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REVISITANDO A LITERATURA

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

2 JOVENS INDÍGENAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS: ASPECTOS HISTÓRICOS E INTERCULTURAIS

2.1 JUVENTUDES INDÍGENAS NO BRASIL E PERTENCIMENTO ÉTNICO

No Brasil, a defesa histórica pela cidadania etnicamente diferenciada passa pelo engajamento constante dos povos indígenas pelo seu reconhecimento como titulares de direitos com base na afirmação do seu pertencimento étnico. De acordo com o Dicionário de Direitos

Humanos (AMARAL, 2006), o sentimento de pertencer consiste em uma crença subjetiva numa

origem cultural e étnica comum a uma coletividade. Pressupõe ainda o pertencimento a um lugar e, ao mesmo tempo, sentir que este lugar lhe pertence, acreditando que pode interferir na rotina e no ritmo deste espaço de identidade. Assim, é possível compreender a luta de povos ou comunidades tradicionais que se unem pela demarcação de seus territórios e pela conquista de espaços econômicos e políticos. Isso se evidencia no crescente ativismo indígena, nos últimos anos, e revela o protagonismo dos jovens nos movimentos e organizações políticas.

Para iniciar esta seção, teço breves considerações sobre os termos ‘povos tradicionais’ e ‘etnicidade’, conforme as definições atuais da Antropologia Social, cujas características serão discutidas no quarto capítulo desta tese. Em geral, os povos tradicionais são aqueles identificados como detentores de saberes, transmitidos oralmente de geração em geração e decorrentes da relação com a terra como fonte de sobrevivência e de organização sociocultural. Conforme atesta Cunha (2009, p.300):

[...] populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando para conquistar (prática e simbolicamente) uma identidade pública conservacionista que inclui algumas das seguintes características: uso de técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança local e, por fim traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados.

Esses povos emergiram como sujeitos políticos após mobilizações em prol de sua conquista de direitos sociais, que passaram a ser garantidos com a promulgação da Constituição Federal em 1988. Eles são remanescentes de quilombos, comunidades indígenas, ribeirinhas, jangadeiros, caiçaras, seringueiras, de pescadores artesanais e outros, tendo como traço comum a terra como fonte de sobrevivência e de construção de identidades. De acordo com sua definição, a categoria povos tradicionais se compõe de sujeitos políticos que estão dispostos a conferir-lhe substância e assumem um pacto de compromisso com “[...] uma série de práticas conservacionistas, em troca de algum tipo de benefício, sobretudo de direitos territoriais" (CUNHA, 2009, p.300). Conforme explica a autora, essa categoria no Brasil toma como modelo os povos indígenas, porém a legislação não os inclui como tal. Essa distinção entre povos indígenas e populações tradicionais é decorrente do fato de que não se estabeleceu como condição a conservação ambiental para garantia dos direitos sociais indígenas. No entanto, conforme apontado a seguir, as demais características se evidenciaram no crescente ativismo indígena.

No que concerne à etnicidade, destaco aqui a importância e a complexidade das obras de Claude Lévi-Strauss, na área das Ciências Sociais, e do antropólogo norueguês, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Boston, Fredrik Barth12, sobre o tema. Segundo Lévi-Strauss (1952), etnia é um conjunto de tradições culturais de determinado povo. O teórico explica que há muito mais culturas do que raças humanas, pois ocorrem diferentes encontros étnicos entre os homens pertencentes à mesma raça. Ao mesmo tempo, a diversidade cultural não ocorre apenas entre grupos étnicos, mas dentro do próprio grupo. As tradições, ou saberes transmitidos através das gerações, não permanecem como totalidades, são suscetíveis às mudanças no tempo. Lévi-Strauss (1952) apontou as confusões persistentes em torno das noções de raça e etnia, pois, quando passa dos fatos biológicos para as produções sociológicas e psicológicas, há realmente uma maior complicação. Poutignat e Streiff-Fernart (2011) ressaltam que, na acepção contemporânea, raça não se reduz a traços biossomáticos, mas também à percepção das diferenças físicas e seu impacto no indivíduo e nas relações sociais.

Conforme Barth (2011), a etnicidade é um conceito socialmente construído a partir dos processos organizacionais onde se encontram as fronteiras e as relações entre grupos sociais. Assim, o que define o grupo étnico não são os seus traços socioculturais, mas os seus critérios de pertença definidos nas fronteiras sociais. O processo de reconhecimento étnico consiste, desse modo, numa forma de organização política e cuja cultura está em constante reelaboração.

Na América Latina, tanto os jovens de ascendência africana como os indígenas se constituem como grupos vulneráveis quando são consideradas as múltiplas discriminações de caráter étnico-raciais relativas ao seu acesso a bens e serviços, às situações de risco e, particularmente no caso dos indígenas, o distanciamento de sua própria cultura, ao mesmo tempo em que são excluídos da cultura urbana. Assim, vivenciam uma tripla exclusão: étnica, classista e geracional. Ao analisarem esse fato, pesquisadores (POPOLO, LÓPEZ; ACUÑA, 2009) apontam alguns problemas que se apresentam como desafios para o desenvolvimento de pesquisas e políticas públicas voltadas para os direitos dessa população. Entre outros, enfatizo aqui a falta de informação sistemática e de qualidade que tem, como principal limitação, a identificação étnica nas diferentes fontes, principalmente nos censos, para obtenção de dados sociodemográficos.

