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3. OS CRIMES SILENCIADOS

3.2 O ressentimento como um protesto

A memória dos desaparecidos políticos também se relaciona com as categorias do ressentimento e do revanchismo porque tocam na questão do “excesso de memória” ou “excesso de esquecimento”, que relacionadas à categoria 41 Entrevista concedida em janeiro de 2016, Brasília.

da justiça, provocam deslocamentos de sentidos na discussão sobre o luto. Ou seja, existe uma disputa política em torno dessa questão que não diz respeito somente aos seus corpos físicos e simbólicos, mas também ao lugar desses crimes, que muitos insistem em fixar no passado, e outros, em deslocá-los para o presente como um problema também da nossa atualidade democrática.

Para uma parcela da população brasileira a demanda dos familiares por justiça, e suas narrativas de sofrimentos, estão relacionadas a um “excesso de memória” porque todos os crimes cometidos no período, por militares ou militantes de esquerda, foram anistiados, ou seja, foram legalmente perdoados. Consequentemente, a justiça já foi feita, as questões foram resolvidas, e essas mortes estão estabelecidas no passado. Dessa maneira, a permanente tentativa de trazê-las para a esfera pública é resultado de um excessivo “apego” ao passado por parte dos familiares, e está, portanto, no terreno da patologia psicológica. Outro ponto de sustentação desse argumento é que os familiares já foram ressarcidos financeiramente pelos crimes e a maioria dos atestados de óbitos já foi entregue aos mesmos. Portanto, suas reivindicações são deslegitimadas pelo seu caráter de “desajuste” temporal e legal que impedem ações de reconciliação da coletividade.

Por essa linha de pensamento tudo foi resolvido no nível jurídico e político e essas narrativas, e demandas, se mostram, portanto, sem fundamento. Os crimes estão fixados no passado, e esse passado não se comunica com o presente porque foi divido pela lei da anistia, e por diversas outras ações e medidas legais, que promoveram uma transição “lenta, gradual e segura”. As continuidades são ignoradas, ou desvalorizadas, em detrimento das rupturas entre esses dois momentos políticos. Essas mortes devem ser então ser silenciadas ou, no máximo, seus fatos devem ser verbalizados e recepcionados como casos, violentos e lamentáveis, mas que não se relacionam com a atualidade. No entanto, podemos observar pelos testemunhos dos familiares uma desconstrução desse discurso quando eles problematizam as categorias de “revanchistas” e “ressentidos” a partir da ideia de um “excesso de esquecimento” produzido pelos militares, no passado, e pelos governos democráticos, no presente, problematizando a legalidade da anistia e sustentando seu argumento também a partir da categoria de justiça.

Dessa maneira as reivindicações dos familiares se apoiam no entendimento de que o perdão concedido para esses crimes é legal, mas que essa legalidade pode ser questionada porque o crime do desaparecimento forçado se enquadra na

categoria da imprescritibilidade. Por consequência, existe uma contradição, entre o direito interno e o direito internacional, que não pode ser ignorada, e que ampara o argumento de que esses crimes não poderiam ter sido perdoados, pois essa ação vai de encontro aos tratados assinados e ratificados pelo Brasil nas áreas relativas a proteção dos direitos humanos, como também que esse luto “em aberto” tem uma dimensão que não é apenas da ordem emocional e individual, mas também da ordem política e coletiva.

Ou seja, mesmo que não houvesse a possibilidade da revogação da anistia, certos tipos de crimes, tais como os desaparecimentos operados pelo Estado, deveriam, obrigatoriamente, ser julgados, porque sua característica de imprescritibilidade advém justamente da sua capacidade de perpetuar no tempo sentimentos de dor, ultraje, revolta, opressão e similares.

Nessa administração política e jurídica do tempo existe uma disputa entre memória e esquecimento nos quais é escolhido o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. E também, quando, e como, os fatos e as pessoas, devem ser lembrados. Esses enquadramentos da memória visam, sobretudo, a construção de uma memória coletiva que busca sobrepor-se a memórias individuais, ou de grupos específicos, sob um contexto uniformizador que não permite fissuras ou conflitos.

