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3. OS CRIMES SILENCIADOS

3.3 O ressentimento e o perdão

De maneira resumida podemos afirmar que o ressentimento não é um conceito psicanalítico, ele é uma categoria do senso comum que nomeia a recusa, ou a impossibilidade, de se esquecer um ultraje sofrido. Em seu ensaio de 1887, A

Genealogia da Moral (1999), Nietzsche foi quem primeiro elaborou o conceito de

ressentimento a partir da articulação de abordagens históricas, psicológicas e sociopolíticas. Ele emerge primeiramente como uma categoria analítica para, posteriormente, ser refletido por Freud na área clínica.

Para esses autores o ressentimento é um afeto que significa não somente a impossibilidade de esquecer ou perdoar, mas principalmente, a recusa a superar o

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Entrevista gravada em 2016, Brasília.

mal que alçou o homem ressentido à condição de vítima. Como afirma Kehl, o ressentido “quer não se esquecer” (2014:14), quer (re)sentir, ruminar e acalentar o mal que lhe foi feito com fantasias vingativas. Ele está estreitamente vinculado ao recalcamento porque emerge como uma reação do sujeito a um agravo no qual ele não teve forças ou condições de responder. Por isso o ressentido não pode se entregar ao fluxo do presente uma vez que está aprisionado em um lugar no passado que não quer deixar.

Para a psicanálise ele se presta aos mecanismos de defesa do eu, já que o sujeito ressentido atribui todo o seu sofrimento a um outro, e nunca se coloca como alguém também implicado na teia de acontecimentos que permitiram a esse outro lhe infligir um agravo. É importante salientar então a diferença entre o desejo de vingança e a reação de defesa a um ataque sofrido. Quando existe uma reação concreta não se abrem espaços para emergência do ressentimento. O desejo de vingança se instala quando o sujeito não consegue esboçar nenhuma reação e se coloca como vítima passiva de uma situação concreta ou imaginada.

O que ocorre no ressentimento é que o ofendido não se atreve, ou não se permite, responder à altura da ofensa recebida. O “envenenamento psicológico” a que se refere o autor produz-se a partir da reorientação para o eu dos impulsos agressivos impedidos de descarga, gerando uma disposição passiva para queixa e a acusação, assim como a impossibilidade de esquecer o agravo sofrido (KEHL, 2014:15).

Ele é um afeto que Freud batizou de “covardia moral” porque o homem do ressentimento é o sujeito que abriu mão do seu desejo para se submeter ao desejo de outro indivíduo, mas que, posteriormente, cobra o preço dessa escolha de maneira incessante. Ele é incapaz de se arrepender, mas tem enorme capacidade de remoer e acusar outro alguém que sempre se prestará a ser o seu algoz.

Essa fraqueza afirmada por Freud já tinha sido anteriormente apontada por Nietzsche ao vinculá-lo em suas obras aos valores morais do cristianismo. Para ele os valores emergentes, com a ascensão do cristianismo no Ocidente, são os valores dos fracos e “escravizados” porque se articulam sobre uma base de valorização da submissão, da culpa e do sofrimento. O mundo estaria divido entre o Bem, os fracos, e o Mal, os fortes e os vencedores.

Nietzsche criticava a exaltação dos sofredores e impotentes colocados como antagonistas de uma nobreza e uma elite moral. E é importante ressaltar que a nobreza designava uma qualidade do espírito, assim como os “escravos” não são

aqueles subjugados em uma batalha, mas os que escolheram a servidão voluntária, os que por vontade própria se colocam como vítimas diante do mundo. Fraco, portanto, não é aquele que perde uma luta, mas aquele que “quer ganhar o jogo sem entrar no jogo” (KHEL, 2014:103) aquele que não luta, não se rebela e aceita passivamente o que o outro lhe impõe. E essa humildade e subserviência seriam a manifestação de um ódio recalcado travestido em um valor positivo.

