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1. O LUTO – “ADIEU, ADIEU, REMEMBER ME”

1.9 O funeral para uma cidade

Além dos lutos descritos, temos o exemplo da cerimônia funerária promovida pela família Berbert, que encenou o enterro de Ruy Carlos para toda a coletividade, como uma forma de completar o trabalho do luto para os parentes e cidadãos de Jales, cidade do estado de São Paulo.

Ruy Carlos Vieira Berbert militava no Movimento de Libertação Popular (Molipo) quando desapareceu, em 1972. Juntamente a outros militantes, foi apontado pelos órgãos de segurança como um dos nove participantes da ALN (Aliança Libertadora Nacional) que sequestrou o avião da Varig, em uma viagem de Buenos Aires para o Chile, desviando a aeronave para Cuba em novembro de 1969.

Depois de receber treinamento militar em Cuba, ele retornou ao Brasil em 1970, já integrando a Molipo, permanecendo na organização até sua morte, em Natividade, cidade que na época pertencia ao estado de Goiás. Após a abertura dos arquivos do Dops/SP, em 1991, a Comissão de Familiares recebeu um atestado de 21Cidade onde vive a família do seu pai no sertão da Paraíba.

22 Entrevista concedida em 2015, São Paulo.

óbito com o nome de João Silvino Lopes, que teria cometido suicídio em 1972, e juntamente a esse atestado, entregue pela Comissão Pastoral da Terra, havia a informação de que esse documento provavelmente pertenceria a algum militante político. Logo após, em 1992, conseguiram relacionar Ruy Carlos a esse atestado de óbito falso porque seu nome verdadeiro constava em uma relação que indicava que ele também havia se suicidado, em Natividade, no ano de 1972.

Por cauda do pedido da Comissão de Familiares foi organizada uma caravana, coordenada pelo deputado Nilmário Miranda, para investigar o caso de Ruy Carlos. Na cidade de Natividade, a referida comissão pôde colher depoimentos de várias pessoas que reconheceram Ruy Carlos Berbert como sendo João Silvino Lopes. A versão oficial afirmava que ele teria se suicidado na delegacia, apesar do enorme pé-direito da sua cela e da estranha escolha de uma rede para realizar o enforcamento.

Em posse dessas informações, seu pai, Ruy Thales Jaccoud Berbert, solicitou a retificação do atestado de óbito para a juíza de Direito da Comarca de Natividade, para que nele constasse o nome verdadeiro de seu filho. Seus familiares, apesar de conseguirem desvendar as circunstâncias de sua morte e de terem acesso a um atestado de óbito por parte da Justiça, jamais puderam localizar seu corpo no cemitério da cidade.

Com exatos vinte anos de atraso, mesmo sem o corpo, mas já com a certeza da morte, Ruy Thales organizou uma cerimônia fúnebre para que a passagem do seu filho para o mundo dos mortos, assim como os demais homens que morrem, também fosse cercada de respeito e atenção por parte da comunidade dos vivos.

Segunda-feira, 18 de maio de 1992. Em Jales, a 600 quilômetros de São Paulo, um caixão fechado é velado na Câmara Municipal. Foi decretado feriado, a cidade inteira está parada. A Câmara está lotada. Presentes crianças e adolescentes, gente de todas as idades. É um dia de sol muito quente, daqueles que nem ferro de marcar. Após o velório, um cortejo segue a pé até o cemitério. Depois de anos de busca do filho desaparecido, Ruy Thales consegue enterrá-lo. O caixão é finalmente depositado no jazigo da família Berbert. Dentro dele, porém, não havia um corpo. Nem restos mortais. Apenas um terno completo e os sapatos de Ruy Carlos Vieira Berbert, desaparecido desde 1972. Objetos que haviam permanecido até então intocados em seu quarto, para ‘caso ele voltasse’.

Antes do início das cerimônias, Ruy Thales, o pai, chamou Amélia Teles em casa para tomar um café. Ela estava em Jales representando a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Ele havia me chamado para o enterro, mas eu sabia que os restos mortais não haviam sido encontrados. Aceitei o convite e não perguntei nada. Ele também não me disse nada. Depois do café, o conteúdo do caixão foi revelado.” Naquele dia, Amélia foi cúmplice de Ruy Thales. Ninguém, além dos dois, sabia que

o ataúde estava praticamente vazio. O pai já estava bastante idoso e, prevendo que morreria logo, quis enterrar o filho. Mesmo sem ter um corpo. No fim do dia, depois do ato na Câmara e do enterro, deu um jantar para 80 pessoas. “Era uma mesa enorme, parecia um banquete”, conta Amélia. O pai de Berbert morreu pouco tempo depois. Mas conseguiu enterrar seu filho. Naquele dia, quem passou pela Câmara Municipal de Jales prestou homenagens frente ao caixão vazio de corpo, mas repleto de símbolos. Velaram um corpo que não era corpo, que não sabiam que era corpo, mas que reverenciavam e o fariam ainda que soubessem. No cemitério, colocaram a bandeira a meio-pau e cantaram o hino nacional. Tudo isso para o homem que não estava lá. (BERBERT apud GÓES, 2012:40-41)

