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4. VIDAS PASSÍVEIS DE LUTO

4.1 A precariedade de alguns corpos

Em seu texto Vida Precária, vida passível de luto Judith Butler questiona quando a vida é passível de luto, ou quais vidas tem a capacidade de provocar empatia ou indiferença em situações de violência nos quais elas são lesadas ou perdidas. Butler afirma que “as molduras pelas quais aprendemos, ou na verdade, não conseguimos apreender a vida dos outros como perdida ou lesada (suscetível de ser perdida ou lesada) estão politicamente saturadas.” (BUTLER, 2016:14)

No cerne do seu questionamento está a pergunta “o que é uma vida?”, uma vez que para reconhecer uma perda temos que, anteriormente, reconhecer naquele corpo uma vida humana tão valiosa como as demais outras. Ou seja, somente existem comoção e sentimento de perda quando existe algo identificado, anteriormente, para ser perdido e a questão do luto e da possibilidade, ou impossibilidade, de comunicar uma dor privada para coletividade passa, justamente, pelo enquadramento político e social que a coletividade constrói sobre as vidas de seus cidadãos. Como consequência, determinadas vidas quando perdidas são lamentadas apenas pelo seu círculo próximo, uma vez que não existe uma valorização social sobre aquela pessoa, ou aquele grupo, que possibilite um enlutamento coletivo.

A capacidade epistemológica de apreender uma vida é parcialmente dependente de que essa vida seja produzida de acordo com normas que a

caracterizam como uma vida ou, melhor dizendo, como parte da vida. Desse modo, a produção normativa da ontologia cria o problema epistemológico de apreender uma vida, o que, por sua vez, dá origem ao problema ético de definir o que é reconhecer ou, na realidade, proteger contra violações e a violência. [...] Os sujeitos são constituídos mediante normas que, quando repetidas, produzem e deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos. Essas condições normativas para produção do sujeito produzem uma ontologia historicamente contingente, de modo que nossa própria capacidade de discernir e nomear o “ser” do sujeito depende de normas que facilitem esse reconhecimento. Ao mesmo tempo, seria um equívoco entender a operação das normas de maneira determinista. Assim, há “sujeitos” que não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e há “vidas” que dificilmente – ou, melhor, nunca – são reconhecidas como vidas. Em que sentido, então, a vida excede sempre as condições normativas de sua condição de ser reconhecida? Afirmar isso não significa dizer que a “vida” tem como essência uma resistência à normatividade, mas apenas que toda e qualquer construção da vida requer tempo para fazer seu trabalho, e que nenhum trabalho que ele faça pode vencer o tempo. Em outras palavras, o trabalho nunca está feito definitivamente. (BUTLER, 2016:16-18)

E o que significa a ideia de que “o trabalho nunca está feito definitivamente?” Significa, precisamente, que a condição de precariedade de uma vida e o seu reconhecimento pelos demais não se dá apenas no seu início, mas se estende ao longo dos anos, muitas vezes de maneira infinita, tendo em vista as mudanças de enquadramento que são operadas pelo Estado e pela sociedade. As discussões sobre a legalização do aborto estabelecem marcadores divergentes sobre qual seria o exato momento no qual um conjunto de células deve ser considerado um ser humano, e esse reconhecimento passa pela crença religiosa, ou pelo conhecimento científico, produzido sobre essa vida, havendo uma grande divergência em relação a essa identificação. Da mesma maneira, os debates sobre a morte nas ciências médicas giram em torno das mortes que devem ser estabelecidas através do cérebro ou do coração, não havendo um consenso sobre quando um corpo está realmente morto. No entanto, como adverte Butler:

O fato desses debates existirem e continuarem a existir, não significa que a vida e a morte sejam consequências diretas do discurso (uma conclusão absurda, se tomada literalmente). Antes significa que não há vida nem morte sem relação com um determinado enquadramento. (BUTLER, 2016:21-22)

Ou seja, a capacidade de choque, comoção e tristeza está intrinsecamente vinculada à forma como determinadas vidas são percebidas e reconhecidas pela sua comunidade próxima ou distante. Como afirma a autora, nós não nascemos primeiramente e depois nos tornamos precários. Nossas vidas são essencialmente

precárias porque todos necessitam de auxílios os mais distintos para sobreviver da infância até a velhice. E para que esse auxílio seja acionado é necessário um reconhecimento do valor dessa vida por seus pares. Desse modo, a perda de um feto de poucos dias pode provocar um profundo enlutamento, a depender das crenças religiosas, científicas, e da disponibilidade emocional, dos que o cercam de maneira próxima ou distante. Da mesma maneira, determinadas mortes são mais sentidas e lamentadas, a depender do reconhecimento e da valoração dessa vida pela coletividade. Para existir a percepção de que algo se encerrou é preciso, primeiramente, o reconhecimento do seu início, e mais precisamente, para que esse encerramento seja lamentado e provoque comoção e tristeza, é preciso que essa vida seja legitimada e valorada.

