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A ABORDAGEM SEMIÓTICA-DIALÓGICA DO DESENVOLVIMENTO: O SELF SISTEMA COMO SIGNO TIPO CAMPO

LENTES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

3 CULTURA E DESENVOLVIMENTO HUMANO: PERSPECTIVAS SOCIOANTROPOLÓGICAS E O ENFOQUE SEMIÓTICO DA PSICOLOGIA

3.4 A ABORDAGEM SEMIÓTICA-DIALÓGICA DO DESENVOLVIMENTO: O SELF SISTEMA COMO SIGNO TIPO CAMPO

A partir da revisão acima, é possível afirmar que a investigação central da Psicologia Cultural do Desenvolvimento, de orientação semiótica, está voltada para a emergência dos significados e para a manutenção ou dissolução da ordem hierárquica dos signos, uma vez que os mediadores semióticos (catalisadores e reguladores) são cruciais para o entendimento do

Self-sistema. O Self é autor e reconstrutor dos processos de mediação, pois se configura como

signo campo, assumindo posicionamentos e reposicionamentos constantes em relação aos outros e ao mundo circundante e movendo continuamente a direção e o papel dos signos na sua trajetória de vida.

No movimento bidirecional do desenvolvimento, o Self é orientado pela cultura e, ao mesmo tempo, constitui-se em seu agente de transformação, através dos signos. Longe de ser uma entidade dentro da pessoa, o Self é uma instância dialógica que organiza as diferentes

identidades e uma polifonia de outros significativos internalizados e ressignificados. Valsiner e Cabell (2011) apontam a complexidade do desenvolvimento do Self ao explicar a sua dinâmica de autoconstrução, de auto-organização e de autorregulação, compreendendo o que denominam de Self-cultura. Eles explicam que a natureza semiótica do desenvolvimento humano emerge do “cultivo” das pessoas sobre o seu espaço vital, das mudanças que operam sobre as coisas, assim como os agricultores cultivam suas terras. As pessoas cultivam através da relação entre o Self consigo mesmo e com outros sociais ou significativos nos diversos níveis da esfera da experiência.

Para a Psicologia Cultural, os outros significativos 33são aqueles que existem tanto no sistema de percepção real, externo ao Eu, como também no sistema de significações, dentro do Eu. São interlocutores ou atratores social e afetivamente importantes e cujas vozes são continuamente internalizadas, ressignificadas e externalizadas como posicionamentos (I-

positions). Englobam o outro real ou externo, além de si mesmos, e o outro imaginário ou

interior, aquele que criamos em nós mesmos (ZITTOUN, 2008; MARSICO; CABELL; VALSINER; KHARLAMOV, 2013).

A construção do Self, do ponto de vista dialógico, parte da Teoria do Self Dialógico (DST), desenvolvida pelo psicólogo holandês Hubert Hermans e seus colaboradores, a partir dos anos 90. O conceito original foi inspirado na obra de Willian James34 e na metáfora polifônica do pensamento de Mikhail Bakhtin35. Conforme Hermans (2001), o Self´é definido como uma polifonia de vozes intra e interpessoais, forma-se a partir da internalização de outros significativos, transformados ou traduzidos em múltiplos posicionamentos (I-Positions), nas diferentes esferas da experiência. O autor concebe a cultura e o Self como uma multiplicidade de posições entre as quais as relações dialógicas podem se desenvolver. Valsiner (2012) afirma que a DST conserva a pessoa como centro na construção da I-Positions e enfatiza a cultura como princípio organizador da mente. O autor esclarece a dinâmica da dialogicidade com base na noção de causalidade sistêmica:

A noção de um self dialógico parte de nosso imaginário usual sobre diálogos entre pessoas e é transposta para o diálogo intrapsicológico entre “partes” do self. Não apenas diferentes pessoas se engajam em diálogos, mas todos nós temos nossos próprios diálogos se processando no interior de nossas culturas pessoais. Qualquer perspectiva que assuma teoricamente a presença de

33 Ao longo desta tese, eu me refiro aos "outros significativos" também com seus sinônimos: outros sociais,

interlocutores, atratores ou simplesmente Outro.

