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O ressentimento como um protesto contra o esquecimento

3. OS CRIMES SILENCIADOS

3.4 O ressentimento como um protesto contra o esquecimento

Distanciando-se de uma perspectiva negativa que identifica o ressentimento como um sentimento vinculado ao egoísmo, ou intransigência, ou mesmo a uma incapacidade de esquecer e se recuperar de uma violência ou sofrimento, Derrida não pensa o ressentimento a partir das categorias de reconciliação, ou totalidade, mas como algo que passa por uma relação direta com o outro e que, portanto, não pode ser mediado por instâncias jurídicas ou por quaisquer outros sujeitos que se interponham entre vítima e agressor.

O escritor Jean Améry43 faz parte de uma literatura de testemunho que

problematiza a questão do perdão e ressalta a sua importância diante de uma cultura do esquecimento. Na sua obra, Além do Crime e Castigo ele afirma:

Para simplificar e deixar mais claro o que penso, basta retornar à convicção de que o conflito não resolvido entre vítimas e carrascos precisa ser exteriorizado e atualizado, caso ambos, oprimidos e opressores, pretendam dominar um passado comum, apesar de radicalmente antagônico. É evidente que a exteriorização e a atualização não podem consistir em uma vingança que seja proporcional ao sofrimento padecido. Durante o processo sobre Auschwitz, nenhuma vítima chegou a pensar em pendurar Boger em seu instrumento de tortura, o chamado “balanço de Boger”. Ainda mais improvável terá sido que qualquer um de nós, vítimas, em plena posse das nossas faculdades mentais, imaginasse a possibilidade absurda, moralmente inaceitável, de assassinar entre 4 e 6 milhões de alemães. Nada poderia ser mais irracional, do ponto de vista moral e histórico, do que a aplicação da jus talionis nessas circunstâncias. Ficam excluídas como solução tanto a vingança quanto a expiação, que só teriam sentido do ponto de vista teológico e, portanto, não me interessam. Obviamente, uma

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Hans Maier, verdadeiro nome do judeu austríaco Jean Améry, participou do movimento de resistência ao nazismo, foi capturado e torturado pela Gestapo, sendo enviado, posteriormente ao campo de concentração em Auschwitz. Após o fim da guerra se torna jornalista e escritor, trabalhando também na rádio e televisão, até o ano de 1978, quando se suicida em Salzburg, na Áustria.

depuração por meios violentos seria historicamente inconcebível. O que poderia ser feito, então, já que falei expressamente em resolver o conflito no campo da práxis histórica?

Pois bem, o conflito poderia ser resolvido caso o ressentimento perdurasse em um dos grupos e, graças a isso despertasse no outro grupo uma desconfiança sobre si mesmo. Indiferente a uma disposição subjetiva para reconciliação, quase sempre suspeita e objetivamente hostil à história, o povo alemão, espicaçado pelas esporas do nosso ressentimento, adquiriria consciência de que não deveria permitir que o tempo neutralizasse uma parte da sua história nacional; ao contrário, ele deve integrar essa parte da história. (AMÉRY, 2013:126-127)

Sob esse aspecto, o ressentimento não atuaria como um agente em favor da vingança, ou de uma cristalização temporal, no qual as posições de vítima e carrasco seriam imutáveis, mas, sobretudo, como um agente contra o esquecimento e a reconciliação, obtidos por meio de anistias ou comissões da verdade, ou pelo silenciamento de crimes do passado, nas construções das narrativas e memórias coletivas. Ou seja, muitas vezes uma coletividade não precisa negar, ou instituir anistias, para produzir o esquecimento de certos crimes, ela pode produzir o esquecimento de maneira mais sutil, mas igualmente eficaz, ao escolher determinados fatos para serem narrados, em detrimento de outros, que não são integrados a uma narrativa nacional.

