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REVISITANDO A LITERATURA

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

2 JOVENS INDÍGENAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS: ASPECTOS HISTÓRICOS E INTERCULTURAIS

2.3 A PRESENÇA DOS JOVENS INDÍGENAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

A presença dos indígenas nas universidades foi garantida, principalmente, pelo seu protagonismo nos movimentos de luta pela cidadania de onde emergiu uma intelectualidade indígena disposta a participar dos espaços acadêmicos, como meio de apropriação dos conhecimentos científicos e técnicos e utilizá-los como instrumento de luta política, fortalecimento das gestões territoriais e participação efetiva nas formulações de políticas públicas nas aldeias indígenas (LIMA, 2012). O mesmo autor analisa que, atualmente, este primeiro propósito da presença de indígenas na universidade tem assumido novos contornos. Neste item, apresento os principais eventos históricos recentes que demarcam o acesso e a permanência dos indígenas na educação superior.

Como já abordado, a primeira ruptura, relativa ao acesso dos indígenas na universidade, foi a de serem reconhecidos como sujeitos de direitos pela Constituição de 1988. Os indigenistas e historiadores demarcam atitudes de rompimento com a visão integracionista e etnocêntrica colonial, que visava incorporar os indígenas ao mercado de trabalho e apagar suas especificidades culturais. A partir da nova Constituição, os indígenas saem da condição de tutelados, submetidos integralmente ao Estado, e passam a ter o direito de se representarem juridicamente por meio de suas organizações. A Convenção nº 169/1989 ratificou a Constituição de 1988, embora sua aprovação pelo Governo só tenha ocorrido em 2004 (BRAND; CALDERONI, 2012; LIMA, 2012).

Após a realização dessa convenção, o Ministério da Educação (MEC) publica, em 1993, as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, que passaram a ser referência para os planos operacionais dos Estados e Municípios em relação à educação escolar indígena. Três anos depois, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) reconhece o direito indígena a projetos político-pedagógicos nos quais a língua materna é considerada como própria e não mais como língua em trânsito para o português (BRASIL, 1996). A expansão de escolas indígenas, da educação infantil e das séries iniciais tornou-se significativa ao longo dos anos, no período 2002-2007, somando um total de 774 escolas, com percentual de crescimento de 45,7% no País (MATOS, 2013).

As diretrizes e normas fixadas pelo Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 1999) já previam a formação superior para professores de nível médio e mobilizaram as organizações indígenas a reivindicar o acesso à educação superior. Essas mobilizações resultaram em alguns projetos voltados para a formação de professores e outros cursos regulares destinados a essa população. No ano de 2001, estava previsto, no Plano Nacional de Educação (PNE), o imperativo da formação superior para professores indígenas. A Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT) instituiu o curso de Licenciatura Específica para Formação de Professores Indígenas em 2001, destacando-se como pioneira nessa proposta, vindo, em seguida, a Universidade Federal de Roraima (UFRR). Esse momento é marcado pelas primeiras experiências de ações afirmativas, envolvendo estudantes indígenas e convênios entre a FUNAI e algumas universidades públicas e privadas, fatos que assinalam uma segunda ruptura contra a invisibilidade desse segmento.

Necessário registrar a importante influência da III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância ou Conferência de Durban, ocorrida na África do Sul em 2001, organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2001). Esse fórum destacou a promoção de direitos e os problemas enfrentados por negros e indígenas em

todo o planeta. A participação de representantes do governo brasileiro nesse evento teve efeitos positivos para o movimento negro e indígena, entre estes, o debate e a adoção de políticas de reservas de vagas em universidades. Nesse mesmo ano, o Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2001) prescreve, como imperativa, a formação superior para professores indígenas.

Em atendimento às exigências da LDB, em 2004, o MEC criou o Programa de Licenciatura Indígena (PROLIND) destinado à formação de indígenas que já atuavam como professores nas aldeias. Em 2012, o PROLIND já somava 26 licenciaturas interculturais em todo o País, denominadas de Cursos de Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena (LICEEI), incluindo três mil estudantes (LIMA, 2012). O PROLIND apresenta-se como mais uma conquista protagonizada pelas etnias indígenas, e sua consolidação pode contribuir para a construção da autonomia pedagógica e administrativa das escolas indígenas, dedicando atenção especial aos conhecimentos desses povos. Segundo Matos (2013), este foi o modelo de acesso e permanência no ensino superior reivindicado quase unanimemente pelos professores indígenas.

