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O discurso como prática social: ideologia e hegemonia.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: FAIRCLOUGH

1.2. Por uma teoria tridimensional do discurso.

1.2.3 O discurso como prática social: ideologia e hegemonia.

A terceira dimensão da teoria tridimensional de Fairclough (2001) é o discurso como prática social. O autor discute o conceito de discurso relacionado à ideologia e ao poder e o posiciona em uma concepção de poder como hegemonia a fim de situar a evolução das relações de domínio como ações fundamentadas na força e soberania. Em suas exposições, ele recorre às concepções clássicas do marxismo do século XX, de Althusser e Gramsci (1971, apud FAIRCLOUGH, 2001), por oferecerem uma teoria relevante para a investigação do discurso como forma de prática social, embora faça algumas reservas a teoria de Althusser (1971, apud FAIRCLOUGH, 2001), o qual, em relação à teoria de ideologia, representa uma referência para as bases sobre o debate, mesmo que antes dele haja a contribuição de Voloshinov (1973, apud FAIRCLOUGH, 2001).

Fairclough (2001) cita ainda três importantes asserções para as bases teóricas sobre ideologia. A primeira é que há aspectos da ideologia nas práticas das instituições e isso possibilita a investigação das práticas discursivas como formas materiais de ideologia. A segunda é a afirmação de que a ideologia ‘interpela os sujeitos’, que os levam a um dos mais significantes ‘efeitos ideológicos’ ignorados pelos linguistas no discurso, a constituição dos sujeitos. E a terceira é a asserção de que os ‘aparelhos ideológicos de estado’, como a mídia e a escola, são delimitadores na luta de classes, ao assinalarem à luta do discurso ou seu ocultamento como foco para uma análise de discurso orientada ideologicamente. Para ele,

as ideologias são significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias

53 dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 117).

O autor afirma, assim, que a ideologia é uma propriedade encontrada tanto nas estruturas caracterizadas pelas ordens do discurso, as quais constituem o resultado de eventos passados quanto nas condições de eventos atuais, e nos próprios eventos, quando as estruturas condicionadoras são reproduzidas e transformadas. Para ele, essa ideologia é uma orientação acumulada e naturalizada que acaba sendo formada nas normas e nas convenções, do mesmo modo que é um trabalho de naturalização e desnaturalização dessas orientações nos eventos discursivos.

Parece-nos fundamental encontrar, então, uma explicação da dialética de estruturas e eventos, quando essas estruturas se localizam em alguma forma de convenção subjacente à prática linguística, seja um ‘código’, uma ‘estrutura’ ou uma ‘formação. Já os eventos discursivos são delimitados por convenções sociais, mas podem ser desfocalizados a partir dos pressupostos de que eles são meras reproduções de estruturas, enfatizando-se a perspectiva da reprodução ideológica e não da transformação.

Outra assertiva destacada pelo autor é que a ideologia está relacionada aos aspectos ou níveis do texto e do discurso, que podem ser acometidos ideologicamente. Os sentidos das palavras são importantes, naturalmente, mas os outros aspectos semânticos são fundamentais também, tais como as pressuposições, as metáforas e a coerência. Então uma oposição rígida entre ‘conteúdo’ e ‘forma’ não procede porque os significados dos textos estão intimamente vinculados às suas formas e seus aspectos formais são compostos nos diversos níveis ideologicamente.

As pessoas nem sempre são conscientes dessas dimensões ideológicas implícitas em suas próprias ações e representações. Mesmo quando há a interpretação

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de práticas resistentes que possam contribuir para mudanças ideológicas, não há consciência dos pormenores ideológicos que estão ali instalados. Fairclough nos alerta que:

Essa é uma razão para se defender uma modalidade de educação linguística que enfatize a consciência crítica dos processos ideológicos no discurso, para que as pessoas possam tornar-se mais conscientes de sua própria prática e mais críticas dos discursos investidos ideologicamente a que são submetidas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 120).

Como se observa, os comentários do autor sobre a consciência crítica podem estar relacionados a questões sobre a interferência dos sujeitos. Para ele, o que encontramos na teoria althusseriana é o do sujeito posicionado na ideologia de tal forma que disfarça a ação e os efeitos desta e propicia ao sujeito uma autonomia imaginária, o que leva a se acreditar em convenções discursivas altamente naturalizadas.

Fairclough (2001) discorda, assim, da teoria althusseriana, para ele o autor exagera sobre a constituição ideológica dos sujeitos e, com isso, subestima a capacidade de os sujeitos atuarem individual ou coletivamente como agentes, inclusive no compromisso com a crítica e na oposição às práticas ideológicas.

O autor adota a posição dialética quando defende que os sujeitos são posicionados ideologicamente, mas podem também agir criativamente quando elaboram suas próprias conexões entre as diferentes práticas e ideologias de que fazem parte, no sentido de reestruturar as práticas, assim como as estruturas em que são posicionados. O equilíbrio entre o sujeito ‘efeito ideológico’ e o sujeito ‘agente ativo’ é uma variável que acontece de acordo com as condições sociais, da mesma forma como ocorre com a estabilidade relativa das relações de dominação.

