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4. VIDAS PASSÍVEIS DE LUTO

4.3 Os bárbaros e os helenos

Reinhart Koselleck (2011) faz uma historicização dos termos “homem e não homem, super-homem e sub-homem” à partir de termos binários e antagônicos de “heleno e bárbaro”, “cristão e pagão” e “homem e não-homem” como conceitos antitéticos assimétricos que se pretendem universais porque buscam incluir a humanidade em sua totalidade.

Uma unidade de ação política e social só se constitui por meio de conceitos pelos quais ela delimita, excluindo outras, de modo a determinar a si mesma. Empiricamente, um grupo pode se constituir por meio do comando ou do consenso, do contrato ou da propaganda, da necessidade ou do parentesco, de alguma outra coisa ou de uma outra maneira qualquer. Mas não podem estar ausentes os conceitos pelos quais o grupo possa se reconhecer e se autodeterminar, caso deseje apresentar-se como uma unidade de ação. No sentido empregado aqui, o conceito serve não apenas para indicar unidades de ação, mas também para caracterizá-las e criá-las. Não apenas indica, mas também constitui grupos políticos ou sociais (KOSELLECK, 2011:192).

Como afirma o autor, o termo “bárbaro” e “heleno” apresenta características modelares uma vez que mesmo antes dessas palavras se constituírem como

conceitos antagônicos, o termo “bárbaro” servia de designação para todos os povos não-gregos, antes dos mesmos se definirem pelo nome coletivo de “helenos”. Posteriormente, do século VI ao século IV a.c, o antagonismo se constitui sob as bases de povos que não falavam o grego, mas que, além disso, ilustravam características negativas como as de serem covardes, grosseiros, cruéis e etc. Como diferença positiva, os gregos se constituíam o oposto do resto da humanidade, uma vez que se viam como cultos, educados, livres e criadores da

polis como organização diversa das monarquias orientais. Mesmo que tais

diferenças e características estivessem mais no plano das aspirações e projeções identitárias, elas tiveram uma acentuada eficácia para reunir sob a designação de “heleno” uma série de povos gregos e mais uma série de características que os singularizavam do restante da humanidade.

De todo modo, como Koselleck chama a atenção, Heródoto, e outros pensadores gregos, problematizou e relativizou esses conceitos até que Platão deu o primeiro passo para uma diferenciação orientada para exclusão, quando reduziu essas oposições à natureza desses povos. Os “helenos” seriam um “gênero” (genos) específico que se degeneraria ao se misturar com povos bárbaros. Dessa maneira uma luta entre gregos deveria ser realizada “com moderação e com investimento mínimo” (KOSELLECK, 2011:199), pois era algo não natural, uma guerra entre irmãos, uma guerra civil (stasis), e as guerras contra os bárbaros deveriam visar a sua destruição pois eram justas por natureza (polemos). “Graças ao dualismo assimétrico, dever-se-ia criar um espaço político interior para servir de proteção contra todo o mundo exterior” (KOSELLECK, 2011:199).

A diferença assumiu contornos bélicos e geográficos uma vez que esse dualismo foi utilizado como justificativa para a criação de um “nós” que não deveria se misturar com os “outros”, como também um espaço helênico, um “interior” que deveria se proteger de todo o restante, um espaço “exterior”. Aristóteles aprofunda a ideia de uma inferioridade bárbara ao afirmar que os bárbaros seriam escravos por natureza ao passo que os gregos seriam “uma mistura ideal de força e prudência” (KOSELLECK, 2011:199). A exclusão vertical assumiu uma característica horizontal uma vez que:

Os conceitos antitéticos indicavam, também, a existência de um gradiente de dominação política, de cima para baixo. Os bárbaros, reduzidos às suas qualidades naturais que os tornavam semelhantes

aos animais, estavam aptos a assumir os trabalhos dos escravos dentro da polis [...] A natureza, portanto, separou de tal modo heleno e bárbaro, que sua diferença ajuda a fundamentar, tanto a constituição interna quanto a política externa. Se Platão quis transferir a guerra civil da Grécia para o Oriente, Aristóteles superpunha os âmbitos de legitimação: a assimetria dos conceitos antitéticos garantiu o predomínio dos cidadãos helênicos, tantos para baixo quanto para fora (KOSELLECK, 2011:199-200).

Contudo, como assinalado por Koselleck, esse conceito hierárquico baseado em uma natureza (physis) que divide a humanidade entre metades diferentes em termos de valor, foi problematizado no próprio seio do pensamento grego, uma vez que “nem todos os bárbaros podiam ser incluídos no conceito antitético da construção dualista” (KOSELLECK, 2011:200). Daí expressões como “nobre pagão” ou “a alma nórdica em um corpo oriental” (KOSELLECK, 2011:200). Ou seja, estrangeiros e escravos continuamente rompiam esse discurso porque no seio mesmo da tradição de pensamento helênica essa assimetria antitética foi problematizada por Heródoto e pelos sofistas que argumentavam que “helenos, bárbaros e escravos seriam iguais por natureza, diferindo apenas em virtude da lei e das atividades” (KOSELLECK, 2011:200).

Para além da questão de uma physis superior ou inferior que dividiria gregos e bárbaros, Tucídides, Platão e Aristóteles também vincularam os bárbaros ao passado helênico. Eles seriam um passado helênico superado, ou um estágio de desenvolvimento cultural e social anterior ao vivido pelos helenos. A diferença se deslocou de uma natureza diversa e desigual para temporalidades históricas dissonantes, ou seja, a natureza não seria a causa da assimetria, mas sim o tempo, que localizava os bárbaros em um passado que também qualificava seus habitantes. Como consequência, os gregos teriam a physis correspondente ao seu presente cultivado e desenvolvido, em contraposição aos povos bárbaros que espelhariam em sua natureza o estágio de atraso de suas culturas e sociedades.

No passado, os helenos:

Compartilhavam a grosseria e o atraso dos costumes bárbaros, como se apresentarem com vestimentas de guerra, portarem armas ou praticarem pirataria em tempos de “paz”, comprarem armas ou mulheres, escreverem em mau estilo, privilegiarem nos processos o acusador, elegerem voluntariamente governantes despóticos, fazerem trocas sem dinheiro (KOSELLECK, 2011:201).

Mas superaram essas práticas com o passar dos anos, encontrando-se, em um estágio posterior, mais avançado culturalmente. Depois da fusão de gregos e bárbaros, sob o domínio do imperador Alexandre, essa antítese tornou-se menos óbvia e sofreu alterações sob novas unidades sociais e políticas que uniam helenos e povos diversos. A classificação de “heleno” passou a ser utilizado para qualquer indivíduo culto e refinado, independentemente de suas origens, de maneira inversa, o termo “bárbaro” passou a ser empregado para classificar sujeitos rudes e poucos instruídos. Desse modo, a antítese não era mais derivada da natureza ou dos espaços geográficos, mas sim de características intelectuais que relacionava o termo “heleno” com educação e cultura e o termo “bárbaro” com ignorância e grosseria.

Onde quer que existissem unidades de ação política capazes de se projetar de dentro para fora, ou além-fronteiras de fora para dentro, a figura da linguagem assimétrica continuou viva, e com ela o conceito de bárbaro, que sempre podia ser aplicado com novos conteúdos, inclusive de forma positiva (KOSELLECK, 2011:203).