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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: FAIRCLOUGH

1.2. Por uma teoria tridimensional do discurso.

1.2.2 A prática discursiva

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A prática discursiva diz respeito aos processos de produção, distribuição e consumo, e a variedade na natureza desses processos acontece de acordo com os diferentes tipos de discursos relacionados a fatores sociais. Para o autor, os textos são produzidos com perspectivas particulares em contextos sociais específicos, da mesma forma que os textos são interpretados de modos diferentes e surgem em contextos sociais diversos. Por isso, a preocupação de Fairclough (2001) com o texto não está focada apenas na organização estrutural, mas, ainda, na sua face organizacional, considerando-se a produção, a decodificação e o discurso como prática social.

Na concepção do autor, a produção e a apreensão do texto são de ordem parcialmente sociocognitiva, por envolver os processos cognitivos de produção e de interpretação textual fundamentados nas estruturas e nas convenções sociais interiorizadas. Nesses processos sociocognitivos, devemos observar a especificação dos elementos das ordens do discurso, tanto quanto outros recursos sociais designados ‘recursos dos membros’, que são as bases para a produção e a interpretação dos sentidos e a maneira que ocorrem. Segundo o teórico:

A preocupação central é estabelecer conexões explanatórias entre os modos de organização e interpretação textual (normativos, inovativos, etc.), como os textos são produzidos, distribuídos e consumidos em um sentido mais amplo, e a natureza social em termos de sua relação com as estruturas e as lutas sociais (FAIRCLOUGH, 2001, p. 99-100).

A apreensão de textos acontece variavelmente de acordo com os diferentes contextos sociais, e parte dessa diferença deve ser considerada uma tarefa pertinente ao tipo de trabalho interpretativo. O autor cita, por exemplo, que normalmente não se leem receitas como se fossem textos estéticos ou artigos acadêmicos, da mesma maneira que textos retóricos, embora sejam possíveis as duas leituras.

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Tanto a decodificação quanto a produção podem ser individuais ou coletivas como as cartas de amor e os registros administrativos, respectivamente. Diversos textos (entrevista oficiais, grandes poemas) têm seus registros, são transcritos, preservados e relidos, entretanto outros textos como conversas informais não são registrados, surgem como transitórios e acabam sendo esquecidos. Outros textos são modificados em textos diferentes, as paráfrases como exemplo. Assim, os resultados apresentados pelos textos são variados. Estes textos podem apresentar natureza extradiscursiva e também discursiva. Na concepção de Fairclough (2001, p. 108): "Alguns textos conduzem a guerras ou à destruição de armas nucleares; outros levam as pessoas a perderem o emprego ou a obtê-lo; outros ainda modificam as atitudes, as crenças ou as práticas das pessoas”.

Assim sendo, podemos advogar que diferentes textos podem conduzir a muitas ações e a resultados inesperados.

Alguns textos têm distribuição simples – uma conversa casual pertence apenas ao contexto imediato de situação em que ocorre _, enquanto outros têm distribuição complexa. Textos produzidos por líderes políticos ou textos relativos à negociação internacional de armas são distribuídos em uma variedade de diferentes domínios institucionais, cada um dos quais possui padrões próprios de consumo e rotinas próprias para a reprodução e transformação de textos (FAIRCLOUGH, 2001, p. 108).

A existência das dimensões “sociocognitivas” específicas de produção e interpretação textual estão no centro da inter-relação entre os recursos dos membros constantes conforme interiorizações que são trazidas pelos participantes do discurso para o processamento textual e para o próprio texto. “Este é considerado como um conjunto de ‘traços’ do processo de produção, ou um conjunto ‘pistas’ para o processo de interpretação (...)” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 108). Esses elementos intrínsecos normalmente afloram de maneira inconsciente e automática, o que nos leva a prescrevê-

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los, muitas vezes, como fonte de eficácia ideológica, ainda que certos aspectos possam ser mais conscientes do que outros.

O autor afirma que os processos de produção e de interpretação são restringidos socialmente, em duplo sentido. Primeiro, pelos recursos disponibilizados pelos membros por meio de estruturas sociais interiorizadas, normas e convenções, bem como pelas ordens de discurso e convenções estabelecidas para a produção, distribuição e consumo de textos. Segundo, pela natureza específica da prática social na qual estão inseridos esses processos e que determina os elementos dos recursos dos membros a que estes recorrem e da maneira como recorrem. Explorar, portanto, essas restrições é um fator importante para o quadro tridimensional na análise do discurso, especialmente no estabelecimento das conexões de análise entre a natureza dos processos discursivos em instâncias particulares e a natureza das práticas sociais de que fazem parte.

Também consideramos necessário tratar mais duas dimensões de análise sobre os aspectos sociocognitivos da produção e da interpretação que são a ‘força’ e a ‘coerência’. Em sua concepção, a interpretação deve ser caracterizada como processo de níveis múltiplos e de acordo com um processo ‘ascendente – descendente’, o qual é considerado, de forma mais específica, em níveis superior e inferior, respectivamente. O nível superior refere-se aos significados das frases, dos textos completos e de partes ou ‘episódios’ de um texto que possam ser interpretados como excertos compostos de frases coerentemente conectadas. Os significados dessas unidades ‘superiores’ são formados também em parte dos significados das unidades ‘inferiores’, que são sequências de sons ou marcas gráficas do texto escrito, consideradas no processo de interpretação ascendente.

