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4. VIDAS PASSÍVEIS DE LUTO

4.7 Inês Etienne Romeu

No dia oito de março de 2017, uma nota do Ministério Público Federal repudiou a sentença proferida pelo juiz federal da 1ª Vara de Petrópolis, que rejeitou a ação Penal da Procuradoria da República pelo estupro de Inês Etienne Romeu

quando estava presa na Casa da Morte, afirmando que a denúncia da mesma, e todos os documentos apresentados não tinham legitimidade em decorrência da lei da anistia, de 1979, e da condenação da vítima, Inês Etienne, pelos crimes cometidos durante a ditadura.

Nota Pública

No dia internacional do direito das mulheres, o Ministério Público Federal tomou conhecimento da lamentável sentença proferida pelo juiz federal da 1ª Vara de Petrópolis, que rejeitou a ação penal da Procuradoria da República pelo estupro da única sobrevivente da Casa da Morte, Inês Etienne Romeu, falecida em 2015. Além de afirmar que os fatos denunciados estão protegidos pela anistia e prescrição, argumento já afastado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o magistrado acusa o MPF de criar um "tribunal de exceção" por ter constituído grupo voltado à investigação dos crimes cometidos durante a ditadura militar. Segundo o magistrado, "não há qualquer indício de existência da narrativa ali descrita". Militante da organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Inês Etienne Romeu foi sequestrada por agentes da ditadura militar em maio de 1971 e levada ao centro clandestino de torturas posteriormente denominado de "Casa da Morte", em Petrópolis. Naquele local, foi barbaramente torturada e estuprada por pelo menos duas vezes, por um militar. Denunciou o fato à OAB em 1979, após o início da "abertura lenta e gradual", tornando-se uma das principais testemunhas do funcionamento clandestino e ilegal da repressão política. Assim como todos os demais crimes cometidos contra dissidentes políticos, os estupros contra Inês remanesceram não investigados até 2013. Em razão da ordem judicial de busca e apreensão, pedida e cumprida pelo MPF, foi possível, após quase três anos de investigações, descobrir a verdadeira identidade do torturador e estuprador. Além de sustentar que os crimes foram anistiados e estão prescritos, a decisão judicial desqualificou todas as provas obtidas pelo MPF e, o que é pior, desqualificou o próprio valor probatório da palavra da vítima nos crimes sexuais, ao afirmar que o fato só foi relatado após 8 anos do ocorrido, como se as portas da Justiça daquele período estivessem abertas a todos os que foram sequestrados, torturados ou desaparecidos por agentes do Estado. A única certeza do magistrado volta-se contra a vítima, por ele qualificada como perigosa terrorista. Com base nesta certeza, o juiz federal conclui sua sentença dizendo que "ninguém é contra os direitos humanos, desde que sejam direitos humanos de verdade, compartilhados por todos os membros da sociedade, e não meros pretextos

para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas". Como se trata de uma ação penal por crime de estupro, imagina-se que a "vantagem à minoria selecionada", referida pelo magistrado, seja o direito de todas as mulheres de não sofrerem violência sexual. O Ministério Público Federal, por intermédio de sua Câmara de Coordenação e Revisão em Matéria Criminal, lamenta veemente tal concepção, pois nenhuma mulher, ainda que presa ou condenada, merece ser estuprada, torturada ou morta. E tampouco pode o sistema de justiça negar desta maneira a proteção da lei contra ato qualificado no direito internacional como delito de lesa- humanidade. O MPF também repudia a grave acusação de que as investigações das graves violações a direitos humanos cometidas por agentes do Estado ditatorial constituem "tribunal de exceção". As 27 ações penais até agora propostas são o resultado de dedicado e difícil trabalho de investigação desenvolvido por procuradores da República em São Paulo, Rio de Janeiro, Petrópolis, Marabá e Rio Verde, e estão embasadas em provas testemunhais, documentais e periciais concretas. O MPF, além disso, não funciona como tribunal pois não julga, limitando-se a investigar e ajuizar as ações penais para que a Justiça decida sobre o mérito da causa, respeitado o direito ao contraditório e à ampla defesa. A Câmara Criminal destaca ainda que as ações são promovidas em razão de decisão da CIDH no caso do caso Gomes Lund e por deliberação de integrantes atuais e de composições anteriores do órgão colegiado. A persecução penal desses crimes tem sido considerada prioritária para o MPF uma vez que fazem parte daqueles relacionados aos temas em que o Brasil é cobrado internacionalmente pela CIDH. O MPF irá recorrer da sentença e aguarda que o Tribunal Regional Federal da 2a Região reforme a decisão teratológica, permitindo que os fatos denunciados sejam devidamente provados no âmbito de um devido processo legal, sempre negado aos que se opuseram ao regime ditatorial (Luiza Frischeisen - Subprocuradora-geral da República Coordenadora da Câmara Criminal do Ministério Público Federal).