Nessa longa história, Nieztsche retém, sobretudo, a história dos sentimentos e, essencialmente, a história do ódio. O que anima os padres contra os nobres guerreiros, os escravos contra seus senhores, é o ódio e seus corolários: a inveja, o ciúme assassino, o desejo de vingança [...] Porém não é a história desse ódio direto e assumido que Nietzsche descreve, mas, ao contrário, a de sua interiorização e denegação. O ponto central de sua denúncia designa e analisa o trabalho psicológico através do qual o ódio foi ao mesmo tempo interiorizado e recalcado pelos inferiores, denegado por aquilo que representa e metamorfoseado em valor positivo: a inferioridade transformada em humildade resignada, a fraqueza disfarçada em amor da justiça, o ódio recalcado transformado, eventualmente, em ódio de si mesmo (BRESCIANI e NAXARA, 2004:16-17).

Outros tantos autores buscaram definir o conceito de ressentimento retendo apenas a dimensão fenomenológica e rejeitando a dimensão histórica das teses nietzscheanas e seu caráter antirreligioso. Além da dificuldade de se realizar uma historicização dos ódios e hostilidades não proclamadas, também existe uma tradição que reflete sobre o ressentimento em diversos campos. (BRESCIANI e NAXARA, 2004) Em quase todos eles, no entanto, o ressentimento é um elemento desestabilizador da vida pública, pois não se orienta para o perdão e para o esquecimento, o que segundo esses autores, são categorias essenciais para a vida comunitária. O ressentimento seria uma memória que não se dobra às agendas políticas e acordos da coletividade.

Para Hanna Arendt, o ressentimento inviabilizaria a possibilidade de “estar e agir com os outros” porque bloqueia o perdão, e junto a ele, a possibilidade de uma coletividade se reconciliar e seguir como um grupo homogêneo (GRIN in FICO et al., 2012). Na contramão dessa visão negativa do ressentimento, outros autores, tais como Derrida, questionam e problematizam o perdão em eventos limites, e sob as circunstâncias mais variadas, em nome de uma suposta harmonia social, especialmente depois do evento do Holocausto que inaugurou julgamentos públicos de expiação, e perdão, e das inúmeras Comissões da Verdade que se seguiram em

vários países nos quais foram cometidas graves violações contra os direitos humanos.

O perdão comparece, de uma forma explícita, como um tema em Derrida em um determinado momento de sua trajetória. Precisamente, quando ele se propõe retomar e reinscrever, para além dos paradigmas da reconciliação e da totalidade, toda uma discussão sobre a ideia de crime contra a humanidade que teve lugar anteriormente na França, dos anos 60, a propósito das atrocidades cometidas contra os judeus pelo nazismo. Em outro contexto, ele repete este mesmo gesto de pensamento quando a África do Sul pós-apartheid se viu diante da necessidade de um posicionamento ético-jurídico-político em relação aos horrores de seu passado recente. A princípio, isto pode parecer um tanto estranho: pretender, em ambos os casos, recolocar a discussão em novos termos para além dos paradigmas da reconciliação e da totalidade, mas através de uma reflexão voltada justamente sobre o perdão. Um perdão que não reconcilia, nem resgata uma totalidade partida; nada parece mais contraditório. (DUQUE-ESTRADA, 2008:15)

Na África do Sul, as audiências da Truth and Reconciliation Commission (TRC) foram amplamente veiculadas pela mídia e os relatos eram estimulados a partir do slogan “Anistia pela Verdade” no qual os criminosos eram instados a descrever seus crimes como condição para serem anistiados. Os trabalhos desta comissão se desenrolaram sob forte comoção social, nos quais os depoimentos das violências, traumas, dores e culpas dos agressores, e das vítimas, foram utilizados para fins terapêuticos, em um movimento de catarse que buscava, ao final, a reconciliação de ambas as partes. (GRIN in FICO et al., 2012)

