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1. O LUTO – “ADIEU, ADIEU, REMEMBER ME”

1.7 Enterros simbólicos

O sofrimento pela morte dos filhos é um dos lutos de mais difícil elaboração porque ele rompe com o imaginário, no qual a aparente ordem natural da vida é a de enterrar os pais e ser enterrado pelos filhos. Existe uma desorganização existencial em que os rastros são apagados, e o fio que foi estendido em direção a um futuro infinito é rompido. No entanto, vem dos pais dos desaparecidos o exemplo de casos nos quais o luto foi realizado mesmo sem os corpos de seus filhos.

O primeiro deles é o de Honestino Monteiro Guimarães, líder estudantil da Universidade de Brasília e militante da Ação Popular (AP), que desapareceu em 10 de outubro, na cidade do Rio de Janeiro, após sair de um encontro político, no qual foi armada uma emboscada, que possibilitou seu desaparecimento aos 26 anos de idade depois de alguns anos de vida clandestina.

Sua mãe, Maria Rosa, descreve em seu livro de memórias20 que, no princípio

do ano 1974, começou a circular um boato de que Honestino estaria morto, mas ela não aceitou a idéia, passando por um tempo em profundo estágio de negação, mesmo quando os amigos e o advogado que cuidava do seu caso, já sinalizavam um arrefecimento nas buscas.

Então tudo voltou à estaca zero, mas eu não poderia deixar-me vencer pelo desânimo. É que você continuava desaparecido, e eu tinha que encontrá-lo a qualquer custo. A partir daí, mais ou menos no princípio de janeiro de 1974, começou a tomar vulto um boato vindo de São Paulo e bastante divulgado na UnB. Foi com enorme pesar que amigos e companheiros passaram esta notícia entre si. Fui bastante visitada nessa época. Porém tomei firme uma posição: não aceitava que ninguém fizesse tal comentário. Proibi mesmo que falassem a mim sobre você. É que eu não aceitava, de nenhum modo, sua morte. Era necessário acreditar em você vivo, para que eu também sobrevivesse. Assim, daquele boato, pouco fiquei sabendo, justamente pela atitude. Recomecei a busca. Voltei ao Rio, e procurei meu advogado. Fiquei surpresa quando ele, Dr. Lino, suspendeu a mensalidade que eu lhe pagava. Disse-me ele que só depois de encontrá-lo é que recomeçaria a receber meu dinheiro [...] A horrível sensação de impotência foi crescendo. Voltei ao Rio, mas nada consegui e, desiludida, retornei a Brasília, sempre tentando manter acesa a chama da esperança. Continuei todas as tentativas. Por insignificantes que fossem, eram válidas para mim. Precisava continuar essa procura. Precisava encontrar você. Esta era toda a razão da minha vida. (MONTEIRO, 1998:202-203)

Maria Rosa conta que ainda prosseguiu com a busca por Honestino por um longo tempo contando com a ajuda da CNBB, da OAB, e de organismos de direitos humanos que atuavam à época apoiando os familiares de presos políticos. Em uma dessas passagens ela conta sobre um importante encontro com o general Golbery Couto e Silva e com demais familiares dos desaparecidos políticos, organizado por D. Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo:

Por ocasião de meu relato, o General teve os olhos rasos de lágrimas. Além de pedir meu endereço, prometeu, solenemente, perante a assembléia, que eu teria sua resposta, que mandaria me buscar em casa para recebê-la. Mas aquela foi a última vez que ouvi o General. (MONTEIRO, 1998:203)

Depois de muita procura e frustrações, Maria Rosa, narra um encontro com Honestino em meio a uma sessão espírita, que ao final, possibilitou para ela a aceitação da morte do seu filho.

20Na obra Honestino: o bom da amizade é a não cobrança (1998) Maria Rosa Monteiro escreve um

livro de memórias no qual se entrelaçam capítulos de entrevistas com amigos de Honestino, com capítulos nos quais ela relembra a história de seu filho em forma de diálogo com o mesmo.

