• Nenhum resultado encontrado

1. O LUTO – “ADIEU, ADIEU, REMEMBER ME”

1.5 Um corpo que falta

Contrariamente a Vladimir, o outro filho de Virgílio Gomes, Gregório, afirma precisar da materialidade do corpo do pai, pois “O Vladimir teve meu pai vivo e não quer vê-lo morto. Eu gostaria de tê-lo nem que fosse dessa maneira. Seria alguma referência do meu pai.”13 O flagrante contraste das expectativas dos irmãos se

relaciona com a simbolização que o corpo do pai adquire para cada um, uma vez que o corpo de Virgílio representa uma morte e uma perda que precisam ser negadas por Vladimir. No entanto, para seu irmão, que não teve passado ou presente com Virgílio, o corpo simboliza a possibilidade de se apropriar de um pai que existe pela falta.

O resgate dos restos mortais carrega a ambivalência de apaziguar a dor, pela possibilidade da realização de ritos funerários, mas também é um momento temido e doloroso, uma vez que a materialidade dos corpos traz a consciência da perda irreversível da pessoa que se ama.

A busca, por outro lado, é um tempo em suspensão porque ainda não existe uma realidade definida. E toda busca é carregada de promessas. Com a descoberta dos corpos é muito mais difícil a negação dos assassinatos e todo um leque de possibilidades é fechado. Não existe mais nenhuma probabilidade que possa contrariar a morte.

11 Raul e René de Carvalho. Filhos de Apolônio de Carvalho, dirigente do PCB. 12 Entrevista concedida em 2015, Rio de Janeiro.

13 Processo 2006.01.52874, Folha 73, Comissão da Anistia do Ministério da Justiça.

É importante então perceber a singularidade desse luto carregado de esperanças porque, diferentemente de outros, a sua impossibilidade tem uma firme sustentação externa, que nega a morte de maneiras distintas ao longo do tempo. E a possibilidade de vida é a inversão do trabalho do luto porque, nesse caso específico, a morte não é uma imposição, não se afirma como um fato em si mesmo, ela precisa ser inventada pelos familiares ao matarem, subjetivamente, os seus entes queridos.

Além da dificuldade de aceitação da morte, os familiares dos desaparecidos também se encontravam, e alguns ainda se encontram a despeito do tempo passado, confusos e esperançosos, em virtude das inúmeras notícias a respeito de seus parentes, com informações que se encontravam ainda vivos, e em lugares os mais diversos, lançadas pelos agentes da repressão.

Além das mentiras, eram práticas corriqueiras os telefonemas e extorsões aos familiares que se encontravam vulneráveis justamente pelo silêncio e o mistério que cercavam essas mortes. Além do sadismo flagrante nas ações havia também uma estratégia de ordem prática de desequilibrar psicologicamente os familiares para que os mesmos desistissem das buscas, em meio às parcas e desencontradas informações, que frustravam continuamente suas expectativas.

No Diário Catarinense, de 26 de janeiro de 1996, saiu uma pequena reportagem que anunciava a entrega do atestado de óbito de Cilon da Cunha Brum, desaparecido no Araguaia, ao seu irmão, Lino Brum, que narrava as dificuldades que a família enfrentou, até receber o atestado de óbito.

A história do Brasil está mais justa desde ontem. O relógio marcava 10h01min do dia 25 de janeiro de 1996, quando Lino Brum chegou ao fim de uma longa e sofrida jornada. O oficial do 1 Cartório de Registros de Óbitos e Nascimentos, Calixto Wenzel, preparou uma pequena solenidade para registrar o acontecimento. Ao perceber que a hora finalmente chegara, Lino chamou o filho César, de 16 anos. [...] Ansioso, com as mãos trêmulas de emoção, Lino empunhou a caneta e selou a sua vitória. Com inexplicáveis 24 anos de atraso, estava em suas mãos o atestado de óbito do irmão Cilon, um dos 152 desaparecidos políticos do Brasil. Agora, oficialmente, Cilon é um homem morto pelo aparato repressivo montado pela ditadura militar. “Hoje fazem 8.874 dias que ele morreu” disse Lino, dando uma dimensão da angústia de duas décadas e meia de espera. Entre soluços, juntou forças para avisar a todos que não pretende descansar. “Sei que é difícil, mas eu pretendo encontrar os restos mortais do meu irmão”, anunciou. [...] Quando percebeu que o pai não conseguiria mais se conter, César deu dois passos e o abraçou com força. Lino, então, desabafou chorando no ombro do filho. [...] Na busca obsessiva por informações do irmão, Lino foi vítima de algumas crueldades. Em 1978, foi informado que Cilon estaria vivo em Paris, paraplégico e sem dinheiro para regressar ao Brasil. Em outra ocasião, lhe disseram que ele estaria em Cuba, feliz e sem preocupações com a família. “A cada informação que a gente pedia, vinha