34 Filósofo pragmatista e um dos fundadores da psicologia moderna. 35 Filósofo e pensador russo.

diferentes partes do todo e uma relação entre elas pode ser considerada dialógica. (VALSINER, 2012, p.125).

A cultura está em todos e em cada ato de criação dos I-Positions, desse modo o Self dialógico é organizado pela hierarquia de signos. A Psicologia Cultural do Desenvolvimento, com foco na pessoa em constante transformação, evidencia que os I-Positions tornam-se progressivamente organizados, diferenciados e hierarquizados devido à fluidez e à constante mudança na configuração de suas vozes (representantes das posições do Eu). O Self internaliza as vozes e organiza hierarquicamente os signos envolvidos, assumindo diferentes formas. A auto-organização é também autorregulação do Self, pois implica as relações entre I-Positions nas denominadas zonas comunicativas (VALSINER; CABELL, 2011) onde atuam como reguladoras, inibindo ou promovendo o diálogo entre as vozes que as compõem. As vozes são múltiplas e correspondem às internalizações ativas e ao diálogo interior, realizados pela pessoa ao longo de todo seu desenvolvimento. Elas configuram-se como atratores ou outros significativos: pais, parentes, amigos, educadores, objetos culturais, crenças, costumes, que estabelecem um sistema de comunicação no Self, resultando numa complexa narrativa. A comunicação entre as vozes é permeada de tensões advindas do mundo coletivo e pessoal, e seu enfrentamento depende de condições catalíticas que preparam o terreno para os reguladores que guiam a pessoa nos seus posicionamentos, podendo ser uma metaposição (I-position generalizada) ou a união de várias I-positions, criando nova síntese no Self-sistema, o que implica desenvolvimento.

A noção de síntese desenvolvimental foi extraída da filosofia dialética36, método de diálogo centrado nas contradições entre ideias que levam a outras ideias, desdobrando-se em tese-antítese-síntese. A síntese surge da tensão entre os opostos dentro de um todo, caracterizando-se como novo nível de organização estrutural. Segundo Valsiner (2014), a metodologia de estudo do desenvolvimento humano deve considerar a emergência de novas totalidades, a partir das contradições (tensões) entre os opostos, unidas no mesmo Self-sistema. Nos processos psicológicos, esses opostos representam as ambivalências que compõem as trajetórias de vida. A noção de ambivalência sugere um espaço vital cheio de forças com diferentes graus de atração ou repulsão, presentes nas experiências individuais, buscando atender às demandas do presente e do futuro, simultaneamente. Cada situação vivida evoca incertezas e solicita a superação de tensões entre as experiências passadas e as perspectivas para o futuro, através de signos reguladores. Desse modo, as ambivalências são centrais na

36 A dialética moderna é representada por duas vertentes: a idealista de Fredrich Hegel e a materialista de Karl

construção de significados. O presente não é só influenciado pelo passado, mas também pelas expectativas projetadas para o futuro. Os signos atuam como reguladores do presente e como promotores para as possibilidades futuras, assim, são construídos não apenas como ferramenta para interpretar a realidade, mas também como meio para se relacionar ativamente com ela (ABBEY; VALSINER, 2005).

A análise dos níveis de ambivalência nos processos psicológicos é relevante para o objeto de estudo desta tese, pois ajuda a compreender por que determinados signos mantêm a mesma representação para os estudantes universitários indígenas, porém assumem formas diferentes na relação com a experiência universitária e em suas perspectivas para o futuro. Conforme Abbey e Valsiner (2005), a análise da emergência semiótica leva em conta os diferentes níveis de ambivalência que envolvem as condições denominadas por eles de nula, errática e bifurcação de trajetórias, que contribuem para o sistema hierárquico de mediação semiótica do fluxo da experiência pessoal. A condição nula consiste na ausência de tensão, pois a pessoa não sabe o que é o fenômeno ou coisa e não se interessa em saber e, portanto, não constrói novos signos. Na condição errática, a pessoa busca criar significados para entender o fenômeno ou coisa, e caracteriza-se por níveis frágeis e médios de ambivalência. O nível frágil corresponde ao estado mínimo de ambivalência, e os signos podem ser extintos caso não haja uma sustentação mínima para que passem para outro nível. Os signos médios, que também emergem da condição errática, representam de modo satisfatório o fenômeno e orientam a pessoa para alguma direção. Mas o aumento do nível de ambivalência pode levar à bifurcação de trajetórias, permeadas por signos fortes que auxiliam as pessoas a enfrentar as incertezas e oposições em situações que não podem ser ignoradas.