O que é importante assinalar é que se não podemos afirmar que as vidas humanas são produtos de discursos, podemos, contudo, afirmar que a percepção do que é humano, ou inumano, é produto de um discurso subjetivamente construído, reconstruído, ou negado, pelas culturas e as sociedades que os produzem, e que a condição de precariedade universal de todos os sujeitos, é mais acentuada para uns em detrimento de outros, visto que o enquadramento produzido por esse discurso vulnerabiliza mais determinados sujeitos, ou grupos de sujeitos, do que outros, à violência e a possibilidade de aniquilação.

Ou seja, a questão da precariedade da existência humana, ou a sua manutenção, está relacionada a uma dimensão política e social e não somente a um “impulso interno para viver” (BUTLER, 2016:40) que garantiria a manutenção da vida de certos sujeitos sem condições mínimas para que aquela vida seja possível. E essa manutenção diz respeito às necessidades básicas de alimentação e trabalho, mas também à questão da violência sobre os corpos e a sua eliminação.

Não podemos reconhecer facilmente a vida fora dos enquadramentos nos quais ela é apresentada, e esses enquadramentos não apenas estruturam a maneira pela qual passamos a conhecer e identificar a vida, mas constituem condições que dão suporte para essa mesma vida. [...] Esses enquadramentos estruturam modos de reconhecimento, especialmente durante os tempos de guerra, mas seus limites e sua contingência também ficam sujeitos à exposição e à intervenção crítica. Esses enquadramentos são atuantes em situações de prisão e tortura, mas também nas políticas de imigração, de acordo com as quais determinadas vidas são percebidas como vidas, ao passo que outras, embora aparentemente estejam vivas, não conseguem assumir uma forma percebível como tal. Formas de racismo instituídas e ativas no nível da percepção tendem a produzir versões icônicas de populações que são eminentemente lamentáveis e de outras cuja perda não é perda, e que não é passível de luto. A distribuição

diferencial da condição de ser passível de luto entre as populações tem implicações sobre por que e quando sentimos disposições afetivas politicamente significativas, tais como horror, culpa, sadismo justificado, perda e indiferença. (BUTLER, 2016:14-15)

Dessa maneira, o animal humano pode ser facilmente reconhecível como algo vivo, no entanto, o estatuto de “humano” - em toda sua potência positiva e detentora de direitos - que o proteja da fome, das doenças, maus-tratos e aniquilação, está sujeito a enquadramentos políticos que também estão atravessadas por questões econômicas, de gênero, raça, capacitismo e similares. Dessa maneira, determinados grupos gozam de um estatuto social diferenciado a partir de discursos que valorizam, ou desqualificam seus atributos, os aproximando, ou os distanciando, como alteridades potencialmente perigosas ou sem valor.

Em outras palavras: o que Butler chama a atenção quando afirma que certos indivíduos gozam de um estatuto humano mais facilmente reconhecível para sua coletividade do que outros, e que isso implica de maneira fundamental na sua capacidade de sobrevivência, não se assemelha a uma discussão antropológica sobre o que é humano, ou não, para determinadas culturas, mas fundamentalmente, sobre as categorias que estão mais expostas à violência dos Estados, e da sua coletividade, a partir de uma valoração das vidas que são consideradas importantes e outras que podem ser consideradas descartáveis.

Inúmeros estudos antropológicos apontam para uma característica marcadamente antropocêntrica da maioria dos povos, ocidentais ou não, que se percebem como o modelo de humanidade em contraposição a povos que representam uma alteridade, muitas vezes, distantes da humanidade proclamada por eles. Entretanto, a discussão afirmada pela autora não é sobre encontros, ou desencontros, culturais, pois, apesar deles contribuírem sobremaneira para as construções de determinados enquadramentos, uma vez que tocam em questões como gênero, religião, raça, cultura e etc., a discussão não se resume a isso. Ela diz respeito a um reconhecimento de humanidade que está atrelado ao valor que essa vida goza em sua comunidade ou em comunidades alheias.

Dessa maneira, não existe na atualidade globalizada a possibilidade da dúvida de que certos grupos historicamente vulneráveis ao preconceito, tais como os negros, as mulheres, os homossexuais, os pobres, os judeus, os mulçumanos, os estrangeiros e demais outros, não sejam sujeitos humanos na sua condição de bios

animal, de corpos e vidas que nascem, respiram, se alimentam, se reproduzem e

estão sujeitas à destruição por meio de doenças, fome ou violência.

A discussão passa, precisamente, pela “saturação política” que garante a manutenção das vidas humanas e a sua maior, ou menor, vulnerabilidade, e está imbricada em quais vidas valem ser vividas em detrimento de outras, que podem desaparecer aos milhares, em decorrência das mais diversas razões, em países pobres, periferias miseráveis, campos de concentração, barcos abarrotados em mares que dividem fronteiras, zonas de guerras, delegacias de polícia e etc. sem que provoquem choque, luto e revolta, ou mesmo que o provoquem em escala acentuadamente menor, em comparação com outros grupos, que detêm uma maior capacidade de provocar empatia com seus sofrimentos e que, em decorrência disso, podem potencialmente galvanizar os sentimentos de indignação e revolta em ações que modifiquem e transformem estruturas políticas e sociais, que os expõe a diversos tipos de violência.