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O CORPUS EMPÍRICO COMO RECURSOS SIMBÓLICOS: PROCEDIMENTOS PARA ORGANIZAÇÃO, ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

A ESCRITA DA CULTURA: TRILHAS METODOLÓGICAS

DCV Medicina 06

6 O CORPUS EMPÍRICO COMO RECURSOS SIMBÓLICOS: PROCEDIMENTOS PARA ORGANIZAÇÃO, ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

6 O CORPUS EMPÍRICO COMO RECURSOS SIMBÓLICOS: PROCEDIMENTOS PARA ORGANIZAÇÃO, ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

O processo de organização, análise e interpretação dos dados na pesquisa qualitativa de abordagem etnográfica é permeado por três propósitos: descrever, analisar e interpretar, porém não há fronteira nítida entre eles, pois são sempre recorrentes no desenvolvimento da pesquisa (LEEDY; ORMORD, 2005; MINAYO, 2007). Por essa razão, neste capítulo, discorro sobre seus procedimentos sem separá-los em tópicos, uma vez que se entrelaçam em vários momentos da leitura dos dados.

Neste estudo, procurei descrever os dados através das situações, contextos e relacionamentos que emergiram das técnicas empregadas, interpretados pelos participantes como eventos significantes ou acontecimentos críticos extraídos dos seus itinerários acadêmicos. Para tanto, conforme a tradição etnográfica, foi requerido um trabalho sistemático e cuidadoso de organização do material colhido numa estrutura lógica, de acordo com os

instrumentos utilizados e o desenvolvimento de eixos analíticos que permitiam a interpretação dos significados das narrativas dos participantes. Segui as orientações de Laplantine (2004) sobre a escrita etnográfica que sugere agregar tempo, espaço e história, e, nessa trilha, quis narrar mais o processo do que o resultado dos fenômenos, contando o que vi e ensaiando exprimir o real na totalidade de suas aparências.

Desse modo, escolhi uma metodologia que me permitisse interpretar, de maneira clara e dinâmica, os significados culturais envolvidos no desenvolvimento psicossocial de jovens universitários, fazendo um recorte étnico e intercultural. Geertz (2001 a) preocupa-se com a relação entre mente e cultura, focando sua análise no campo nas significações. Assim, interpretar a cultura é compreender as estruturas de significados socialmente estabelecidos, na sua base social e material. Em outra obra, Geertz (2001 b, p.168), ao escrever sobre a Psicologia Cultural de Jeromer Bruner, explica que esta põe no centro das atenções “[...] o engajamento do indivíduo nos sistemas estabelecidos de significados compartilhados, nas crenças, valores e entendimentos dos que já estão instalados na sociedade em que o indivíduo é lançado”. Convergindo com esse autor, Geertz (2001 b) assegura que qualquer teoria que tenha a intenção de compreender a cultura, precisa treinar a sua atenção para a produção social dos sentidos.

O Método da Interpretação de Sentidos (MINAYO, 2007) orienta-se nos conceitos de

ethos e visão de mundo, cunhados por Geertz, para conduzir seus procedimentos de análise. O ethos é definido como os aspectos morais, valorativos e estéticos de uma dada cultura, e a visão

de mundo, como os aspectos cognitivos e existenciais. Nessa perspectiva, o corpus empírico, ou os dados produzidos na pesquisa são reflexos da cultura, o que implica situá-los como intencionais, convencionais, estruturais, referenciais e contextuais. Desse modo, articula as perspectivas hermenêutica (compreensão) e dialética (crítica) para interpretar e estabelecer relações entre os significados52. Esse método tenta caminhar “[...] além dos conteúdos de textos na direção de seus contextos e revelar as lógicas e as explicações mais abrangentes presentes numa determinada cultura acerca de um determinado tema” (MINAYO, 2007, p.105). A compreensão hermenêutica descreve a realidade interpretando, ou seja, apreendendo o processo que se realiza durante a visão e a enunciação: “Ver é apreender o sentido, mas um sentido autorizando diversas escritas, e, sobretudo, diversas leituras possíveis” (LAPLANTINE, 2004, p.107-109). Nessa perspectiva, a descrição etnográfica é hermenêutica, por provocar diferentes

52 A Hermenêutica-Dialética que embasa o método proposto pelo grupo de pesquisa coordenado por Minayo (2002;

2007) refere-se a um método interpretativo construído na área das Ciências Sociais e da Filosofia, que emergiu nos anos 60 do debate entre Habermas e Gadamer sobre hermenêutica (busca de compreensão de sentido que se dá na comunicação entre os seres humanos), e a dialética (o pensamento crítico). Os detalhes deste método e seus fundamentos não cabem aqui pelos propósitos deste relatório.

pontos de vista, ou, nos termos de Gadamer (MINAYO, 2007), uma “confrontação dialógica”, e por interpretar os dados durante todo o processo da leitura, transformando-os em recursos simbólicos.