Porém, as predições sobre os significados das unidades de nível superior no início do processo de interpretação são características com base em evidência

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limitada. Esses significados preditos estruturam o modo como as unidades de nível inferior são interpretadas, tornando o processamento ‘descendente’. Desse modo, tanto a produção quanto a interpretação contêm características do processo ‘ascendente – descendente’.

Essas características do processamento textual são responsáveis para que se entenda de que maneira os intérpretes reduzem a ambivalência potencial dos textos, ou seja, a produção e a interpretação.

Outra ocorrência que se deve ter em conta é o modo pelo qual o contexto afeta a interpretação do texto e transforma-se de um tipo de discurso ao outro. O contexto modifica a interpretação do texto em qualquer caso particular, quando há possibilidades de destacar ou diminuir a importância de elementos do discurso. Mas o autor ressalta que não é possível limitar a explicação dos processos sociocognitivos apenas em relação ao contexto. Por isso, as diferenças presentes nos tipos de discurso são socialmente importantes por apontar indicadores de regras compostas de base implícitas que são frequentemente de caráter ideológico. A posição sequencial no texto, por exemplo, é um poderoso indicador de força. É isso que nos ajuda a entender como as palavras podem obter valores aparentemente improváveis se as considerarmos fora do contexto.

Assim, um efeito sobre a interpretação da leitura da situação é ressaltar ou diminuir a importância de aspectos da identidade social dos participantes, de modo que, por exemplo, o gênero, etnia ou a idade do(a) produtor(a) do texto provavelmente afetam muito menos a interpretação no caso de um livro-texto de botânica do que no caso de uma conversa casual ou de entrevista para emprego. Assim, o efeito do contexto de situação sobre a interpretação textual (e produção textual) depende da leitura da situação. Por outro lado, o efeito do contexto seqüencial depende do tipo de discurso.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 112).

O autor comenta ainda que nem sempre as perguntas possam suscitar as mesmas interpretações dos enunciados que as seguem como respostas, o tipo de

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discurso é o que definirá as respostas. Por isso, não é possível estabelecer a interpretação do contexto sequencial sem se reconhecer as variáveis entre os tipos de discursos, porque há uma possibilidade “de que sejam tomadas como tácitas as assimetrias de status entre os papéis de sujeito nitidamente delimitados. Assim, a investigação dos princípios interpretativos que são usados para determinar o sentido permite compreender o investimento político e ideológico de um tipo de discurso” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 113).

O autor destaca outro fator importante para a interpretação que é a coerência, porque esta frequentemente é destacada como propriedade dos textos, mas deve ser considerada muito mais como propriedade das interpretações.

Um texto coerente é um texto cujas partes constituintes (episódios, frases) são relacionadas com um sentido, de forma que o texto como um todo ‘faça sentido’, mesmo que haja relativamente poucos marcadores formais dessas relações de sentido – isto é, relativamente pouca coesão explicita (...) (FAIRCLOUGH, 2001, p. 113).

Para o autor, um texto coerente é aquele em que as partes constituintes (episódios, frases) relacionam-se com um sentido, de maneira que isso ocorra na sua totalidade, mesmo quando não houver marcadores explícitos, ou seja, elementos de coesão evidentes. O que deve ser destacado é que um texto só pode fazer sentido para alguém se essa pessoa consegue observar um significado macrotextual, de modo que possa inferir sobre as relações de sentido da sua microestrutura.

No entanto, o modo particular com que uma leitura coerente de um texto é realizada depende novamente da natureza dos princípios interpretativos aos quais as pessoas recorrem. Tais princípios são integrados de maneira naturalizada a tipos de discurso particulares, e isso leva à necessidade de verificarmos com mais cuidado as funções ideológicas da coerência na participação das pessoas quando os textos são

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processados, pois estes estabelecem conexões e inferências para quem os interpreta. Em outras palavras, é preciso buscar quais os indicadores de força e as deduções possíveis como marcadores indispensáveis ao processo de interpretação, sem deixar de considerar que essas conexões e inferências podem estar apoiadas em pressupostos de tipo ideológico.

Outra dimensão que o autor destaca em seu trabalho é a “intertextualidade”, uma propriedade dos textos de servir-se de fragmentos de outros textos, os quais podem ser delimitados explicitamente ou mesclados por diferentes formas. Fairclough (2001) aborda essa “intertextualidade” em termos de produção, distribuição e consumo. Nessa esfera, ele distingue a ‘intertextualidade manifesta’, quando um texto recorre a outros textos específicos, ou seja, outros textos estão explicitamente presentes nos textos, ‘manifestamente’ marcados ou sugeridos por traços na superfície do texto, e ‘interdiscursividade’ ou ‘ intertextualidade constitutiva’, quando há uma relação de extensão da intertextualidade visando à organização do discurso. A intertextualidade constitutiva é a configuração de convenções discursivas que são introduzidas na produção.