Concernente à demanda de cursos regulares ou tradicionais nas universidades, isto foi abordado na I ª Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (Iª CONEEI), realizada em Goiânia em 2009, na qual os delegados indígenas mencionaram dez recomendações relativas ao tema da educação superior. Nessas recomendações, já estava implícita a busca pelo diálogo intercultural nas universidades com a preocupação de garantir acesso diferenciado sem abrir mão das identidades e projetos de autonomia (BRAND; CALDERONI, 2012), configurando-se, assim, como mais uma ruptura que vai ensejar um período de transição na inclusão e permanência de jovens indígenas na educação superior.

Progressivamente, os indígenas se fizeram presentes nos cursos regulares ou tradicionais das universidades privadas e públicas, através de bolsas oferecidas pelo Programa Universidade Para Todos (PROUNI), CAPES e CNPq ou, mais tarde, através de vestibulares diferenciados e disponibilização de cotas nas universidades públicas. Inicialmente, as formas mais frequentes foram cursos específicos de licenciatura, bolsas para universidades privadas e reserva de vagas especiais ou vagas suplementares. Em 2004, o MEC criou o PROUNI, que concedeu bolsas integrais ou parciais para cursos de graduação em instituições privadas, sendo considerado como primeira opção para os indígenas ingressarem no ensino superior regular. Segundo avaliação de Oliveira (2013), a dificuldade de acesso à educação superior por estudantes da rede pública serviu de justificativa para políticas compensatórias como o PROUNI e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES). Ambos resultam da transferência de recursos públicos

para o setor privado, no entanto, não alteraram a estrutura seletiva do sistema superior da educação, prevalecendo as desigualdades de classe, raciais e territoriais.

No âmbito das universidades públicas, nos cursos regulares, as primeiras iniciativas surgiram na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), na Universidade Federal de Roraima (UFRR) e no vestibular unificado das Universidades do Paraná. Todavia, a maioria dos indígenas vai finalmente encontrar, como porta de entrada para as universidades públicas, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), que teve como um dos principais objetivos ampliar o acesso e a permanência de estudantes na educação superior no âmbito federal, além da adesão das instituições federais e estaduais de educação superior às cotas raciais, incluindo negros e indígenas, através da política de ações afirmativas. Em 2012, 70 das 98 instituições de educação superior pública (URQUIZA; NASCIMENTO, 2013), no âmbito estadual e federal, já haviam feito adesão ao sistema de reservas de vagas para indígenas e apresentavam duas modalidades de ingresso com ofertas diferenciadas: o vestibular geral (convencional) cujas cotas podem ser por vagas suplementares, ou acréscimos de pontos ou reserva de vagas, e os vestibulares específicos e licenciaturas interculturais. Em 2013, foram registradas 46.563 inscrições de candidatos indígenas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), equivalente a 0,63% do total de inscritos, evidenciando a crescente participação desses jovens na disputa de vagas nas universidades públicas.

No entanto, apesar do aumento do acesso às universidades, apenas 0,12% dos indígenas da Região Norte do País estavam na educação superior em 2012, local onde há maior concentração populacional desses povos (CALMON; LÁZARO, 2013). A distribuição da oferta de vagas no território nacional foi inicialmente pesquisada por Cajueiro (2008)14, que realizou levantamento prévio das ações afirmativas e licenciaturas interculturais para indígenas, tomando como referência o Censo de 2000. O autor constatou que apenas três universidades da Região Norte, onde se concentra a maioria da população indígena, aderiram ao sistema de oferta de vagas. Na Região Sul, entretanto, 34% das IES públicas já possuíam ações afirmativas, sendo esta a região brasileira com a maior disseminação de ações afirmativas dirigidas aos indígenas, embora concentre menor contingente deste segmento populacional. Esse quadro ainda é uma

14 Almejando contribuir para o fomento da Educação Superior Indígena e acompanhar os seu processo de

implementação e transições, foi elaborado o Projeto Trilhas do Conhecimento (LACED/UFRJ/2004-2012), desenvolvido pelo Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), no Museu Nacional/UFRJ, financiado pela Fundação Ford. Entre os pesquisadores desse projeto, aqui se destacam Antônio Carlos de Souza Lima e Rodrigo Cajueiro.

realidade, segundo o Censo Demográfico mais recente (IBGE, 2012 a)15, a maior concentração da população indígena permanece na Região Norte, apresentando 37,4% de todo o País, mas apenas seis IES adotam ações afirmativas. Enquanto isso, a Região Sul concentra 9,2%, menor percentual de comunidades indígenas, entretanto doze IES oferecem vagas para esta população.