uma contra-informação, para confundir”, explica. Agora, com a certidão, Lino só pensa em procurar os restos mortais. Ele sabe que a região do Araguaia, rica em minérios, especialmente ferro, acelera a decomposição dos ossos. “Mas eu vou tentar”, promete. (BRUM, 2012:27-28)

Apesar de a reportagem afirmar que, a partir daquele dia Cilon da Cunha Brum estava “oficialmente” morto por meio de um atestado de óbito, e o seu irmão, Lino, contar precisamente os “8.874 dias que ele morreu”, a busca pelo corpo é uma promessa descrita logo a seguir. E essa promessa sinaliza a centralidade do corpo para que Cilon possa finalmente morrer. Tal fato não minimiza, ou mesmo anula a importância simbólica, e principalmente objetiva, de um documento que ateste a morte para as famílias. No entanto, para muitos familiares, e especificamente para os Brum, as informações e os documentos não tiveram o poder de enterrar simbolicamente seus desaparecidos.

Em uma página intitulada “No meio de nós”, Liniane Brum, filha de Lino, questionou no livro que escreveu sobre o tio, muitos anos depois da tarde descrita na reportagem do Diário Catarinense:

Se tio Cilon nunca mais ia existir, por que continuava existindo além da carne, doendo além da dor – por que o sangue que não corria mais em suas veias continuava se coagulando nos veios da família? E por que – por quê? - eu não parava de procurá-lo em todas as mínimas e absurdas coisas, como quando era criança. (BRUM, 2012:29)

Denunciando que o atestado de óbito não foi capaz de sepultar Cilon e transformá-lo em um morto para sua família. No livro que Liniane escreveu ela narra a sua busca por informações do tio, procurando entrevistar as pessoas que conviveram com ele em sua época de militância, em São Paulo e no Araguaia, mas também em Porto Alegre, quando ele ainda nem tinha dado os primeiros passos em direção à intensa atuação política que viria exercer mais tarde.

Liniane buscava rastros e pistas que pudessem ajudá-la a desenhar para si mesma quem foi esse seu tio e padrinho, morto ainda tão jovem, e que ela nem mesmo conheceu, porque a última vez que foi visto pela família foi justamente no dia do seu batismo, mas que, no entanto, permaneceu “no meio de nós”, no meio de sua família, “doendo além da dor”, segundo suas palavras.

Em outra passagem ela também afirma:

Fico emocionada toda vez que vejo o pai falar de tio Cilon e de todos na família que o esperaram. De como foram esses anos. Ele sempre fala isso.

E sempre vai falar, porque faz parte da estratégia de viver. Mas queria tanto que a gente pudesse parar de se condoer. (BRUM, 2012:57)

E qual o significado dessa dor? Diversamente da dor de um luto encerrado, ela carrega uma permanente necessidade de buscar algo que falta, de preencher algo incompleto e que assombra constantemente. Porque um luto encerrado não significa necessariamente um apaziguamento da dor. Muitas vezes as perdas doem para sempre. Mas o que singulariza a morte de um desaparecido é a sua incompletude. Seja pela falta de informações e documentos para atestar essa morte, ou quando as mesmas existem, é a falta do corpo que impossibilita a sua morte como um fato estabelecido.

Cilon Cunha Brum, ex-militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) desapareceu, em 1971, no Araguaia, executado pelo Exército, juntamente com Antônio Theodoro de Castro, no meio da mata depois que os militares julgaram que os mesmos já não eram mais úteis para obtenção de informações. Ambos foram fuzilados e seus corpos, insepultos, foram comidos por animais nas florestas do Araguaia, no entanto, suas famílias seguem buscando por algo que encerre suas vidas.

Diante das informações podemos nos fazer as mesmas perguntas que os familiares dos desaparecidos provavelmente se colocam a cada nova notícia que surge: qual a confiabilidade dessas fontes que comunicam as mortes de seus parentes, se muitas vezes, elas são as mesmas que também silenciaram sobre vários fatos, como também mentiram com o intuito de confundir as pessoas e encobrir seus crimes? Como confiar em informações dadas por militares e torturadores se eles foram também os algozes desses desaparecidos? E além de algozes dos desaparecidos, também se prestaram a serem algozes das famílias desses desaparecidos, quando participaram de uma rede de contra informação para torturá-los psicologicamente com telefonemas, cartas, ameaças e extorsões.

