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LENTES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

4 RUPTURAS-TRANSIÇÕES NO DESENVOLVIMENTO: PERTENCIMENTOS E SELVES

4.2 AS TEIAS CONFIGURATIVAS: PERTENCIMENTOS SOCIOCULTURAIS E RECONHECIMENTOS

A análise da tensão entre cultura pessoal e coletiva contribui para o estudo de outra unidade de análise desta pesquisa, os pertencimentos socioculturais, uma vez que trazem a dimensão subjetiva na constituição cultural do ser humano, estruturante de Selves. Na abordagem da psicologia cultural, a sociedade atua como signo hipergeneralizado ou teias sociais em que diferentes linguagens compõem a mediação semiótica do pensar e do sentir de seus atores. Atuando como metassigno39, a sociedade é um sistema dinâmico e abstrato, operando como regulador funcional da unidade social, cujas instituições, que formam sua estrutura, estão em constante transformação e realinhamento de seus papéis e relações de poder. As pessoas que dela fazem parte, não são receptores passivos, mas agentes participantes que exibem diferentes modos de pertencimento, pois desempenham papéis temporários em processos de estabilidade e instabilidade no campo social. Por conseguinte, os pertencimentos à estrutura social estão longe de serem estáticos ou ligados a uma essência pessoal, ao invés disso, obedecem a uma lógica de semelhanças e estranhamentos e, conforme Valsiner (2012, p.78), “Na condição de quem se move constantemente pelas fronteiras, nós todos somos migrantes perpétuos, movendo-se por labirintos de significados que nós mesmos criamos e de regras sociais. [...]”.

Tomando a Psicologia Cultural e os estudos socioantropológicos, defino como pertencimentos socioculturais não apenas o sentimento de fazer parte de um sistema de crenças, tradições, costumes, normas, atitudes, afetos e comportamentos coletivos de uma comunidade geográfica, simbólica ou virtual, mas também a experiência de negociação permanente dos sujeitos com todos esses níveis da vida. Entendo comunidade como campo de tensões e inter-

relações, estruturante das experiências dos atores sociais e de onde emerge o sujeito. Nesse campo, são produzidos os recursos materiais e simbólicos, saberes comuns dos quais seus membros extraem referenciais, normas, padrões de comportamento e sentidos para a vida. Essas produções coletivas, através do contato com outras comunidades, sofrem alterações e significações ao longo do tempo. A pertença emerge desse vínculo com os pares, dos laços de solidariedade, cooperação e de diferenças e oposições entre o Self e os outros significativos. Valsiner (2012) esclarece que, dentro do campo da totalidade social, as comunidades se configuram como unidade orgânica diferenciada, baseada na interdependência entre seus membros. Nesse sentido, pertencer a uma comunidade e participar de uma dada sociedade conferem uma relação inevitável de ambivalência, permeada por contínuas diferenciações e reconhecimentos dos processos identitários.

O estudo dos pertencimentos ajuda a entender a dinâmica psicossocial do desenvolvimento humano na formação de fronteiras, onde ocorrem as configurações da identidade coletiva e pessoal dos atores sociais. Conforme os estudos de Mattos (2013), a relevância do estabelecimento de novos vínculos de pertencimento entre jovens, para além da família, em diferentes esferas de socialização, constrói identificações geradoras de sentimentos de inclusão, reconhecimento e aceitação. Ao mesmo tempo, considerando reflexões no campo socioantropológico, o reconhecimento social demanda a garantia de igualdade de direitos e afirmação identitária, principalmente entre grupos que sofrem preconceitos étnico-raciais, de classe, de gênero, de orientação sexual ou de outra ordem. Nesta tese, eu sustento que a análise dos pertencimentos socioculturais em estudantes universitários indígenas torna-se premente não só para entender seus diferentes percursos de desenvolvimento, mas também para avaliar as ações afirmativas e políticas voltadas para esta população. Um dos argumentos que defendo é que a adoção de políticas de cotas nas universidades, enquanto política pública colabora para a reconfiguração identitária e reconhecimento de direitos e diferenças entre grupos étnicos. Por essa razão, destaco o cruzamento entre os pertencimentos étnico e acadêmico como fundamentais, por entender o espaço universitário como fronteira interétnica ou intercultural que enseja novas configurações identitárias nos jovens indígenas.