Esta ausência de relação positiva direta entre a distribuição da população indígena pelo território nacional e as iniciativas de ações diferenciadas de acesso deste grupo populacional à educação superior foi interpretada por Cajueiro (2008) como a “lógica de distribuição regional do preconceito”, ou seja, o preconceito e a restrição de direitos são maiores quanto maior a população indígena e maior a quantidade de terras a que têm direito. Esse argumento baseia-se na diferença de distribuição dos indígenas nas áreas rural e urbana das regiões do País. A Região Norte tem a maior concentração na área rural (48,6%) quando comparada à Região Sul, cuja maior concentração é na área urbana (25,1%) e com apenas 3,7% na área rural (IBGE, 2012 b). Uma pesquisa recente reforça esse argumento ao assinalar o atraso no acesso ao sistema regular de ensino na Região Norte em relação às demais, e a pouca mobilização dos movimentos indígenas locais, mais voltados para regularizar suas terras, problemas de saúde e outras questões que ocupam sua pauta de reivindicações de direitos (DAVID; MELO; MALHEIRO, 2013).

Segundo Gersem Baniwa 16, indígena e docente da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), os povos indígenas formam um dos segmentos sociais brasileiros que mais tem cobrado do Estado políticas de Ações Afirmativas para suas demandas básicas, entre as quais, o direito à educação superior (BANIWA, 2013). Pesquisadores das universidades do Mato Grosso do Sul (FARIAS; BROSTOLIN, 2011), ao analisarem o sentido da formação acadêmica para as comunidades indígenas, observaram que o ambiente universitário apresenta-se como um espaço estratégico de luta por direitos e emancipação social. Nesse espaço, essa população busca fortalecer conhecimentos, reelaborar mecanismos de produção e negociação, planejar e desenvolver projetos em proveito de suas comunidades. Nessa perspectiva, os autores concluem que a busca de acesso à educação básica e superior pelos indígenas significa a possibilidade de maiores conquistas em relação a sustentabilidade, territorialidade e, assim, de cidadania.

A presença de povos indígenas nas universidades como estratégia de luta pelos seus direitos e pela apropriação dos conhecimentos do mundo ocidental já havia sido assinalada

15 Neste Censo Demográfico, a investigação do pertencimento étnico foi realizada para todas as pessoas de todos

os domicílios, o que não ocorreu nos Censos anteriores (IBGE, 2012 a).

16 Gersem José dos Santos Luciano, indígena do povo Baniwa, assina artigos, ora usando o sobrenome Luciano,

ora usando o nome de sua etnia Baniwa, portanto, trata-se do mesmo autor. Nesta tese, respeitei as duas formas de assinatura conforme a edição dos seus artigos.

pelos pesquisadores desde a primeira etapa de avaliação do ensino superior indígena no Brasil (LUCIANO, 2007; LIMA; HOFFMAN, 2007). Além desse ponto, ressaltaram a relevância do debate e da operacionalização de instrumentos que garantam a permanência e o sucesso desses acadêmicos. Aqui, a estrutura universitária deveria ser modificada em suas condições acadêmicas, técnico-administrativas e financeiras para se aproximar da realidade dos povos indígenas e, de fato, garantir a institucionalização de sua cidadania no meio acadêmico. Os pesquisadores convergem também com a tese de que a participação do indígena na universidade deve ocorrer e, com efeito, a partir de uma inserção diferenciada, evitando a reprodução de sua exclusão sociocultural em outros ambientes. Segundo análise de Urquiza e Nascimento (2013), isso provoca tensões no espaço acadêmico, pois enseja o debate sobre as diferenças culturais, saberes locais, globalização, relações étnico-raciais e territorialidade. A condição dos estudantes indígenas na universidade é discutida a seguir, permeada pela análise crítica das pesquisas que se debruçam na relação entre a permanência e os pertencimentos desses acadêmicos.

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