Perguntava-se às vítimas, no final das audiências, se elas perdoavam seus perpetradores. Os membros da comissão, então persuadiam as vítimas a expressarem seu desejo de perdoar. O que seria uma audiência face to face (vítimas e perpetradores) sofre a mediação da Comissão que, através do forte estímulo ao perdão, permitiu, ao fim e ao cabo, que se escapasse da justiça. Essa mediação era observada, sobretudo nos casos em que as vítimas resistiam a assumir o desejo de perdoar. Entretanto, elas eram convencidas a perdoar. Desencorajavam, não raro, as vítimas que, tomadas pelo ressentimento que brota do excesso de lembranças, negavam-se a perdoar. Essas vítimas eram definidas negativamente como não solidárias, egoístas, obcecadas pelo seu próprio desejo de vingança, tomadas pela raiva e descompromissadas com o futuro da nação. [...] Perdoar era, nesses termos, manifestar autocontrole, comedimento e magnanimidade. Como assinalava Desmond Tutu “sem perdão não existe futuro.” (FICO et al., 2012:132)

Nelson Mandela foi mais além ao afirmar que a raiva das vítimas do regime do Apartheid era irrelevante e contraproducente naquele contexto afirmando que

“Esta é uma luxúria que nós, como indivíduos e como país, simplesmente não podemos manifestar” (FICO et al., 2012:133). Apesar dos protestos dos segmentos não cristãos sul-africanos (GRIN in FICO et al., 2012) a Truth and Reconciliation

Commission trabalhou sob o imperativo do “dever” do perdão e - a partir dessa

obrigação imposta a essa Comissão, e demais outras, nas quais crimes contra a humanidade foram perdoados - Derrida critica a descaracterização do perdão, imposto sob quaisquer circunstâncias ao questionar o sujeito que tem o direito de perdoar. Ao indagar “quem deve perdoar?” ele questiona as instâncias, políticas e jurídicas, que atuam como mediadoras, entre vítimas e agressores, ao tomarem para si o papel daquele que roga o perdão e daquele que o concede.

Para Derrida não é possível falar “pelas” pessoas, mas é possível falar “com” elas, sabendo da distância que separa cada um. Por consequência, o perdão jamais pode ser pedido por terceiros, ele, forçosamente, só pode acontecer em uma relação direta e pessoal que não se orienta para o cálculo, compensação, previsão ou economia de troca (DUQUE-ESTRADA, 2008:17) e, portanto, só pode estar localizado no campo do impossível que foge à lógica do pedir e do conceder ou negar.

A argumentação de Derrida nos leva, assim, à seguinte proposição: se, por um lado, é fato que toda e qualquer discussão ético-política sempre se dá na ambiência de um suposto “nós” reunidor, congregador, unificador, comunitário, identitário; um “nós” nacional, cultural, linguístico etc.; por outro lado, é preciso sempre resistir à adesão imediata, não problematizadora, deste “nós”, e abrir um espaço para interrogar “nós quem?”, “quem diz nós?” “com base em quê, ou com vistas a quê, se diz nós?”, “quem responde e quem diz o quê quanto a ´nós´?” etc. Com este tipo de indagação, Derrida não quer ignorar ou invalidar teoricamente qualquer experiência de um “nós” e muito menos impedir qualquer responsabilidade ética, jurídica ou política. Ao contrário, ele quer pensar a experiência do “nós”, bem como a exigência de responsabilidade intrínseca a esta mesma experiência, de um outro modo, para além do paradigma do todo e da reconciliação.” (DUQUE-ESTRADA, 2008:21-22)

É exemplar o caso de uma sul-africana cujo marido foi assassinado e que afirmou diante do tribunal da TRC que a comissão, ou mesmo que o governo, não poderia perdoar os assassinos em questão, pois apenas ela poderia conceder o perdão, e que - no seu caso particular - ela não estava disposta a perdoar. Em outras palavras: o que o exemplo citado por Derrida afirma é o caráter singular de cada indivíduo e de cada sofrimento, e que o perdão não pode, e nem deve, ser pensado fora da ótica da singularidade. Na verdade o perdão não deve ser nem

mesmo pensado como o único horizonte possível, ou como algo atrelado às confissões de culpa verbalizadas nos inúmeros tribunais instaurados para julgar crimes de guerras. Ele não pode ser o resultado de um cálculo no qual a confissão desembocará em um perdão e uma reconciliação, em uma operacionalidade previamente definida. O perdão não pode ser resultado de um cálculo, porque ele está na ordem do impossível, em uma relação entre vítima e algoz que não vislumbra esquecimento, reconciliação ou apaziguamento.