Ao analisar as narrativas dos estudantes indígenas, notei que o acesso de alguns à educação superior caracterizou-se por uma condição errática, permeada por signos médios que, de alguma forma, orientaram seu percurso para o vestibular e o conhecimento sobre cotas étnico-raciais. E, para outros, a entrada na educação superior foi orientada por outros significativos, seja os familiares ou a própria comunidade, que forneceram signos fortes para o enfrentamento das tensões. Abbey e Valsiner (2005) denominam os outros significativos de agentes de intervenção, que podem pertencer a diferentes tempos históricos e lugares. As narrativas dos estudantes revelam que ambos os níveis de ambivalência contribuíram para a emergência semiótica dos jovens na escolha do curso e na sua permanência na vida universitária, como será apresentado na discussão dos resultados.

Na perspectiva semiótica e dialógica, o Self é entendido como um sistema dinâmico em constante tensão evolutiva, sempre mudando para dar conta das demandas e construindo signos

que regulam e promovem o desenvolvimento em diferentes contextos. No curso da vida, ao estabelecer novas relações e distintos julgamentos de si, o Self sofre contínuas reconfigurações apoiadas por recursos simbólicos. Iannoconne, Marsico e Tateo (2012) afirmam que o Self pode ser considerado como uma organização dinâmica de diferentes identidades. Desse ponto de vista, as identidades são formadas por um conjunto internalizado de significados, conhecimentos, conceitos, crenças ligadas ao papel da pessoa na rede de relações sociais em uma determinada situação ou momento da vida. Essa definição apresenta intersecção com Bruner (2000), quando afirma que a cultura compõe o Self (o si mesmo) traduzido como a alteridade dialética presente nos signos, ou seja, a construção de si a partir da relação que estabelece com os outros sociais.

O objetivo geral definido para essa pesquisa me conduziu ao propósito específico de compreender como os Selves dos estudantes indígenas se reconfiguram na fronteira entre os discursos socioculturais e outras experiências compartilhadas na vida universitária, considerando o papel das rupturas–transições na construção de novos signos identitários. A universidade como contexto de transição de desenvolvimento de jovens estudantes abre caminho para mudanças afetivas, cognitivas e sociais constituintes de sua trajetória acadêmica. Entendo que a experiência universitária pode assumir papel de catalisador semiótico, pois prepara o terreno, ou dá suporte, para transições dos jovens, ao ativar ou construir signos reguladores e, assim, transforma seu sistema de orientação. As mudanças ocorridas no desenvolvimento psicossocial dos indígenas no espaço universitário são aqui compreendidas como um conjunto de recursos simbólicos, ou seja, elementos culturais transformados pelos estudantes para apoiar suas transições. Importa refletir sobre a relevância das experiências universitárias na reconfiguração do Self de estudantes, identificando os marcadores de rupturas- transições, os diferentes pertencimentos e recursos simbólicos envolvidos em novas sínteses desenvolvimentais.

As abordagens socioantropológicas, em diálogo com a perspectiva sociocultural da psicologia, convergem na compreensão da cultura como dinâmica constante e central na organização das experiências e regulação do Self, sendo, portanto, categoria-chave para o estudo do desenvolvimento psicossocial. A Psicologia Cultural do Desenvolvimento, de orientação semiótica, com o foco no constante vir a ser do ator social na teia de significados emergentes das ambivalências dos seus percursos de vida, oferece ferramentas teórico- metodológicas para analisar a emergência do sujeito na síntese entre cultura pessoal e coletiva. No próximo capítulo, os aspectos teóricos e conceitos até aqui apresentadas, são aprofundadas

e dirigidos à análise das três principais categorias desta tese: rupturas-transições, pertencimentos socioculturais e Self Educacional.

4 RUPTURAS-TRANSIÇÕES NO DESENVOLVIMENTO: PERTENCIMENTOS E

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