Abaixo um trecho da sentença proferida pelo juiz:

Além do desrespeito à Lei de Anistia de 1979, as imputações criminais feitas na denúncia atentam também contra outra causa de extinção de punibilidade: a PRESCRIÇÃO, conforme dispõe o art. 107, IV do CP. Assim, além de ser caso de desrespeito ao direito adquirido em razão da Anistia de 1979, o caso também é de evidente desrespeito a outro direito adquirido do acusado, tendo em vista a verificação da prescrição: o de tentar fazer retroagir uma “norma” de caráter penal com a finalidade de prejudicar o acusado.

O direito adquirido à extinção da punibilidade em razão da prescrição e a proibição de retroatividade de normas de caráter penal também são direitos humanos. A violação dessa norma também ofende a dignidade humana. A fls. 1482 consta cópia da capa de peças de informação autuadas no âmbito MPF sob o no 1.30.001.006267/2012-58, que contém o seguinte título de capa: “Representação do coordenador do Grupo Justiça de Transição do RJ visando à apuração de mortes e desaparecimentos de militantes políticos, ocorridos no Estado do Rio de Janeiro durante o regime de exceção”.

Esse documento indica a criação de um “grupo” no âmbito do MPF com o nome de “Justiça de Transição”. Isto parece indicar a criação pelo MPF de um simulacro de tribunal de exceção.

O inciso XXXVII do art. 5o da Constituição estabelece o seguinte: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.

A proibição de existência de juízo ou tribunal de exceção também é um direito humano. A violação dessa norma também ofende a dignidade humana.

Ainda que não estivessem demonstradas todas as referidas violações aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, e fosse lícito o oferecimento da denúncia, também não há qualquer indício de existência real da narrativa ali descrita.

Os únicos documentos apresentados pelo MPF para fundamentar toda a acusação são as cópias de certidões emitidas pelo escrivão da 3a auditoria da 1a Circunscrição Judiciária Militar, emitidas em outubro de 1979 (fls. 69/70) e janeiro de 1979 (fls. 71/72).

Todas as demais peças que instruíram a denúncia, não se caracterizam como documentos que possam servir como prova de fatos no juízo penal. Reportagens – não importa a quantidade - não constituem documentos. Entrevistas não constituem documentos. Deduções não constituem documentos. Sentenças proferidas por tribunais de organismos estrangeiros não constituem documento. Petições e decisões judiciais proferidas em âmbito de medidas cautelares não constituem documentos. Note-se que as declarações de Inês Etienne Romeu constantes de termo lavrado na sede da OAB/RJ (cópia de fls. 384/387), foram prestadas em 05/09/1979. Ou seja, OITO ANOS após o tempo do crime segundo a denúncia. Além disso, nesse termo consta a expressa ressalva no sentido de que o “relatório” (cópia de fls. 390/402), datado de 18/09/1971 e assinado por Inês, constitui uma “reprodução feita nesta data, daquele inicialmente escrito em 18 de setembro de 1971, com algumas correções e adições, tornadas necessárias, em face do decurso do tempo e de fatos supervenientes”. Assim, evidentemente, o denominado “relatório” de fls. 390/402 também não constitui documento.

De acordo com a certidão de fls. 69/70, Inês Etienne Romeu foi condenada pelo Superior Tribunal Militar a pena de prisão perpétua pelo crime do art. 28, § único do Decreto Lei no 898/69, reduzindo a pena para 30 anos, na forma do artigo 51, do Decreto Lei no 898/69. Ainda de acordo com tais documentos, “o Juízo, por despacho de 21/8/79, ajustou a pena da sentenciada para 8 anos de reclusão, correspondente a pena mínima prevista no parágrafo único do artigo 26, da vigente Lei de Segurança Nacional (Lei no 6.620/78)”.