Devido à afinidade epistemológica e à aderência ao objeto de estudo desta pesquisa, a análise do pertencimento étnico está aqui fundamentada em alguns recortes teóricos das abordagens de Barth (2011) sobre identidade étnica, de Hall (1997; 2003; 2006) acerca da centralidade da cultura na formação do Self e sobre as configurações identitárias híbridas aportadas por García Canclini (2009), com os quais proponho um diálogo com a psicologia cultural. A partir desses horizontes, foco essa análise na forma como os estudantes se

identificam e são reconhecidos como membros de um grupo étnico, ou seja, como selecionam e significam os elementos culturais de sua comunidade a partir das interações que estabelecem no ambiente universitário, caminho teórico-metodológico que tracei para descrever e analisar a reconfiguração do pertencimento étnico dos estudantes indígenas na universidade.

Frederik Barth é conhecido como o antropólogo que substituiu a concepção estática de identidade étnica por uma concepção flexível e dinâmica, ao analisar de maneira sistemática a constituição dos grupos étnicos e a natureza de suas fronteiras. A sua abordagem é hoje assumida pela antropologia contemporânea, ao lado do antropólogo inglês Abner Cohen. Cunha (2009) destaca os antropólogos Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira como os pesquisadores que, no Brasil, mais se dedicaram ao assunto nessa perspectiva. Segundo Barth (2011), um grupo étnico é aquele que compartilha padrões ou valores num campo de interação e comunicação entre seus atores. Porém um grupo não possui existência isolada e estática, ele mantém contato com outros grupos, formando fronteiras interétnicas onde se fortalecem diferenças culturais e se configuram as identidades coletivas e pessoais. Essas identidades são construídas e transformadas na interação entre grupos, que estabelecem critérios de pertença, limites de inclusão e exclusão de seus membros. Os grupos étnicos são vistos pelo autor com uma forma de organização social, pois os atores usam identidades étnicas para categorizar a si mesmos e aos outros, quando propõem interação.

Nessa perspectiva, a identidade étnica representa a memória coletiva e corresponde à noção de si dentro de uma dada situação, a partir da experiência de contato de um grupo com o outro. Neste sentido, o pertencimento étnico não é determinado pelo aspecto biológico, territorial ou pelos símbolos culturais em comum, mas pela maneira como os atores sociais se percebem e são reconhecidos pelos outros, pelos traços que consideram mais significativos: “[...] os grupos étnicos são categorias, atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores e, assim, têm a característica de organizar a interação entre as pessoas" (BARTH, 2011, p.189). Desse modo, alguns traços culturais são utilizados como signos de diferenças, outros ignorados e, até mesmo, minimizados ou negados em contato com outros grupos. Por essa razão, não se pode prever quais traços culturais ou signos de diferenças serão considerados relevantes para os atores. Através das categorias atribuídas, os grupos étnicos constroem fronteiras geográficas, linguísticas, sociais, culturais, simbólicas e outras. Porém os traços culturais que definem as fronteiras podem sofrer transformações, assim como as características culturais de seus membros.

A abordagem interativa desse autor centra-se nas fronteiras interculturais onde ocorrem os contatos entre diferentes etnias e cujas identidades estão sempre em construção. As fronteiras

são mantidas e também reconstruídas, pois delimitam os posicionamentos identitários devido às contínuas transformações que envolvem o reconhecimento da pessoa no seu grupo. O “diagnóstico da pertença” é baseado não nas diferenças essencializadas ou objetivas, mas nos fatores socialmente atribuídos como relevantes para os membros do grupo, ou seja, o foco da investigação está na fronteira étnica que define o grupo e não nas suas características materiais, como esclarece o autor:

Pouco importa quão dessemelhantes possam ser os membros em seus comportamentos manifestos – se eles dizem que são A, em oposição a outra categoria B da mesma ordem, eles estão querendo ser tratados e querem ver seus próprios comportamentos serem interpretados e julgados como o de As e não de Bs; melhor dizendo, eles declaram sua sujeição à cultura compartilhada pelos As. Os efeitos disso, em comparação a outros fatores que influenciam realmente os comportamentos, podem então tornar-se objeto de investigação. (BARTH, 2011, p.195).