Como então acreditar em uma morte carregada de probabilidades, mas sem verdades incontestes? E o que seria uma prova maior para atestar uma morte do que o corpo de alguém que desapareceu? Na falta dele, a família Brum segue, como os demais familiares, numa espera sem fim, ilustrada na sepultura que construíram no cemitério, com a pequena foto de Cilon acima do seu nome, e com o espaço para escrever a data da morte em branco.

Figura 1: Foto da sepultura de Cilon Cunha Brum.

No entanto, no caso de Liniane Brum, a escrita e as cerimônias de lançamentos tiveram uma importância fundamental no seu processo particular de luto. Quando indagada se a sua família havia tido um tempo específico para a vivência do luto do seu tio, Liniane afirma:

Não que eu saiba. Nunca vi nada. Acho que teve sempre assim, a solidariedade dos amigos, que foram se dando conta, quando os amigos começaram a entender. Teve uma coisa com o livro, com o Antes do Passado. Isso teve. Isso foi muito bonito, muito emocionante. É o meu olhar também. Eu não posso falar assim que teve... é o meu olhar, né? Porque quando a gente fez o lançamento lá em São Paulo, em São Sepé, principalmente, em São Sepé, tinha uma coisa do tipo (respira aliviada): “agora podemos falar disso”, sabe? Era como se tivesse limpado um tabu. Porque tinha esse tabu, tinha esse silêncio, tinha tudo isso. É muito complexo você falar como que isso é um tabu hoje, para uma pessoa que não está mergulhada nessa história. Mas era isso. Aí, nesse momento, as pessoas vinham, davam condolências. (BRUM, 2015)14

Nesse trecho da entrevista da Liniane podemos perceber que, na falta do corpo de Cilon, a escrita do livro pôde resgatar sua estória e quebrar o silêncio que cercava sua morte. Na falta de um tempo particular para o luto, as cerimônias de lançamento do livro são descritas por Liniane como momentos no qual as pessoas puderam, finalmente, falar sobre a morte e manifestar solidariedade. Principalmente 14 Entrevista concedida em 2015, São Paulo.

em São Sepé15, cidade natal de Cilon e de seus parentes. Quando o livro trouxe à

tona os acontecimentos do passado, e o sofrimento recalcado pôde circular entre as pessoas, todos puderam “respirar aliviados” ao verbalizarem e compartilharem uma dor anteriormente deslegitimada pelo desaparecimento. Sob esse aspecto, a escrita se prestou a estabelecer a morte e propiciar momentos específicos que desestabilizaram a temporalidade ordinária da comunidade, permitindo uma pausa, na qual amigos e familiares se reuniram para lembrar e conversar sobre a morte de Cilon. Houve principalmente um tempo estabelecido para que as manifestações de condolências pudessem ser expressas, mesmo que com atraso, em um ritual semelhante ao enterro simbólico do desaparecido político Ruy Berbet, que descreveremos a seguir.

No caso específico da família Brum, o corpo de Cilon tomou forma por meio da escrita de sua sobrinha, que procurou descrevê-lo nos detalhes da sua timidez e maneiras desajeitadas, no corpo magro e na personalidade tranquila. A partir de suas particularidades ela o inscreveu novamente no espaço dos homens como um indivíduo único e muito amado pelos seus. Também descreveu as circunstâncias do seu desaparecimento, relatando os fatos que afirmam um crime, estabelecendo, por consequência, a morte do seu tio, e o sofrimento da sua família, que puderam, também, se identificar como vítimas. Como ela narra:

Não é questão de gostar de ser vítima, nem de gostar de ficar chorando, relembrando. Ficar numa dor. Quando eu olho para o meu pai, por exemplo, para mim é muito claro que, no caso, a vítima não é nem mais o Cilon. Quer dizer, o Cilon será sempre, mas ele não tem mais voz, ele está calado para sempre. Mas a vítima, no caso, que está mais perto de mim hoje, é o meu pai. Que está pagando um preço ainda, porque você não sabe que impacto isso teve na vida pessoal e nele como pessoa. Como é que ele, como pessoa, agiria no coletivo, caso tivesse ou não tivesse esse impacto. (BRUM, 2015)16