O ressentimento, afirmado por Améry, seria então uma possível reação contra uma marcha progressiva, acionada pelo tempo, em direção ao esquecimento. Ele teria a capacidade de atualizar determinadas memórias de dor e violência, enquanto outros mecanismos de imposição do esquecimento estejam em ação, ou, quando novas gerações se sentirem distanciadas e desresponsabilizadas em relação a crimes do passado. Quando Tessa Lacerda afirma: “meia dúzia de familiares revanchistas estão reivindicando o quê?” Ela aponta para necessidade da construção de uma memória que abarque os conflitos e não se oriente apenas para um apaziguamento dos rancores e ressentimentos. Ainda segundo o autor:

Contemplar o futuro com ânimo sereno me parece tão difícil como parece fácil aos meus perseguidores de ontem. Com as asas quebradas pelo exílio, a clandestinidade e a tortura, tampouco me sinto capaz de participar dos altos voos éticos que pessoas como André Neher, publicista francês, propõem às vítimas. Nós, os proscritos, exorta esse homem de espírito superior, deveríamos interiorizar nosso sofrimento passado e assumi-lo em uma ascese emocional da mesma maneira que nossos verdugos aceitam e assumem sua culpa. Confesso que me faltam vontade, talento e convencimento para tanto. Não posso aceitar um paralelismo entre meu caminho e o do indivíduo que me golpeava com o látego. Não quero ser cúmplice dos meus torturadores. Ao contrário. Exijo que eles se reneguem e se unam a mim nesse repúdio. As montanhas de cadáveres que nos

separam não podem ser aplainadas por meio de um processo de interiorização. Ao contrário, exigem uma atualização, para dizermos as coisas de forma bem clara: é no campo de ação da práxis histórica que precisamos resolver o conflito não dirimido. (AMÉRY, 2013:116)

Se em Freud e em Nietzsche o excesso de memória se transforma em doença, no entanto, todo o trabalho "da" e "sobre" a memória não deve ser confundido com uma fixação ressentida no passado, que promove, sobretudo, paralisia e autopiedade. O trabalho de memória dos familiares tem como finalidade algo específico e objetivo: o não esquecimento dos crimes perpetrados pelo Estado brasileiro nos anos da ditadura, e que suas vítimas e seus agentes sejam, respectivamente, reparados, julgados e punidos.

Outro aspecto que é importante salientar é que os familiares, apesar de assumirem a identidade de vítimas, não podem ser identificados com sujeitos do ressentimento uma vez que esboçaram uma resistência concreta e simbólica às violências que lhes foram impostas. Foram vítimas da violência do Estado, mas não aceitaram sua condição passivamente, portanto, não atualizam o passado em um exercício de autocomiseração ou vitimismo.

De maneira semelhante à Derrida, Paul Ricoeur também assinala a natureza intrinsecamente diversa entre a justiça e a graça, afirmando a natureza pessoal e singular do perdão. Para o autor, artifícios como as leis de anistia não podem ter legitimidade porque o Estado não pode perdoar crimes cometidos a terceiros embaralhando dimensões jurídicas e pessoais.

O século XX levou ao primeiro plano a culpabilidade criminal quando dos crimes que cabem na categoria do injustificável segundo Nabert. Alguns deles foram julgados em Nuremberg, Tóquio, Buenos Aires, Paris, Lyon e Bordeaux. Outros são, ou serão uma legislação criminal especial de direito internacional e de direito interno que define os crimes contra a humanidade, distintos dos crimes de guerra e, dentre eles, o crime de genocídio. É pela questão da imprescritibilidade que essa disposição legal toca em nosso problema do perdão. [...] É fundamentalmente a gravidade extrema dos crimes que justifica a perseguição dos criminosos sem limite no tempo. [...] Isto posto, o que acontece com as relações entre o imprescritível e o imperdoável? A meu ver, seria um erro confundir as duas noções: os crimes contra a humanidade e o crime de genocídio só podem ser considerados (inadequadamente) imperdoáveis porque a questão não se coloca. [...] Não se poderia substituir a justiça pela graça. Perdoar significaria ratificar a impunidade, o que seria uma grande injustiça cometida à custa da lei, e mais ainda, das vítimas. (RICOEUR, 2010: 477-479)

Sob esse aspecto, é ilustrativo o exemplo de Mateus Guimarães, que promoveu, numa atuação conjunta com a filha de Honestino, uma campanha

intitulada “Trilhas de Honestino” no qual pretendiam conceder o perdão para os indivíduos que estivessem dispostos a dar informações sobre as circunstâncias do assassinato do líder estudantil. Na sua fala Mateus afirma, de maneira contundente, a diferença entre o perdão simbólico que eles, como familiares estavam dispostos a conceder, do perdão do Estado brasileiro, que não poderia ter sido concedido sem a legitimação da impunidade.

Mateus assevera a necessidade de uma judicialização das violações cometidas no regime militar, vinculando a concessão do seu perdão a uma estratégia familiar de obtenção de informações, tendo em vista a omissão do Estado brasileiro, como também uma opção de caráter subjetivo de sua família na relação com esse passado traumático. Existe a preocupação em reafirmar que o ato proposto por ele não significa uma adesão à ideia de uma anistia dos crimes cometidos. O seu perdão, como familiar, seria concedido de maneira estritamente simbólica, inscrito, portanto, na dimensão da graça e do dom.