Assim, não é a cultura que precede o grupo e o define com traços biológicos e culturais. De acordo com a perspectiva sociocultural da psicologia, a cultura pertence ao grupo, e sua expressão é definida pelas categorias criadas pelos seus membros. A partir desse recorte teórico, identifico nesta tese o pertencimento étnico dos estudantes indígenas na forma como se relacionam com sua comunidade e como organizam os recursos simbólicos, ou seja, como ressignificam os elementos culturais do seu grupo étnico no contexto acadêmico. Conforme descrevi no primeiro capítulo, as etnias indígenas, no Brasil, não ocupam territórios exclusivos, principalmente no Estado da Bahia, embora clamem pelo reconhecimento de suas terras e nações. Ao lado disso, há diferentes modos pelos quais elas se conservam através dos movimentos de resistência e outras formas de expressão. Essas situações fronteiriças são ferramentas de análise desses povos, segundo Barth (2011). Desse modo, considero o modelo barthiano convergente com o objeto de estudo desta tese para compreender a relação dos estudantes indígenas com seu grupo étnico ou com sua comunidade, com o sentimento de estrangeirismo entre os pares e com a afirmação de sua identidade como sujeito indígena.

A perspectiva de Barth (2011) também contribui para entender as configurações identitárias da cultura pessoal, alinhando-se à abordagem das transições segundo a psicologia cultural. Em suas pesquisas, Zittoun (2005) observou que as pessoas, no curso de seu desenvolvimento, podem “escolher” elementos de sua cultura pessoal ou coletiva como ferramentas possíveis para agir sobre as coisas, transformando-os em recursos simbólicos. Os elementos culturais são recursos historicamente construídos pela coletividade, permeados de significados, são crenças, costumes, leis, religiões, expressões artísticas, conhecimentos,

esportes, rituais, mitos, eventos, valores, projetos e todas as maneiras de ser (sentir, pensar e agir). Transformados em recursos simbólicos, esses elementos têm papel fundamental como sistema de orientação e perspectiva de tempo nas transições do desenvolvimento. Ao fazer analogia com os conceitos de Barth (2011), entendo que os recursos simbólicos são categorias elaboradas pelos atores sociais ao internalizar e interpretar os elementos da cultura do seu grupo étnico.

Segundo autores da psicologia cultural, os posicionamentos identitários se referem aos recursos simbólicos usados pelas pessoas nas suas relações de pertencimento. Construídos nas relações dialógicas, esses posicionamentos são modos como as pessoas se desenvolvem nas fronteiras interculturais, ao criar novas metas, orientações, possibilidades, pressões e confrontos com os outros sociais significativos, por meio de práticas discursivas que implicam mudanças ou transições. Desse ponto de vista dialógico e sistêmico, Valsiner e Cabell (2011) definem a noção de identidade como representações/concepções mentais do sistema Self, estruturado no tempo e no espaço em relação com o ambiente. As identidades são signos tipo campo e assumem a função catalítica ao criar condições para a emergência de reguladores semióticos, fornecendo suporte para síntese de signos promotores ou inibidores do desenvolvimento. Neste sentido, as identidades emergem das fronteiras, pessoais e coletivas, que, embora ambíguas e muitas vezes invisíveis, guiam ações e planos e realizam, entre a pessoa e o ambiente, mediações carregadas de significações (MARSICO; CABELL; VALSINER; KHARLAMOV, 2013).

Nessa perspectiva, a noção de fronteiras é central para que possamos entender a fluidez intrínseca do desenvolvimento psicossocial, dada a sua característica oscilatória de separar e, simultaneamente, unir. Nesse sentido, fronteira representa o caráter dinâmico e impreciso, limite sempre reconstruído entre o sujeito e o contexto, o Eu e os outros significativos, a cultura pessoal e a cultura coletiva. As fronteiras podem ser substanciais ou não substanciais, visíveis ou fugazes, espaciais ou temporais. A totalidade da vida humana é permeada de fronteiras onde ocorre o limite entre o interior e o exterior do Self com um duplo e ambíguo movimento de separação e unificação que orienta as ações e emoções da pessoa. No esforço para diminuir as ambiguidades é que surgem as mudanças e a expressão da individuação semiótica. As fronteiras são criadas no espaço e no tempo irreversível, no presente vivido pela pessoa, que reconstrói o seu passado e se projeta no futuro, movimento que garante a singularidade da experiência (MARSICO; KOMATSU; IANNACCONE, 2013).

