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2. AS FALTAS DE UMA MORTE ROUBADA: O TEMPO, O LUGAR E OS CORPOS

2.3 Nomeando o invisível

Apesar de estórias e famílias distintas o que esses desaparecidos têm em comum na sua relação com os seus parentes que não puderam enterrá-los? Podemos afirmar que eles são fantasmas que pairam sobre essas famílias porque não houve uma passagem dos mesmos para outro mundo através de rituais que permitiriam fixar seus espíritos errantes. Eles são phásmas que vagam eternamente pairando sobre todos, como afirma Francisco Guariba, constituindo uma presença forte e potente que não cessa de doer pela incapacidade de se distanciar do mundo dos vivos e virar memória. O que existe é uma permanente atualização das suas ausências que se reinscrevem de maneira incessante, não permitindo que sejam deixadas para trás, fixadas em um ponto do passado, diverso do tempo presente.

E o que vem a ser um fantasma? Originário da palavra grega phantásis que significa “visão”, “aparição” e “sonho” o termo fantasma nos verbetes também assume a significação de “aparência destituída de realidade, puramente ilusória”, como também de “obsessão, fixação que permanece presente na mente de alguém” ou “perigo, coisa preocupante”. Ele é ao mesmo tempo algo que não é real, mas que, no entanto, constitui uma obsessão, uma fixação, justamente porque sua ausência pesa sobre todos. O phántasma, assim como o eídolon e o kolossós são a tradução grega de forças do além que pertencem ao mundo do invisível e que compreende também o sonho, a sombra e o simulacro. Todos eles simbolizam a categoria do duplo e por isso se constituem como algo que sempre remete a um

outro que está ausente naquele momento e naquele espaço. Que não é visível aos

olhos dos homens.

No caso dos desaparecidos é possível afirmar sua condição de fantasma porque ele não é mais um vivo, no entanto, devido a sua impossibilidade de ser um morto, assume a forma de um duplo de um vivo que não é mais visível. Marca sua ausência de maneira opressiva uma vez que sua morte e sua vida estão em suspenso.

Daí a necessidade da fixidez de uma pedra para constituir sua lápide e para inscrevê-lo no lugar dos mortos. Daí também a necessidade de rituais para tirá-lo da indeterminação e apaziguar sua memória. No entanto, na impossibilidade de cerimônias e de corpos velados, é necessário atentar para o fato de que é possível que suas sepulturas assumam formas diversas. Muitas vezes, como tentei

descrever, elas assumem a forma de uma carta, de um encontro espiritual, ou mesmo de um enterro sem um corpo.

Os enterros simbólicos muitas vezes conseguem restituir para os familiares à morte que lhes foi roubada. Para Zuzu Angel seu filho estava morto. Para Rosa Maria, Honestino também havia morrido. Por meio do enterro de Ruy Carlos seu pai pôde encerrar a vida do filho. As estratégias de luto foram variadas como são variadas as subjetividades de cada indivíduo.

Porém, gostaria de finalizar este capítulo levantando uma questão fundamental que é a de que essas mesmas estratégias, apesar de estabelecer a morte para alguns, não tem o poder de estabelecer a morte para todos. Ou seja - apesar da realização de um verdadeiro trabalho de luto por parte de muitos familiares, como também do fornecimento de atestados de óbitos por parte do Estado brasileiro - a morte desses desaparecidos não foi estabelecida para todos na esfera mais ampla da sociedade e, portanto, os mesmos ainda não conseguiram o estatuto definitivo de mortos. Ainda constituem uma presença que “desapareceu” dos olhos dos vivos, que está no mundo do invisível.

Como afastar a incerteza dessas mortes quando nem o tempo, nem as informações atestando os assassinatos, e nem mesmo documentos jurídicos são capazes de fazê-lo? E desdobrando essa pergunta para a identidade desses desaparecidos, podemos também nos questionar se mesmo que chegássemos a um ponto no qual todos acreditassem na morte dos mesmos, eles perderiam essa identidade ambígua de desaparecidos enquanto seus corpos não forem localizados. Enquanto seus restos mortais não “aparecerem” eles não morrem, mesmo que muitos os enterrem e os creiam mortos, porque a morte não é uma questão de crença, ela precisa obedecer a um princípio de “realidade” (FREUD, 2011:49) uma vez que é, simultaneamente, um evento biológico e cultural. A questão dá voltas e retorna sempre ao mesmo ponto que é a centralidade dos corpos para que possamos estabelecer definitivamente uma morte. Então como “dar a morte” a alguém sem um corpo? A questão segue dolorosamente sem respostas para os familiares.

Muitos anos se passaram sem que ficasse claro o que acontecia com o tio. Sem que fosse possível sequer mencionar seu nome. Mas sua presença permaneceu constante. Pairava no ar, estava sempre entre nós. O tempo todo. Ao ir para São Sepé visitar meus avós, às vezes sentia que ele estava ali, mas não falava nada – nem eu, nem ninguém. Era como proibido dizer

seu nome. “Teu padrinho fez coisa errada”, ouvi uma vez de um primo querido. Ficava me perguntando o que ele teria feito de tão errado assim para sumir. Meus pais não explicavam, não tinham as respostas – e, no entanto, o ar continuava impregnado da presença dele. [...] O tempo foi passando e o tio não mandava notícias. Não era encontrado, nem aparecia. Idas e vindas a São Sepé, visitas aos avós, os anos na escola avançando. E nada do tio Cilon. [...] Então não sei como, veio a notícia que ele era um desaparecido político. Mesmo assim, a sensação continuava lá. Desapareceu? Como? Por quê? Jamais perguntei uma só palavra sobre isso. Fomos todos vivendo. [...] Em 1995 foi minha vez de partir para São Paulo. Nesse mesmo ano, fui com a prima Édila, que também morava na capital paulista, numa reunião de familiares de mortos e desaparecidos. No ano seguinte, o governo brasileiro reconheceu como mortos os desaparecidos políticos. Foi atestado o óbito de tio Cilon. Seu corpo, porém, nunca chegou para o enterro (BRUM, 2012:22-23).