De acordo com Fairclough (2001), nem todo o discurso é irremediavelmente ideológico, porque as ideologias aparecem nas sociedades caracterizadas pelas relações de dominação com base na classe, no gênero, no grupo

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social, no grupo cultural, dentre outras, e, à medida que os seres humanos possam ser capazes de ultrapassar tais sociedades, também o farão à ideologia. É nesse perspectiva que o autor não aceita a concepção de Althusser (1971) “de ‘ideologia em geral’ como forma de cimento social que é inseparável da própria sociedade” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 121). Além disso, devemos considerar que nem todo tipo de discurso apresenta o mesmo grau de investimentos ideológicos, isso dependerá, dentre outros aspectos, de sua finalidade.

Ao tratar sobre hegemonia presente no discurso, o autor se reporta ao conceito de hegemonia de Gramsci (1971, apud FAIRCLOUGH (2001)), ao defender a concepção de discurso como mudança pertinente à evolução das relações de poder que possibilita um foco particularizado sobre a mudança discursiva, mas, ao mesmo tempo, contribui para processos mais amplos de amoldamento e mudança.

Cabe esclarecer, para que se mantenha a linearidade das ideias até aqui expostas, que tomamos hegemonia em seu sentido amplo e manifesto, como forma de exercício de supremacia (cultural, política, econômica etc.) de uma sociedade. Tratamos a hegemonia, então, como o poder sobre a sociedade de uma classe superiormente definida como imprescindível em acordo com outras forças sociais, porém equilibradas temporariamente. A hegemonia surge mais especificamente com a construção de alianças e como integração, é muito mais do que simplesmente dominação de classes subalternas por classes superiores, a partir de concessões ou meios ideológicos para obter seu consentimento. A hegemonia é um foco permanente de luta sobre pontos que apresentam maiores instabilidades entre as classes e os blocos a fim de se obter construção e manutenção. Em contrapartida, representa o rompimento de alianças, das coalizões e das relações de dominação ou subordinação, que assume formas econômicas, políticas e ideológicas. A luta hegemônica está instituída em uma larga

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escala que inclui as instituições da sociedade civil como provável desigualdade entre diversos condições e domínios.

A articulação, a desarticulação e a rearticulação de elementos em uma concepção de luta hegemônica estão em sintonia com a concepção dialética da relação entre as estruturas e eventos discursivos, quando consideradas as estruturas discursivas como ordens criadas como configurações de elementos mais ou menos instáveis. Do mesmo modo, isso ocorre quando se adota uma concepção de textos centrada na intertextualidade e na maneira que são articulados por convenções prévias.

Pode-se considerar uma ordem de discurso como a faceta discursiva do equilíbrio contraditório e instável que constitui uma hegemonia, e a articulação e rearticulação de ordens de discurso, consequentemente, um marco delimitador na luta hegemônica. Além disso, a prática discursiva, a produção, a distribuição e o consumo (como também a interpretação) de textos são uma faceta da luta hegemônica que contribui em graus variados para a reprodução ou a transformação, não apenas da ordem de discurso existente (por exemplo, mediante a maneira como os textos e as convenções prévias são articulados na produção textual) mas também das relações sociais e assimétricas existentes (FAIRCLOUGH, 2001, p. 123-124).

A maior parte do discurso tem sua sustentabilidade na luta hegemônica em instituições particulares como no caso de escolas, famílias, dentre outras. Nesses casos, a hegemonia pode ser considerada tanto um modelo quanto uma matriz.

A educação pode ser exemplificada como um modelo, em que os grupos que assumem o domínio parecem desempenhar o poder de acordo com o estabelecimento em coalizões e integrações e não simplesmente por dominação de grupos subalternos. Os grupos dominantes exercem seus poderes a partir dos consentimentos, obtendo um equilíbrio incerto que pode ser enfraquecido por outros grupos. Nesse âmbito, os grupos predominantes realizam sua influência em parte por meio dos discursos e da construção de ordens discursivas locais.

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A matriz pode ser considerada a obtenção de hegemonia em um nível societário que requer certo grau de relação de instituições locais e semi-autônomas e de relações de poder, de modo que as últimas possam ser parcialmente moldadas por relações hegemônicas e ações locais — que podem ser interpretadas como lutas hegemônicas. Dessa forma, a atenção é dirigida para as ligações entre as instituições e movimentos entre as ordens discursivas institucionais.

Figura 4: Componentes de análise da teoria tridimensional — Práticas sociais.

Embora a hegemonia aparente ser a forma organizacional de poder predominante na sociedade atual, ela não é a única, vistos os aspectos que permeiam a dominação pela imposição inflexível de regras, normas e convenções.

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Para Fairclough (2001), o conceito de hegemonia é uma contribuição por fornecer uma forma de analisar a prática social presente no discurso e por servir de matriz para tal. Ou seja, se é possível nessas relações de poder haver a reprodução, reestruturação ou desafios em relação às hegemonias existentes, também pode surgir na prática discursiva um modelo de análise, uma maneira de luta hegemônica, que reproduz, reestrutura ou desafia as ordens de discursos existentes. “Isso fortalece o conceito de investimento político das práticas discursivas e, já que as hegemonias têm dimensões ideológicas, é uma forma de avaliar o investimento ideológico das práticas discursivas. [...]” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 126).