E essas últimas páginas que estão em branco da vida dele, eu sinto também como se fossem da minha vida. [...] Por isso que eu tive aquela iniciativa, não tive muita condição de divulgar isso da forma que eu gostaria, mas quando completou 40 anos do desaparecimento dele, aquela iniciativa com a Juliana e o meu irmão também, da possibilidade da gente conceder perdão às pessoas que tivessem alguma informação do período pós-morte do Gui, das pessoas que em algum momento estiveram envolvidas, seja no sequestro, seja na tortura, seja na ocultação. Por isso que a gente teve essa iniciativa de conceder perdão. Isso foi no ato lá na UNB, a gente fez um ato com várias instituições. Reuni, eu acho, que umas trinta organizações sociais de várias frentes, de várias cores partidárias, ou não partidárias, inclusive numa campanha que a gente chamou de “Trilhas de Honestino”. Que a ideia era a gente levantar acervos, sobretudo, relacionados ao Gui que pudessem existir por aí. [...] A gente tem, eu tenho ainda, sobretudo, esse interesse em conceder perdão a essas pessoas que nos procurem. Por uma questão espiritual também, eu acho que tanto para mim, quanto para outra parte. Por esse exercício também de alteridade, de me colocar no lugar do outro, de perceber que é possível, sim, pessoas que tiveram algum envolvimento, muitas delas pessoas que não tinham compreensão, como soldados de baixa patente, que não tinham uma compreensão tão profunda, que às vezes estavam ali, numa condição que precisavam estar, porque era a única fonte, talvez, de renda que tinham, por que a gente tem que considerar isso, né? [...] Eu não tenho mais expectativas de que o Estado vá me trazer essas respostas, eu não tenho. Apesar de achar que deve, e de lutar pra que isso aconteça, e para que tenha ações mais efetivas, expectativa mesmo, esperança de que isso parta do Estado, eu não tenho. Sobretudo essa questão da verdade, de saber os fatos, então essa iniciativa foi motivada por isso, que essas dúvidas, essas páginas em branco, que hoje me perturbam, eu não quero que sigam perturbando e torturando o Lucas, por exemplo, que é o neto dele. Eu não quero que isso se perpetue. E o que a gente tem hoje, nas nossas mãos, enquanto familiares, independentemente de atuação do Estado, o que a gente tem, que a gente pode fazer é conceder o perdão, contanto que uma pessoa que

de fato viveu o momento, venha e nos fale, de fato, a verdade sobre o que ele sabe. [...] É uma tentativa que ainda não acabou, apesar de ter sido em 2013. [...] Eu acredito nesse caminho, eu vejo esse caminho, não querendo que outras pessoas façam, porque para mim é um processo muito particular, muito pessoal [...] é algo que a gente busca uma resposta que nos dê um pouco de conforto em relação a isso, foi um processo que ficou uns dois anos na minha cabeça, também compartilhando com o meu irmão, e compartilhei também com a Ju, eu percebi como a única possibilidade. [...] Eu respeito os processos de cada um, suas decisões e, sobretudo, aquilo que elas viveram. Eu entendo inclusive que essa possibilidade de abertura para um diálogo e para um perdão é algo que meu pai e minha avó não tinham condições de fazer, não tinham condições porque é, de fato, mais fácil para mim, de certa forma é mais fácil para mim poder agora, com uma perspectiva diferente, diante do contexto que a gente vive, que essas pessoas estão morrendo, estão indo embora, enfim, é uma atitude um pouco desesperada, nesse sentido também, né? [...] Assim, eu entendia desde o início que eu iria enfrentar resistência, que eu iria enfrentar pessoas que não compreenderiam, como muitas ainda não compreendem, como muitas se afastaram. Como eu sinto isso e vejo, e tive discussões com algumas delas, não querendo convencê-las a fazer o mesmo, mas simplesmente colocando para elas que, além de ser uma estratégia, é algo pessoal e espiritual no meu ponto de vista, mas o grande objetivo mesmo é a gente conseguir ter mais informações sobre esses últimos dias da vida dele, e o que é que aconteceu também depois que ele morreu (GUIMARÃES, 2016).44

44 Entrevista concedida em 2016, Brasília.