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1. O LUTO – “ADIEU, ADIEU, REMEMBER ME”

1.2 Das (im)possibilidades do luto

Existe um consenso entre os estudiosos do tema de que o reconhecimento dessa realidade absoluta e dolorosa é um desafio para todos os enlutados, mas para aqueles que não têm um corpo, ou provas concretas da morte, é ainda mais difícil, mantendo muitas vezes os sobreviventes no estágio de eterna negação.

Para a mulher de Fernando, mesmo que o assassinato de seu marido se mostrasse uma possibilidade extremamente plausível racionalmente, e que ela tivesse um impulso de reconstruir sua vida em um novo casamento, sua morte era negada ao se transformar em uma probabilidade que pairava sobre sua vida, e que a impedia de seguir em frente sem culpas ou dúvidas.

Vivi um processo de ânsia da volta, da esperança da volta. Durante os dois primeiros anos, mesmo depois que comecei a morar com Edu, achava que de um momento para o outro Fernando podia aparecer. Apareceria machucado, ferido, e isso me deixava muito ansiosa. Este sentimento vai te desgastando, vai te consumindo, vai te destruindo a cabeça. [...] Passava até cinco, seis horas da manhã, noites em claro, conversando sobre Fernando: e se ele aparecesse, o que a gente faria? Angustiava-me e me questionava se eu tinha o direito de morar com o Eduardo. Acho que a certeza da morte do Fernando só veio muito tempo depois. É muito difícil você enterrar uma pessoa, que você não viu o corpo ser enterrado (ASSIS, 2011:100).

Essa dificuldade em estabelecer limites entre o lugar dos mortos e o dos vivos é uma recorrência na fala dos familiares de desaparecidos, já que a ausência de certezas e ritos embaralhou, para muitos deles, as fronteiras entre esses mundos. Os desaparecidos se encontram em um "limiar" e, por isso, observa-se uma constante ansiedade pela possibilidade da irrupção do morto no mundo dos vivos, mesmo que, para muitos, o assassinato de seus familiares já fosse uma possibilidade concreta.

A fala de Vladimir, filho de Virgílio Gomes da Silva, dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), desaparecido em 1969, é ilustrativa dessa confusão imposta a muitos dos enlutados:

Não conseguia vê-lo como morto. Não havia uma lápide para botar flor, nem uma data para lembrar. Chorávamos, mas tínhamos a esperança de que ele iria aparecer. [...] Meu pai costumava assobiar quando chegava em casa. Essa lembrança me perseguiu por vários anos. Ouvia meu pai assobiando, ia procurar e não o encontrava. Estava com 15 anos e ainda acreditava que ele apareceria. Ficava escutando o assobio e dizia: é ele... e não era. (Processo 2006.01.52874, Folha 73, Comissão da Anistia do Ministério da Justiça)

É importante frisar que os filhos de Virgílio só receberam o atestado de óbito de seu pai em 1996, vinte e sete anos após o seu desaparecimento. E mesmo que Vladimir afirmasse que o atestado é “a ponta de um iceberg. Tudo o que vem junto é o que estamos interessados em saber”2, ele revela na reportagem que não tem

2 Processo 2006.01.52874, Folha 73, Comissão da Anistia do Ministério da Justiça.

interesse no corpo do pai, apesar de querer esclarecer as circunstâncias da sua morte, pois “se achá-lo, vai ser como matá-lo duas vezes”3.

A fala de Vladimir chama a atenção para a imposição de esquecimento (SANTOS et al., 2009) que cerca essas mortes até os dias atuais, e que já podiam ser observadas desde a instauração do golpe, quando vários assassinatos de opositores ao regime foram publicizadas como suicídios ou tiroteios com as forças policiais.

A partir de 1973, houve um recrudescimento dos assassinatos de dissidentes por meio da prática do desaparecimento, no qual as pessoas “se volativizavam” 4, e suas mortes permaneceram clandestinas pela omissão de informações e ocultação de seus corpos.

Ainda durante a campanha pela anistia, os familiares dos desaparecidos reivindicaram o esclarecimento desses assassinatos, assim como o julgamento e a punição dos seus responsáveis. No entanto, com a promulgação da lei de anistia em 1979, todos os agentes do Estado foram absolvidos de seus crimes, e eliminaram-se as possibilidades concretas de que os assassinatos ocorridos no decorrer da ditadura ganhassem uma maior visibilidade e o seu luto adquirisse uma dimensão social.

Em nome de uma pretensa conciliação nacional, a memória sobre as violências e crimes praticados durante os vinte e um anos de ditadura foi recalcada, uma vez que tais crimes não puderam ser esquecidos por completo; em consequência disso, não encontraram espaços para que pudessem ser ressignificados na coletividade, já que foram deslocados para o âmbito do privado e do particular.

A frase “Tudo o que vem junto é o que estamos interessados em saber” aponta para os entraves políticos e jurídicos que impossibilitaram os familiares de desaparecidos de conhecerem as circunstâncias concretas desses assassinatos, impedindo que os mesmos pudessem “imaginar” essas mortes, como afirma Ana Lúcia Valença, preencher lacunas e elaborar a violência sofrida por seus parentes e por sua família.

3 Idem, Ibidem.

4 Termo usado por Bernardo Kucinski ao narrar o desaparecimento de sua irmã, Rosa Kucinski, e do

marido dela, Wilson Silva, quando ambos saíram de seus respectivos trabalhos para se encontrarem em um restaurante em 22 de abril de 1974.

Vladimir afirma não precisar da materialidade de um corpo porque, para “testemunhar” (BRESCIANI e NAXARA, 2004) a morte do seu pai, existe a necessidade de uma narrativa que alinhave os fatos e que dê sentido ao desaparecimento dele. Sem isso, o que existe é um interminável sobressalto a cada assobio escutado e a posterior frustração pela constante reafirmação de uma ausência.

O “trabalho do trauma” busca reintegrar um fato traumático a uma narrativa articulada para que essa experiência possa ganhar sentido, permitindo sua incorporação ao fluxo dos acontecimentos. Quando isso não ocorre, seja pela negação do direito à verdade - que impediu para muitos a concretização das mortes - seja pela negação do direito à justiça, que impossibilitou julgamentos e punições - o que ocorre é um desdobramento incessante dessa dor.