Essa encenação remete, primeiramente, à necessidade do ritual funerário para restaurar a ordem social que cada morte ameaça desorganizar. Ou seja, é preciso que a morte seja aculturada por aquela sociedade para que não constitua uma ameaça que desagregue a ordem estabelecida.

Ao ritualizar a experiência da morte, as pessoas organizam a passagem entre o mundo dos vivos para o mundo dos mortos e tentam controlar uma experiência- limite para todos os homens, que é o momento do nascimento e o da morte.

O luto de Zuzu Angel, o encontro de Maria Rosa e Honestino, e o enterro organizado por Ruy Thales expressam a passagem de um tempo de buscas e esperanças para um tempo em que seus filhos ganharam o estatuto de mortos. A cerimônia revela a luta contra a ambiguidade da condição de desaparecido por meio de seus funerais, uma vez que não basta a certeza do assassinato por meio de uma carta, como no caso de Zuzu, ou a descoberta do assassinato por meio de documentos do Dops, como no caso dos pais de Ruy Carlos, para tirá-los de um limbo no qual eles se encontram.

A cerimônia e os ritos do luto buscam encerrar a espera, os sobressaltos, as expectativas, servindo também para definir a morte e liberar os desaparecidos da condição de “fantasmas” que, muitas vezes, devorava a vida dos familiares, pela espera opressiva, que não deixava espaço para a vivência do presente de maneira plena, e dificultava a vinda do futuro, aprisionando toda a família numa eterna suspensão temporal.

Ruy Thales enterrou objetos em um caixão vazio em um ritual no qual os mesmos se prestaram a representar o corpo de seu filho. Por meio de seus sapatos e roupas, Ruy Carlos pôde ser materializado, nos remetendo dessa forma a antigas tradições fúnebres nas quais manequins de cera, couro ou madeira eram

depositados sobre catafalcos reais ocupando o lugar do corpo do soberano que acabara de morrer. (GINZBURG, 2001)

Tanto em Roma, durante os funerais dos imperadores, como também em circunstâncias análogas em algumas sociedades europeias, desde a época medieval até muitos séculos depois, perdurou-se a tradição de enterrar “duplos” dos soberanos, em que, algumas vezes eram oferecidos banquetes nos quais se comiam e bebiam junto ao cadáver (KANTOROWICZ, 1998).

Anteriormente ao costume de se enterrar o duplo dos soberanos, já existia em Roma a tradição de se utilizar as imagos, que eram máscaras de cera dos antepassados, consideradas o equivalente de seus ossos, uma vez que havia a crença que ambos eram parte de um todo, ou seja, do corpo de um antepassado morto. A imago podia substituir o cadáver do morto em uma cerimônia denominada

funus imaginarum, ou “funeral da imagem”, quando não havia um corpo para as

cerimônias e essas máscaras específicas substituíam o cadáver ausente. E ainda antes de Roma, outros estudos recuperaram o sentido da palavra grega kolossós que eram estátuas funerárias, que originalmente tomavam o lugar dos ausentes nos rituais, constituindo-se como representações daqueles que não estavam mais entre os vivos.

A despeito das descontinuidades temporais e particularidades que contextualizam essas imagens em rituais e culturas diferentes, podemos ler a cerimônia de Berbet então como uma tentativa de representar o corpo ausente do filho desaparecido para marcar sua partida definitivamente, uma vez que “a morte não constitui o fim da vida do corpo no mundo: não é o fato biológico, mas o ato social – os funerais- que separa os que se vão dos que ficam.” (GINZBURG, 2001:88)

Outro aspecto importante a ressaltar é o da "performance" do enterro como uma estratégia de reumanização dos seus filhos. É importante atentar também para o fato de que, antes mesmo de suas mortes, eles já ocupavam o lugar de malditos no imaginário construído pelo militares sobre os opositores do regime.

Essa narrativa encontra limites quando as pessoas estão vivas e podem desconstruir essa pecha que querem lhe impingir. No entanto, quando essas mesmas pessoas não encontram dignidade em suas mortes - em valas coletivas, no fundo das águas, ou em demais lugares onde seus corpos apodrecem e

decompõem - sem outro olhar ou palavra humana para também humanizar aquele momento, elas perdem seus laços com seus pares.