A partir delas podemos questionar: se é extremamente difícil esquecer certos eventos do passado, seria possível tal tarefa nos casos de extrema violência e sofrimento? E mesmo que seja possível para alguns, é legítimo o Estado impor isso aos seus cidadãos? É razoável que uma parcela da sociedade espere, e pressione, para que certos fatos, ou pessoas, sejam esquecidos, assim como as violências sofridas por elas?

Em outras palavras: é honesta a expectativa de alguns setores sociais de que as páginas da ditadura militar “sejam viradas” em nome de uma distância temporal que teria - segundo o linguajar empregado - “fechado as feridas”? No Brasil, quando o argumento da imprescritibilidade dos crimes é ignorado a partir do argumento da lei da anistia, é recorrente a acusação de que os familiares estão “presos” ao passado, remoendo fatos que deveriam ter perdido a importância diante do tempo transcorrido entre os crimes e a atualidade.

É como se as ações do judiciário em ignorar os crimes cometidos na ditadura adquirissem uma legitimidade social, também, a partir da ideia de que o tempo cronológico tem o poder de validar o esquecimento. Quanto mais distante mais

insignificante. Dessa maneira, a paralisação do judiciário aciona um mecanismo perverso de deslegitimação das demandas por justiça, seja no campo jurídico, seja na esfera social. Esse mecanismo se fortalece e se sedimenta com o passar dos anos através de um discurso de extrema eficácia, que localiza a ditadura militar como um “passado que não passa” (CONAN e ROUSSO, 1994), exclusivamente pelo empenho de grupos específicos que “insistem” em lembrar acontecimentos que não apenas tem o estatuto de “fatos passados”, mas, sobretudo, de “fatos ultrapassados”, cujo significado é o de superado, antiquado, obsoleto.

Se a sociedade ignora, e não se mostra disposta a (re)conhecer esse passado, cabe às famílias dos mortos e desaparecidos a sua guarda simbólica. O dever de memória imposto aos familiares, e o isolamento social no qual se encontram, reforça o discurso dos setores conservadores que os acusam de “revanchistas” ou “ressentidos” por não compactuarem com o esquecimento e o silêncio que cercam essas violações e por insistirem em suas demandas de “memória, verdade e justiça”.

É importante então para o debate lembrarmos que o termo “revanchismo” tem origem na palavra francesa revanche, variação de venger, que significa “vingar”, (HOUAISS, 2001:2451) e que é um termo historicamente utilizado para designar a vontade de reverter as perdas territoriais sofridas por um país, muitas vezes depois de guerras ou movimentos sociais. Vingança significa a vontade de provocar no outro o mesmo sofrimento ou agravo sofrido na sua exata proporção. Ela tem um fim em si mesmo e não acena para nenhum outro horizonte que o da satisfação da vítima, que pode se deslocar dessa posição transformando seu antigo algoz também em uma vítima, em um movimento de revezamento de posições que se esgota nessa troca.

Ora, se a vingança se presta a realização de uma troca de lugares, entre vítima e algoz, a demanda dos familiares por julgamentos e punições promove uma ruptura no que poderia ser caracterizado como revanchismo, uma vez que existe um terceiro, no caso o poder judiciário, atuando justamente no estabelecimento de direitos e deveres que despersonalizam os crimes entre os indivíduos, famílias ou grupos, deslocando-os para o espaço mais amplo da coletividade, no qual todos estão submetidos a um ordenamento jurídico comum. A demanda dos familiares por justiça visa à manutenção de um Estado de direito diverso das antigas sociedades de outrora, nas quais a lei dos mais fortes se sobrepunha aos demais, e nas quais

as disputas e conflitos eram resolvidos a partir da violência. Dessa maneira, revanchismo seria sequestrar, torturar e matar os agentes que praticaram tais violências contra os seus familiares, e não a demanda para que os crimes cometidos sejam julgados a partir de um sistema de leis nos quais toda a coletividade está submetida.

Quando questionado sobre os resultados da Comissão Nacional da Verdade - única possibilidade concreta de que as violações cometidas durante o regime militar pudessem ser judicializadas diante do entrave da lei da anistia - Mateus Guimarães se revela insatisfeito e alerta para um discurso sobre o pretenso “revanchismo” dos familiares que, ainda na atualidade, possui uma enorme eficácia simbólica na arena pública brasileira. No caso específico, esse discurso foi utilizado pela presidenta Dilma Roussef de maneira invertida, não como uma acusação, mas como uma defesa, ou justificativa, para a necessidade da instalação da referida comissão, revelando que não existia uma vontade de desconstrução dessa narrativa autoritária, mas sim, uma pretensão governamental de dialogar a partir desse registro:

P: Os trabalhos da Comissão da Verdade, em relação aos desaparecimentos forçados, te deixaram satisfeitos ou não?