Valsiner (2012, p.77-78) explica que o desenvolvimento humano é um constante estado de trânsito entre fronteiras, caracterizado por momentos de continuidades e descontinuidades,

e, nesse movimento, “[...] as pessoas, mesmo em estados estáveis de ser, enfrentam a tensão entre estados ‘como são’ (‘as-is’) e os estados ‘como se fossem’ e ‘como poderia ser’ (‘as-if’’ ou ‘could be’)”. Desenvolver-se é mover-se para além das fronteiras, em direção ao futuro no limite do tempo irreversível. Portanto, os pertencimentos não são estáveis, eles se transformam e assumem diferentes maneiras de expressão e, da mesma forma, as fronteiras se movem, como todos os membros da sociedade. As fronteiras movimentam o fundo e a figura de um contexto, ao serem representadas pelo presente no curso de vida: “Em todos os processos dinâmicos que ocorrem no tempo irreversível, a fronteira do presente separa a ‘figura’ ainda não conhecida do

futuro do ‘fundo’ já conhecido (mas que vai seletivamente desaparecendo) do passado”

(VALSINER, 2012, p.111; grifos do autor).

Nesse ponto de vista, as fronteiras constituem espaço fértil para construção de novos conhecimentos. Os processos educacionais criam fronteiras, momentos que geram descontinuidades ou rupturas no desenvolvimento, seguidas por transições ou reajustamentos que levam as pessoas a elaborarem novos significados e condutas. Ao considerar o ambiente universitário como fronteira, é necessário entender a percepção do cotista indígena para si e para o outro na condição de estudante e como transforma os elementos culturais em recursos simbólicos que passam a guiar suas ações e posicionamentos.

Essa abordagem do pertencimento étnico também se alinha à perspectiva de Hall (2003) quando afirma que as formas de negociar e de posicionar-se com outros grupos nas fronteiras interculturais são constitutivas da identidade coletiva, processo inconsciente e em constante construção entre grupos sociais. Hall (2006) analisa o impacto da globalização na identidade cultural, argumentando que as sociedades pós-modernas são caracterizadas por mudanças permanentes e rápidas que efetuam constantes deslocamentos e evidenciam as diferenças40. Nessa direção, a globalização tem efeito pluralizante sobre as identidades, definidas como posicionamentos ou pontos de identificação, fontes de significados construídas historicamente pelos atores sociais ao se reconhecerem vinculados a determinado grupo étnico ou social. O autor explica que não há identidades completas, puras e permanentes ao redor de um “eu” coerente. Ao descrever o sujeito na pós-modernidade, ele aponta “[...] uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13). Esse fato converge para o que ele denomina de “política de diferença”, dando lugar às identidades híbridas entre fronteiras

40 O autor pauta sua análise nos pontos considerados como convergentes nas abordagens dos autores Antony

Giddens, Ernest Laclau e David Harvey: descontinuidade, fragmentação, ruptura e deslocamento (HALL, 2003), cujas profundidade e extensão de conteúdos não serão apresentadas nesse trabalho.

simbólicas e confrontações culturais globais. Assim, as identidades culturais são relativizadas pelo impacto da compressão espaço-tempo que as tornam sempre em suspensão, em transição, entre diferentes posições.

Concernente aos cruzamentos ou à fusão entre diferentes culturas, Hall (2003) desenvolveu um olhar sociológico sobre a distinção entre o multicultural e o multiculturalismo. O multicultural é um termo qualitativo para descrever a convivência de diferentes comunidades étnicas e culturalmente mistas que tentam construir uma vida em comum, embora cada uma retenha algo de sua identidade original. Neste ponto, Hall traz a marca do antropólogo e teórico Lévi Strauss, ao afirmar que as sociedades multiculturais não são novas, pois a migração e os deslocamentos dos povos fazem parte do desenvolvimento da humanidade.