De acordo com a certidão de fls 71/72, Inês Etienne Romeu “também respondeu a processo pela 1a Auditoria de Aeronáutica da 1a. CJM, sendo condenada em sessão de 1/9/1972, à pena de 2 anos e 6 meses de reclusão, como incursa no art. 14 do Dec. Lei no 989/69, cuja decisão foi confirmada pelo Superior Tribunal Militar.

Dessa forma, por essas certidões, resta provado que Inês Etienne Romeu foi condenada pela Justiça Militar, por sentenças transitadas em julgado, pela prática dos crimes de sequestro seguido de morte (art. 28 § único do Decreto Lei no 898/69) e de associação a agrupamento que, sob orientação de governo estrangeiro ou organização internacional, exerce atividades

prejudiciais ou perigosas à Segurança Nacional. (art. 14 do Decreto Lei no 898/69). Como escreveu Olavo de Carvalho, ninguém é contra os "direitos humanos", desde que sejam direitos humanos de verdade, compartilhados por todos os membros da sociedade, e não meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas.

REJEITO A DENÚNCIA, com fundamento no art. 395, III (falta de justa

causa para o exercício da ação penal), do CPP. Intime-se o MPF. Após, dê-se baixa e arquive-se.

Petrópolis, 06 de março de 2017.

ALCIR LUIZ LOPES COELHO Juiz Federal Titular

A partir dessa sentença podemos observar que, ainda em 2017, a lógica da suspeição e da culpa, assim como os enquadramentos que localizam os militantes políticos brasileiros como subversivos perigosos, os mantém em um terreno marginal que impossibilita que suas vidas sejam percebidas como valorosas e seus sofrimentos dignos de julgamentos e punições. O juiz em sua sentença faz uso não apenas da lei da anistia, mas também, da condição marginal de Inês Etienne para desqualificar a violência do qual foi vítima.

Militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Inês foi presa na Avenida Santo Amaro, em São Paulo, em cinco de maio de 1971, por agentes comandados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Para escapar das torturas e suplícios ela inventou um encontro fictício em um ponto qualquer da cidade. Chegando ao local ela se jogou nas rodas traseiras de um ônibus numa tentativa de suicídio que, ao arrastá-la pela rua, provocou em seu corpo queimaduras de terceiro grau. Depois de ter sido tratada em um hospital da Vila Militar e Exército, ela foi enviada para Casa da Morte, onde, em decorrência das inúmeras torturas sofridas tentou se suicidar quatro vezes cortando os pulsos e engolindo vidro moído por trituração de ampolas de injeção48. Em seu depoimento, originalmente publicado no Pasquim, n 607, em Janeiro de 1981, ela narra:

Fui conduzida para uma casa [...] em Petrópolis. [...] O dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. [...] Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. A certa altura, o dr. Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma; estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já havia sido condenada à morte e ele, dr. Roberto, decidira que ela seria a

48Habeas Corpus – que se apresente o corpo. 1ª edição revista. 2010. Brasil- Presidência da

República. Secretaria de Direitos Humanos.

mais lenta e cruel possível, tal o ódio que sentia pelos “terroristas”. [...] Alguns dias depois, apareceu o dr. Teixeira, oferecendo-me uma saída “humana”: o suicídio. [...] Aceitei e pedi um revólver, pois já não suportava mais. Entretanto, o dr. Teixeira queria que meu suicídio fosse público. Propôs-me então que eu me atirasse embaixo de um ônibus, como eu já fizera. [...] No momento que deveria atirar-me sob as rodas de um ônibus, agachei-me e segurei as pernas dele, chorando e gritando. [...] Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, “telefones”, palmatórias. Espancaram-me no rosto até eu ficar desfigurada. [...] O “Márcio” invadia minha cela para “examinar” meu ânus e verificar se o “Camarão” havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo “Márcio” obrigou-me a segurar seu pênis , enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo “Camarão” e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros. (MERLINO, 2010:105)