Os dados demográficos sobre os indígenas, nestes últimos anos, gradativamente elucidam o reconhecimento de seu status jurídico e a diversidade étnica, ao adotar critérios mais específicos nas pesquisas. O critério utilizado para captação indígena no Censo 2010 do IBGE (2012 a) foi a autoclassificação ou autoidentificação, independente de o informante ter sido o próprio indígena ou não. As considerações apresentadas, nesse documento, são baseadas no quesito cor ou raça e em características investigadas em todos os domicílios do País. Até 2000, ainda não existia, por parte do IBGE, a adoção de critérios mais específicos sobre a afirmação de populações indígenas nos censos. A obtenção do número de autodeclarados com base nesse quesito mostra que um número significativo de indígenas deixou de se autodeclarar nesta categoria e se classificou nas demais opções cor ou raça, a saber: amarela, preta ou parda. O documento explica que, no Censo de 1991, as pessoas se identificaram como outras categorias e, no de 2000, passaram a se identificar como indígenas.

Esses critérios têm impacto na adoção de políticas de cotas nas universidades brasileiras, principalmente sobre o pertencimento étnico e o perfil dos estudantes indígenas. Baseando-se nesses novos referenciais de classificação e autoclassificação, as instituições de educação superior foram modificando seus questionários sociodemográficos e seu requisito de

autodeclaração de cor/raça. Na entrevista com um professor indigenista e historiador13, esse impacto fica evidente quando ele comenta que, no País como um todo, em relação às ações afirmativas, a utilização do critério cor/raça dos Censos do IBGE se reduziu àqueles que se autodeclaram pretos e se autodeclaram pardos. Então, muitos questionamentos foram apresentados em relação à categoria pardos, pois ela não define, efetivamente, se a pessoa é afrodescendente ou indígena. O professor esclarece que muitos indígenas que viviam na cidade não se afirmavam como tal e, com frequência, se autodeclaravam como brancos, mas, respondendo ao Censo, se autodeclaravam pardos.

A adoção desses novos critérios também põe em evidência as diferenças regionais e espaciais, importantes para a análise, por exemplo, a redução de 68 mil indígenas na área urbana, sendo a maioria da Região Sudeste; nas áreas rurais, o crescimento foi de 4,7% ao ano, com maior concentração no Nordeste. Sobre esse fato, alguns autores consideram que os requisitos referentes ao pertencimento étnico e à língua falada no domicílio podem ter influenciado na autodeclaração de pessoas residentes na área urbana, talvez por não possuírem nenhuma afinidade com seu povo de origem.

Importante registrar que, no Brasil, os povos indígenas foram forçados a esconder e a negar suas identidades étnicas como estratégia de sobrevivência e para amenizar o preconceito e a discriminação, devido às pressões políticas, econômicas e religiosas, ou por terem sido despojados de suas terras e estigmatizados em função dos seus costumes tradicionais (LUCIANO, 2006). Segundo o autor, desde a última década do século passado, os indígenas reassumem e recriam suas tradições, vivendo um processo denominado de “etnogênese” ou “reetinização”, que consiste na reafirmação de identidade de um grupo étnico, após ter deixado de assumir sua identidade, por circunstâncias históricas, recuperando e reintroduzindo aspectos relevantes de sua cultura e se afirmando como sujeitos políticos de direitos.

A saída da invisibilidade foi proporcionada pela busca de melhores condições de vida pelos indígenas e por incentivos governamentais associados às melhorias nas políticas públicas advindas da conquista de direitos e de cidadania por parte desses povos. A partir da análise empreendida por Luciano (2006), convém esclarecer o conceito de cidadania como categoria histórica e na perspectiva intercultural aqui proposta. A ideia de cidadania surge como fenômeno histórico na Revolução Francesa, quando os movimentos de reivindicação dos direitos tornaram-se uma luta política nacional. Por esse motivo, a sua construção atrela-se à relação das pessoas com seu Estado/Nação, tornando-se diferenciada conforme a dinâmica

13 Parte da etapa de mapeamento do campo de investigação da presente pesquisa, que consistiu na realização de

sociopolítica. O conceito clássico de cidadania tem como base a justiça social e desdobra-se em três principais direitos: civis, políticos e sociais, que implicam igualdade de direitos e deveres, participação e acesso aos bens e serviços (MARSHALL, 1967; CARVALHO, 2008). Esses direitos são norteados pelos princípios básicos e genéricos contidos nos Direitos Humanos, que abrangem o direito de ir e vir, liberdade de expressão e igualdade de todos perante a lei.