Bem filho, vou contar-lhe agora como passei a aceitar o seu descarne, como fui me adaptar à sua vida espiritual. Como você sabe, sou espírita militante e, como tal, participava de um grupo mediúnico, que praticava “desdobramento”. Explico-lhe melhor: é uma forma de mediunidade na qual o espírito se afasta do corpo físico e vai visitar ou trabalhar em diversos lugares. Realizei inúmeras missões em variadas partes. Hoje sei que fui posta à prova e, ao mesmo tempo, compensada para chegar à grande missão [...] Naquele lugar, tudo ocorreu como da primeira vez. Só meu estado de espírito estava muito mais temeroso. Recebi uma carga maior de energia e um impulso quase obrigatório. Começamos a operação corredor/cela, só que, desta vez, iniciando pelo final do corredor. Em cada cela, cada irmão adormecido ou entorpecido com que me deparava, era um suspense para mim. Isso se repetiu até chegar à última cela, quando, finalmente o encontrei. Grande foi o impacto, mas logo aquela voz me ordenou: - faça com ele o mesmo que fez com os demais. – E assim procedi, pois tinha consciência de que se desse modo não o fizesse, eu poderia prejudicá-lo e você perderia a oportunidade de socorro. Dei-lhe o passe e você despertou, como se acordasse de um sono profundo, porém natural. Abriu seus olhos e voltei-me, sorriu e me abraçou, deitando sua cabeça no meu ombro – gesto natural seu. Parecia que estava acordando de um sono profundo; anulara-se finalmente, o grande espaço de dor e de terror. Tudo isso se passou num período de segundos. Logo ouvi novamente a voz de comando e cumpri o meu dever de médium. Você fora levado e recolhido, como os demais, a uma casa socorrista da espiritualidade. Ao retornar a meu corpo, acordei também para a realidade, num pranto convulsivo, porém bastante consolada, pois sabia agora do seu destino. Você estava em mãos superiores, que lhe dispensavam tratamento, orientação e amparo. Daí para frente eu sabia que toda a busca aqui na terra seria em vão. (MONTEIRO, 1998:204-206)

Logo após esse trecho Maria Rosa se volta diretamente ao leitor para então concluir:

Querido amigo leitor, desculpe-me se, diferente de mim, você não comunga do relacionamento com o mundo espiritual. Mas, se estou relatando a vida e a história do Honestino, não poderia deixar de referir-me a este fato, que mudou imediatamente a minha posição em relação ao seu desaparecimento. (MONTEIRO, 1998:204-206)

No caso de Maria Rosa a religião não serviu apenas de conforto por acreditar que seu filho se encontrava em um plano extraterreno, mas também possibilitou um raro encontro pessoal entre mãe e filho. Sob esse aspecto subjetivo pode-se afirmar que Maria Rosa, de fato, encontrou Honestino. Ela, por meio da religião, conseguiu vivenciar sua despedida e, principalmente, dispensar cuidados ao seu filho morto violentamente. No encontro descrito em seu livro ela o acordou de um sono profundo, tocou seu corpo, e pôde prestar o socorro que não o fizera na ocasião da sua morte, quando seu filho morreu sozinho em meio às torturas.

É importante destacar que nesse episódio Maria Rosa se identifica como o agente da narrativa. Ela não assiste passivamente, ou mesmo acompanha uma

terceira pessoa que socorre seu filho. Como não pôde se antecipar e impedir o desaparecimento de Honestino, ela o resgata em um momento posterior à sua morte, impedindo que o mesmo continuasse em sofrimento. Resgata também, em paralelo, sua identidade de mãe, violentamente ferida pelo desaparecimento de um filho que morreu sob um sofrimento extremo.

Mesmo que ela não tenha tido possibilidade de reação diante da força de um Estado violento e repressor, ela conseguiu por meio da sua crença religiosa, elaborar uma narrativa no qual ela realiza o que desejava ter feito, se assim tivesse tido possibilidade, que era o de proteger e cuidar de seu filho. E assim ela o faz: encontra Honestino adormecido em uma cela, o acorda do pesadelo da morte violenta, o abraça e o encaminha para “uma casa socorrista da espiritualidade”.

É importante salientar que no espiritismo, para alguém reencarnar, deve, primeiramente, morrer fisicamente. E Maria Rosa ao encontrar Honestino, sob a forma de um espírito, estabelece assim sua morte terrena. Após esse encontro ela segue buscando informações, mas a morte para ela já é um fato que, segundo suas palavras, mudou sua atitude em relação ao desaparecimento e possibilitou a elaboração da perda sofrida, se afirmando “consolada” ao saber do destino do filho, pois “anulara-se finalmente, o grande espaço de dor e de terror.”