A tentativa de compreensão dessa diversidade cultural é transferida para o terreno político através do multiculturalismo, movimento que afirma a relação entre diferentes culturas numa mesma sociedade, buscando garantir os direitos étnicos, políticos e culturais dos cidadãos. No caso das comunidades indígenas, isso implica a construção de políticas públicas que reconheçam suas diferenças e garantam seus direitos. Segundo Hall (2003, p.52), o multiculturalismo é um termo substantivo e se converteu em doutrina política, referindo-se “[...] às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais”. De acordo com Silva (2005), o multiculturalismo é um movimento fundamentalmente ambíguo, com raízes no norte da América, principalmente Estados Unidos e Canadá. A ambiguidade na aplicação do conceito gira em torno das relações de poder: por um lado, surge como solução para problemas trazidos pelos grupos étnicos e raciais daqueles países; por outro, como movimento de reivindicação de grupos culturais. Assim, foram desenvolvidas várias vertentes multiculturais: conservadora, liberal, pluralista, comercial, corporativa ou crítica. A maioria delas tende a essencializar, cristalizar e naturalizar as diferenças e as identidades, desenvolvendo políticas integracionistas e interpretando os pertencimentos como rígidos ou fixos. Por exemplo, o multiculturalismo conservador tem como estratégia a assimilação da diferença às tradições e costumes da maioria, e o multiculturalismo liberal busca integrar os grupos culturais ao modelo social hegemônico41. Ambos não questionam as diferenças e os estereótipos que reforçam o silenciamento das identidades, marginalização dos grupos, imobilizando sua emancipação (CANEN; OLIVEIRA, 2002; CUNHA, 2009; HALL, 2003; SILVA, 2005). No que se refere à vertente do multiculturalismo crítico ou revolucionário, seu foco está na identificação dos mecanismos

41 Essas perspectivas são conhecidas como multiculturalismo nos Estados Unidos e pluralismo na América Latina

históricos e políticos, dos privilégios, das opressões e dos movimentos de resistência (McLAREN, 2000).

Hall (2006) ressalta que o multiculturalismo e suas vertentes foram profundamente questionados, tanto por conservadores e liberais como pelos pós-modernistas de distintas convicções políticas. Dentre os argumentos, aponta a falta de consistência nas estratégias e políticas de respeito às diferenças que, ao tomar como absolutas as virtudes de uma minoria, reforça com frequência a segregação. Na mesma linha, Silva (2007) pontua que, nos últimos anos, as questões do multiculturalismo têm sido centrais nas pedagogias oficiais e nas teorias educacionais críticas, entretanto há ausência de uma teoria consistente que dê conta da interdependência entre identidades e diferenças. Sobre esse ponto, trago o argumento de García Canclini (2009, p.26-27) sobre o multiculturalismo, direcionado para o programa que prescreve cotas de representatividade nas universidades, parlamentos e organizações: “[...] como exaltação indiferenciada das realizações e misérias daqueles que compartilham a mesma etnia ou mesmo gênero, entrincheira-se no local sem problematizar sua inserção em unidades sociais complexas de ampla escala”.

Convergindo com Hall, García Canclini (2009) desenvolve reflexões esclarecedoras e relevantes para o entendimento das relações interculturais contemporâneas e sobre os múltiplos pertencimentos. Conforme detalhado no capítulo anterior, no seu ponto de vista, a modernidade é um estágio de desenvolvimento, com diversas modalidades de crescimento econômico, fusões étnico-raciais, artísticas, e outras pluralidades culturais, denominadas de hibridação. Os múltiplos pertencimentos estão relacionados com a combinação dessas diversas modalidades que resultam da síntese entre diferenças culturais, desigualdades sociais, conexões e desconexões das redes de comunicação e participação social.

García Canclini (2009) afirma que as identidades dos sujeitos formam-se em uma diversidade de fronteiras culturais, não só na cultura onde nascem, mas em processos interativos e internacionais, em uma variedade de processos simbólicos e modelos de comportamentos. Elas se formam nos cruzamentos socioculturais, confrontações e entrelaçamentos do espaço “inter”: do tradicional ao moderno e das emergentes condições tecnológicas e culturais. É desse modo que os povos constroem a multiculturalidade42, designada como a abundância de opções simbólicas que enriquecem as identidades, não as tornando engessadas ou essencializadas. Nessa direção, o autor aponta para a ambivalência da sociedade globalizada, que busca

42 A palavra multiculturalidade é aqui empregada como sinônimo de diversidade cultural, e é diferente de

multiculturalismo, como políticas relativas ao respeito às culturas, nos termos discutidos por Stuart Hall e Néstor García Canclini.

integração e homogeneização, acentuando as desigualdades, ao mesmo tempo em que evidencia a diversidade cultural, apontando para mobilidade identitária. García Canclini (2009) analisa que é nesta tensão que as diferenças entre os grupos étnicos devem ser reconhecidas e protegidas:

O reconhecimento e a proteção destas diferenças inassimiláveis têm

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