribunal Constitucional pode apreciar e verificar o não cumprimento da Constituição por
omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exeqüíveis as normas constitucionais
(art. 283, al. 1, Constituição da República Portuguesa).
O acolhimento da ação acarreta a simples declaração da existência da
omissão
240, dando-se conhecimento disso ao órgão legislativo competente (art. 283, al. 2,
Constituição da República Portuguesa).
As características acima delineadas revelam a natureza “mista” do sistema de
controle de constitucionalidade português
241, que, diversamente dos sistemas alemão e
espanhol, não se limitou a adotar alguns elementos do sistema americano sobre uma base
calcada no modelo austríaco.
Com efeito, pode-se afirmar que, em Portugal, coexistem os dois sistemas: o
concentrado e o difuso
242. Nesse sentido, a fiscalização abstrata é realizada exclusivamente
por um Tribunal Constitucional, em sede de um processo objetivo, instaurado por provocação
de alguns legitimados constitucionalmente previstos (sistema austríaco).
O controle difuso, por sua vez, decorre diretamente do modelo americano,
concedendo-se, a todos os tribunais (ainda permanecem excluídos os juízes de primeira
instância), não somente a faculdade/dever de remeter ao Tribunal Constitucional a apreciação
de uma questão de constitucionalidade, mas sim a competência para julgar acerca da
constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma, por meio de decisão sujeita a recurso
240
MOREIRA, Vital. O Tribunal Constitucional português: a "fiscalização concreta" no quadro de um sistema misto de justiça constitucional. Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 20-21, jan.-jun. 2001, p. 96.
241
Sobre essa matéria, confira-se: MOREIRA, Vital. op. cit., p. 96-97. 242
ALMEIDA, Luís Nunes de. A Justiça constitucional no quadro das funções do estado. In: Relatórios da VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, 3ª parte, Lisboa: Tribunal Constitucional, 1987, p. 109- 146, p. 111. Nesse sentido, Vital Moreira afirma ser Portugal um dos países pioneiros e um dos mais característicos exemplos da coabitação entre o “sistema americano” e o “sistema austríaco” de justiça constitucional. (MOREIRA, Vital. op. cit., p. 95).
para o Tribunal Constitucional, que permanece, porém, como um órgão exterior à jurisdição
ordinária, diversamente do que ocorre com a Suprema Corte norte-americana
243.
Inexiste, portanto, em Portugal, o monopólio do Tribunal Constitucional para o
rechaço de normas inconstitucionais
244.
2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final deste Capítulo, verifica-se que os dois modelos paradigmáticos de
controle jurisdicional de constitucionalidade (americano e austríaco), a princípio contrapostos,
sofreram alterações em sua configuração original, podendo-se falar, assim, em uma
aproximação de sistemas ou em uma atenuação da bipolaridade originária.
Essa tendência se verificou nos ordenamentos constitucionais dos países por
eles influenciados, conduzindo, diante da necessidade de atender às peculiaridades políticas e
sociais de cada ordem jurídica, à formação de modelos híbridos (alemão e espanhol), e até
mesmo mistos (português), como são chamados aqueles em que coexistem mecanismos
particulares dos dois sistemas originários.
Tal aproximação também apresentou reflexos no que se refere à eficácia
temporal da decisão que reconhece a inconstitucionalidade, tema objeto de análise do próximo
capítulo.
243
Significativa é a ênfase constitucional sobre a natureza jurisdicional do Tribunal Constitucional, o que não quer dizer que, embora tribunal ao mesmo título que os outros, o Tribunal Constitucional não seja um tribunal diferente dos outros. (MOREIRA, Vital. op. cit., p. 99).
244
Nesse sentido, conforme observa Rui Medeiros, em Portugal, ao contrário do que sucede noutros Estados que instituíram um Tribunal Constitucional, “a competência para fiscalizar a constitucionalidade de normas continua a ser reconhecida a todos os tribunais – judiciais, administrativos, fiscais (...) – que, quer por impugnação das partes, quer ex officio, pelo juiz ou ministério público, julgam e decidem a questão da inconstitucionalidade das normas aplicáveis ao caso concreto submetido a decisão judicial. Assim, embora não se estabeleça o modelo puro da judicial review, “não se consagra um sistema de mero incidente de inconstitucionalidade, porque os tribunais têm acesso direto à Constituição, com competência plena para decidir, e não apenas para apreciar e decidir o incidente, remetendo, como acontece em alguns sistemas – alemão, italiano –, a decisão para o Tribunal Constitucional. Neste sentido se afirma que, no actual sistema jurídico português, todos os tribunais, sem excepção, são órgãos da justiça constitucional, ou, por outras palavras, são tribunais constitucionais” (MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica, 1999, p. 17).