Nenhum pouco. Nenhum pouco e, desde o início, eu já estava com poucas expectativas. Eu acompanhei os dois atos oficiais que tiveram, relacionados à Comissão, que foi a instauração da Comissão, o ato de criação, e o ato de posse dos comissionados. E, desde aquele momento, eu senti que a gente tinha muitas limitações ao processo, uma visão ainda muito pouco encorajada. [...] Mas desde ali, eu senti isso, sobretudo, porque nos dois momentos, a presidenta Dilma fez aquela citação, dizendo, e deixando claro, que não se tratava de um processo de revanchismo. Bom... revanchismo é lógico, é claro que não se trata! Ninguém, eu não conheço ninguém no “Movimento Pela Memória, Verdade e Justiça” que queria ver torturador em pau de arara. E revanchismo seria, no mínimo, fazer o mesmo, senão pior. De forma que para mim, eu acho que para qualquer um que é familiar de um morto, ou desaparecido político, você vê alguém falar que isso não é revanchismo, só por falar isso, é algo que me afronta, me incomoda bastante. Que dirá a presidenta falar em momentos como estes. Então, por quê que ela falou? Provavelmente, por uma série de pressões que estavam em cima dela, sobretudo, pela pressão exercida pela mídia, pela imprensa, que gosta muito de manter e de levantar esse discurso do revanchismo. Impulsionada por esses setores reacionários [...], por aqueles que não têm o mínimo interesse na revelação da verdade. Então, em atos como esse, nos dois atos que ela falou, então para mim ficou muito claro, mas também pelas limitações que foram dadas desde o início à Comissão. Uma Comissão com somente sete comissionados, uma Comissão com pouquíssima estrutura, com poucas pessoas, com uma equipe reduzida. De fato, as condições dadas, desde o início, não foram condições que transmitiam uma sensação de que era algo que estava sendo realmente levado a sério pelo governo, e que era algo que o governo brasileiro tinha muito interesse que fosse resolvido. Pelas próprias condições que foram dadas a gente já via isso com certa clareza. E aí, num momento um pouco

posterior, a gente teve uma série de tratativas com a Comissão, e aí vimos que não tinha nem um plano de trabalho, sequer sabiam como iriam receber e proceder com as denúncias e os testemunhos. Assim, não tinham noção de nada, com mais de seis meses de criação da Comissão. E, no início desse processo, eu acho que deveria ter sido feita uma grande campanha junto a população, que também não foi feita, porque a gente vem de um processo em que há um grande desconhecimento social sobre o tema, primeiramente. [...] Então, era para ter tido, sim, uma campanha de encorajamento, de esclarecimento da população em todas as redes, e meios, e mecanismos possíveis, em horários nobres nos principais espaços. E essas campanhas também não foram realizadas a contento. Então, com todos esses fatores, a gente observa que desde o início era um trabalho que não tinha muito para onde ir. De fato, deu no que deu, né? [...] Eu não percebo, assim, sinceramente, avanços. Não sei se eu posso chamar de avanços, devido ao esforço institucional, e devido ao peso político, e devido, sobretudo, a comparação dos trabalhos da Comissão da Verdade em outros países. Não consigo compreender que a nossa tenha avançado, até porque, na maioria, o que se conseguiu foi uma compilação do que a gente já tinha de informações. [...] Eu espero que, pelo menos ali no termo das recomendações, que esse trabalho tenha algum tipo de capilaridade e continuidade, e que pelo menos a gente consiga introduzir novos capítulos nos livros de história da educação brasileira, para que a gente possa promover, no mínimo, esse processo de um conhecimento maior e mais profundo da população acerca dessa história. (GUIMARÃES, 2016)42

Semelhante ao “revanchismo” na recusa em esquecer um agravo, mas sem a conotação da vingança, outro fala comum é a de que os familiares seriam “ressentidos” por se recusarem a esquecerem dos crimes cometidos no passado e sobre essa categoria é necessário nos determos mais demoradamente.