A interdiscursividade estende a intertextualidade em direção ao princípio da primazia da ordem de discurso [...]. Por um lado, temos a constituição heterogênea de textos por meio de outros textos específicos (intertextualidade manifesta); por outro lado a constituição heterogênea de textos por meio de elementos (tipos de convenção) das ordens de discurso (interdiscursividade)” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 114).

Fairclough (2001) utiliza-se do conceito de intertextualidade ao longo de seu trabalho, reportando-se a Foucault (1972, p. 98), quando este afirma que não há enunciado que de alguma maneira ou de outra “não reatualize outros”. A relação de hegemonia e de intertextualidade se torna, então, fundamental, tendo em vista que o conceito de intertextualidade acena para a produtividade dos textos, ao visualizarmos a

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transformação de textos anteriores e a reestruturação das convenções existentes (gêneros, discursos) para a criação de novos textos.

O autor utiliza o conceito de intertextualidade como um termo geral tanto para a intertextualidade manifesta quanto para a constitutiva, quando a diferença não estiver em questão, e prefere introduzir o termo ‘interdiscursividade’ para a intertextualidade constitutiva quando a distinção for necessária, para destacar que o foco está nas convenções discursivas e não em outros textos.

Segundo Fairclough (2001), o termo ‘intertextualidade’ foi cunhado por Kristeva no final dos anos de 1960. Embora o termo não seja de Bakhtin, o desenvolvimento de uma abordagem intertextual para a análise dos textos foi o maior trabalho no decorrer de sua carreira, em que seus estudos estavam estreitamente relacionados a questões sobre sua teoria de gênero.

Fairclough (2001) esclarece que Bakhtin aborda a omissão relativa destinada às funções comunicativas da linguagem pelos ramos fundamentais da linguística, bem como a omissão, numa percepção mais específica, do modo como os textos e os enunciados são moldados por textos anteriores aos quais eles estão ‘respondendo’ e por textos subsequentes que eles ‘antecipam’.

Na concepção de Fairclough (2001) a relevância do conceito de intertextualidade está de acordo com o foco em discurso na mudança social. “Kristeva observa que intertextualidade implica ‘a inserção da história (sociedade) em um texto e deste texto na história” (1986ª: 39 apud FAIRCLOUGH, 2001, p. 134).

O autor entende que, quando a autora se reporta à intertextualidade, ela acredita que o texto absorve e é construído de outros oriundos do passado. Para Kristeva, segundo Fairclough (2001), o texto é um dos maiores artefatos que constituem a história e ele responde, reacentua e retrabalha textos passados no sentido de ajudar a

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história a contribuir para os processos de mudança mais amplos, antecipando e tentando moldar textos posteriores.

Dessa maneira, a relação de hegemonia e de intertextualidade se torna fundamental para entendermos como o conceito de intertextualidade acena para a produtividade dos textos, em relação à transformação de textos anteriores e à reestruturação de convenções (gêneros, discursos) para criar novos textos. Entretanto, essa produtividade é restringida e condicionada a relações de poder, o que acaba limitando a inovação textual e os jogos verbais. É nesse sentido que a teoria da intertextualidade não pode explicar as limitações sociais e por isso ela necessita de uma combinação com a teoria de relações de poder, de como elas moldam e também são moldadas pelas estruturas e práticas sociais.

Nesse âmbito, é importante destacar que a criatividade pode acontecer a partir de novas configurações de elementos das ordens do discurso — como a escolha do léxico e dos elementos coesivos — e novas maneiras de intertextualidade manifesta. A teoria da intertextualidade sozinha não pode explicar essas limitações sociais, ela precisa ser combinada com uma teoria de relações de poder, para que se elucide como essas relações podem moldar e ser moldadas por estruturas e práticas sociais

O autor, inclusive, acredita ser importante na análise da prática discursiva combinar o que ele denomina de ‘microanálise’, que é o modo preciso como os participantes produzem e interpretam os textos apoiados nos recursos dos membros, com a macroanálise citada anteriormente.

Isso é determinante para que possamos conhecer a natureza dos recursos dos membros e das ordens do discurso a que recorrem no processo de produção ou interpretação de textos, além de se poder reconhecer se acontece de maneira normativa ou criativa. A microanálise irá fornecer evidências para a macroanálise, por isso são

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inter-relacionais. Para Fairclough (2001) é a natureza da prática social que determina os macroprocessos da prática discursiva sendo que os microprocessos são responsáveis pelos moldes dos textos.

Portanto, a depreensão de textos está associada aos diferentes fatores sociais, e as manifestações exercidas pelas diferentes estruturas de poder que reconstroem ou rearranjam o discurso recorrente, ambiente das dimensões ‘sociocognitivas’, tem um papel primordial.

Figura 3: Componentes de análise da teoria tridimensional — Práticas discursivas.

Como podemos perceber na disposição da Figura 3, as práticas discursivas compreendem as esferas da produção do texto, bem como seu consumo e sua distribuição. Essa é a estrutura sintetiza a teoria tridimensional proposta por Fairclough (2001) no âmbito da comunicação interativa.

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