Daí o “caráter produtivo dos rituais” (GÓES, 2012), que tem a capacidade de elaborar coletivamente a morte e reorganizar simbolicamente uma comunidade assaltada por um evento que escapa à experiência humana, como o desaparecimento de alguém, aculturando o que se encontrava em um limiar e, com isso, transformando tal fato em uma morte, e o desaparecido em um homem morto.

Mas é importante ressaltar que o estatuto de morto, adquirido por meio dos rituais, resgata também, de maneira subjacente, o estatuto de homem que o desaparecido perdera com a privação da sua morte. Todos os homens são mortais e, por isso, não bastava para Zuzu Angel acreditar na morte do seu filho. Ela precisava afirmar a finitude de Stuart socialmente para, em simultâneo, afirmá-lo como homem.

E a morte de um homem também demanda uma série de deferências e homenagens específicas, daí a obediência ao luto por parte da mãe de Stuart, como também a cerimônia para toda a cidade de Jales, com um enorme jantar ao final, promovido pela família de Ruy Carlos, no qual os conhecidos da cidade encontraram uma maneira de ressignificar, em conjunto, aquela morte ao reverenciar simbolicamente um caixão apenas com suas roupas e sapatos.

A irmã de Ruy Carlos explica no seu depoimento o significado desse evento para o seu pai, ao descrever a alegria dele em possibilitar e/ou impelir a coletividade no qual estava inserido a honrar a memória de seu filho e a dispensar as mesmas homenagens que as demais pessoas recebem quando morrem, e que ele não recebera até o momento daquela cerimônia.

Em 1992, resolveu fazer um enterro simbólico do meu irmão no cemitério de Jales (foi enterrado um caixão com um terno e um par de sapatos). Foi à maior alegria para ele dar um enterro para o filho. O caixão percorreu as ruas da cidade num carro de bombeiros e recebeu homenagens de toda a população do município. Meu pai disse na época que tinha conseguido ‘tirar um sapo da garganta’. Ele sofreu muito com o desaparecimento do filho. Como eles tinham o mesmo nome, chegou a ser preso na época da ditadura. Passou uma noite na prisão. (RIZZO & NOSSA, apud GÓES, 2012:44)

A cerimônia também foi o momento em que Ruy Carlos pôde ser relembrado por todos, mesmo após tantos anos do seu desaparecimento. Sua família pôde inscrever o seu sofrimento, anteriormente confinado à esfera particular, na esfera

mais ampla da comunidade. Isto possibilitou a quebra do profundo isolamento social comum aos familiares dos desaparecidos políticos que, em virtude da ausência de espaços e oportunidades para que suas dores sejam verbalizadas e compartilhadas, sofrem na penumbra e no anonimato por um luto que não possui reconhecimento por grande parte da população brasileira.

As cerimônias funerárias assumem uma dimensão política, ao se prestarem a humanizar Stuart e Ruy Carlos, porque ambos simbolizavam um outro, que abarcava tanto guerrilheiros, militantes e camponeses, como também estudantes, artistas e religiosos que ameaçavam destruir a ordem e o equilíbrio de uma sociedade militarizada e calcada em um modelo cristão ocidental.

Nesse tipo de lógica está implícita a ideia de que, para possuir o estatuto de vítima, o indivíduo não poderia ter praticado nenhum crime. Todas as demais mereceram algum tipo de castigo já que praticaram crimes de resistência armada ou política. Ou seja, qualquer ato de transgressão retirava o status de vítima e o deslocava para o de inimigo político. E no caso desse grupo, o seu laivo de marginalidade também invadia as várias esferas de sua vida social e privada.

Mesmo com enormes variações culturais em relação a sua forma, quando dispensamos cuidados ritualísticos a uma pessoa que morreu, estamos afirmando que aquela pessoa era indispensável e amada. E essa afirmação é sempre direcionada aos vivos que nos cercam.

A morte provoca uma ruptura na vida das pessoas e, a partir dela, novos papéis devem ser vivenciados ou reorganizados em virtude daquele corte que foi feito. Existe um "antes" e há um "depois", que define as posições e identidades. Quando isso não ocorre, o que existe é a vivência da falta que silencia amigos, que supostamente deveriam acolher o luto familiar, silencia a sociedade que não reconhece aquela família como um grupo que sofreu a perda de um membro querido, e até mesmo a família, que não consegue expressar em palavras o que não estava previamente registrado em suas culturas e sociedades.

2. AS FALTAS DE UMA MORTE ROUBADA: O TEMPO, O LUGAR E