Na realidade brasileira, a conquista desses direitos por parte dos indígenas passou por longos períodos de luta e resistências devido ao histórico de extermínio, exclusão social e apagamento de suas identidades. A partir da Constituição de 1988 é que esse tema se torna, pelo menos juridicamente, uma realidade para esses povos, que passam a ser reconhecidos como sujeito de direitos e de pertença a uma determinada comunidade.

No que concerne à invisibilidade, o sociólogo brasileiro Jessé de Souza, ao discutir a construção da subcidadania, afirma que a desigualdade social é central no contexto seletivo da sociedade brasileira, assume uma natureza de segunda pele, ou seja, uma opacidade ou invisibilidade na dinâmica do cotidiano social de modo a tornar-se “naturalizada”. Souza (2000) usa o termo “subcidadania” ao invés de “exclusão social”, por entender que o primeiro pressupõe certa participação social, ainda que periférica ou subintegrada, e o segundo, uma falta total dessa participação. Esse autor discute o conceito “europeizado”, referindo-se a uma hierarquia valorativa que delineia uma linha divisória entre “gente” e “não gente”, “cidadão e “subcidadão”. No Brasil, esta linha divisória ou modernidade separatista constitui uma “gigantesca ralé” de inadaptados às demandas da vida produtiva e social modernas.

Ancorada nessa análise, noto que os indígenas ainda vivem hoje, apesar do fenômeno da etnogênese (LUCIANO, 2006), uma condição de subcidadãos. Apesar da luta desses povos pela sua afirmação étnica, o cidadão não indígena ainda mostra desconhecimento da história, costumes e tradições desses povos, permanecendo com uma visão exótica, monocultural, folclórica, estereotipada e preconceituosa. Portanto, no senso comum, esta condição de subcidadão é naturalizada, e, parafraseando Souza (2000), os indígenas parecem não gente, sendo invisíveis ou subprodutores em relação à demanda do mercado produtivo e subintegrados ao cotidiano social.

Essa invisibilidade é ainda mais evidente no processo de exclusão de oportunidades educacionais para esses povos. Esse fato é observado na ausência, ou deturpações, nos currículos escolares, de conteúdos sobre sua história, reforçando assim o silenciamento de suas identidades e conduzindo à formação de estereótipos (CANEN; OLIVEIRA, 2002). A invisibilidade é constatada também na predominância da visão integracionista ao perceber esses

povos como “súditos”, “transitórios”, cujo destino é integrar-se através da superação de sua identificação étnica (BRAND; CALDERONI, 2012).

Assim, os jovens indígenas brasileiros pertencentes às 230 etnias convivem, como a maioria dos jovens pobres, com limites no acesso à educação e poucas possibilidades de emprego digno e vulneráveis a todo tipo de violência, assistência precária à saúde, discriminação étnico-racial, sexual, homicídio, suicídio e abuso de drogas (POPOLO; LÓPEZ; ACUÑA, 2009). Quanto ao pertencimento à vida adulta, por sua pluralidade cultural, cada etnia estabelece perspectivas diferenciadas para suas transições, o que necessita ser considerado pelas políticas públicas.

Por essa razão, para promoção da cidadania, o consenso nas discussões sobre ações afirmativas nas universidades para esses povos é o de ter, como mediadores principais, os direitos humanos e o diálogo intercultural na elaboração de políticas públicas. Nessa perspectiva intercultural é que se cruzam os pertencimentos étnico e acadêmico dos jovens indígenas nas fronteiras de seu acesso e sua permanência na universidade. A inclusão desses jovens na educação superior tem como questão central o reconhecimento de suas etnias e valores culturais, como explica Baniwa (2006, p.5):

Não se trata de diferenciado como sinônimo de isolamento, mas, de espaço plural de convivência e de troca de experiências, conhecimentos e valores. […] Neste sentido, o grande desafio é articular espaços acadêmicos que criem relações simétricas de produção e reprodução de conhecimentos, tendo como base o fato de que tanto os povos indígenas quanto universidades são portadores e disseminadores de conhecimentos milenares, que de diferentes, poderiam ser complementares, contribuindo definitivamente para o avanço e enriquecimento do conhecimento humano, em vista de soluções para os grandes problemas da vida humana e do planeta.

O reconhecimento dos povos indígenas como titulares de direitos é um processo político e é, por definição, uma abordagem intercultural, pois diz respeito ao desenvolvimento com identidade, baseado em normas e princípios internacionais constantes na Declaração das Nações Unidas (POPOLO; LÓPEZ; ACUÑA, 2009). Na história do Brasil, a conquista de direitos pelos indígenas foi permeada por momentos sociopolíticos. No que se segue, destaco a participação dos movimentos indígenas para a construção de políticas e práticas interculturais, especialmente no campo da educação básica e superior. A seguir, enfoco aspectos históricos que permearam o acesso dos indígenas às universidades, buscando elucidar a inter-relação entre as rupturas e transições sociopolíticas e a emergência da intelectualidade indígena.

2.2 INDÍGENAS COMO “SUJEITOS DE DIREITOS”: RUPTURAS E TRANSIÇÕES

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