Considero esses pressupostos adequados para descrever e interpretar os temas que emergem da memória semântica e da memória episódica nas narrativas dos participantes desta pesquisa, e por apresentar convergências com os procedimentos de análise pautados na psicologia cultural de orientação semiótica. Como já apontado, a entrevista episódica gera diferentes tipos de dados exigindo cuidadosa organização. Para isso, segui como primeiro passo as instruções de Shütze (apud JOVCHELOVITCH; BAUER, 2008): organizei os dados transcrevendo o material verbal das entrevistas na íntegra, mantendo-me fiel à ordem dos temas e dos episódios narrados, registrando características paralinguísticas como tom de voz e pausas, assim como expressões emocionais de cada um dos estudantes entrevistados. Registrei os dados colhidos antes e depois das gravações e minhas observações nas notas de campo como informações complementares, úteis para triangulação. Essa documentação detalhada da entrevista e do seu contexto faz parte de um dos indicadores de qualidade na adoção do método de entrevista episódica, segundo Flick (2008).

Durante e após as transcrições, realizei leitura atenta, detalhada e compreensiva do material colhido, buscando a lógica interna dos dados a partir de uma visão de conjunto (MACEDO, 2006; MINAYO, 2007). Em outra obra, Minayo (2002) chama esse procedimento de “leitura flutuante” que consiste num contato exaustivo com o material, levando o pesquisador a impregnar-se dos conteúdos para constituir o corpus. Na segunda leitura, agrupei e classifiquei os dados conforme as categorias previamente construídas (ver Quadro 1 no capítulo anterior), para depois apreender as particularidades de cada participante, tentando transformar os etnométodos e os signos apresentados pelos estudantes em unidades de significação. Aqui é importante salientar que usei um procedimento de categorização mista no qual o pesquisador previamente estabelece um conjunto de categorias, mas deixa a possibilidade de acrescentar algo segundo o conteúdo fornecido pelos participantes nas entrevistas (BARBILLON; LE ROY, 2012).

No processo de categorização, ou síntese das unidades de classificação, tratei cada entrevista de forma individualizada, a partir do pressuposto de que “[...] ao analisarmos e interpretarmos informações geradas por uma pesquisa qualitativa devemos caminhar tanto na direção do que é homogêneo quanto no que se diferencia dentro de um mesmo meio social” (MINAYO, 2007, p.80). Nesta etapa, elaborei uma matriz analítica com os marcadores identificados nas narrativas dos participantes, com base nas categorias previamente

estabelecidas nos objetivos específicos, como mostro no Apêndice J. Assim, pude organizar o texto com os temas focados, elaborando uma matriz para cada grupo temático e para cada participante, conforme o exemplo no Apêndice L.

As narrativas foram analisadas através de estudo de casos únicos, primeiro através de análise idiográfica dos participantes, centrada nos seus percursos individuais, para, em seguida, buscar generalizações a partir dessas singularidades. Destaco aqui duas características concernentes ao estudo de trajetórias do desenvolvimento, de acordo com as lentes teóricas aqui adotadas, que justificam esse tipo de análise. A primeira é a multilinearidade, quando as pessoas constroem trajetórias diferentes e muito pessoais, independentemente de sua classe social ou formação acadêmica. A segunda é a imprevisibilidade, pois as pessoas reagem aos eventos de forma imprevisível, dependendo de sua história, de suas escolhas e de sua imaginação ante as incertezas e ambiguidades do cotidiano. Somando-se a isso, conforme Zittoun (2008, p.169):

Os estudos de caso permitem a observação de situações complexas; que autorizam a teoria-questionamento, ampliando e construindo. Quando uma série de estudos de casos é reunida com base na sua equivalência teórica, uma teoria tem de ser transformada de modo a ser capaz de explicar esses casos, tanto em termos das suas especificidades como de suas semelhanças. Claro que, em algum grau de generalização, o modelo assim construído perde alguns aspectos de processos complexos.53

Ciente das limitações e riscos no processo de análise de dados e conclusão dos resultados no trabalho científico, analiso as narrativas dos estudantes entrevistados, cujos níveis de análise situam-se no plano microgenético e mesogenético com vistas a entender a dinâmica da construção dos significados nos processos bidirecionais da cultura, quais sejam, a internalização e a externalização. No plano microgenético do desenvolvimento, destaco os processos intrapessoais ao interpretar as experiências particulares de cada estudante, identificando nas suas narrativas os signos, modos de pensar, recursos simbólicos e posicionamentos identitários que compõem o campo de significações de suas atividades na universidade. Esse tipo de análise me permite observar se ocorreram novidades no desenvolvimento que possibilitaram a reconfiguração do Self. No plano mesogenético, destaco os processos interpessoais ao capturar, nas narrativas, as principais tensões ou ambivalências que fazem parte da interação entre o discurso do estudante e os cenários coletivo-culturais que configuram o meio universitário. Segundo Valsiner (2012), é nesse nível de organização da experiência mesogenética que ocorre a emergência de estruturas de relações entre eventos

microgenéticos e a ontogênese. Sua análise permite observar o seu impacto amortecedor ou potencial nos sistemas de valores que orientam a pessoa no seu curso de vida, assim como os

atratores ou outros significativos que foram transformados ou substituídos na escala

ontogenética.

No processo de análise, dividi em tópicos as seguintes etapas de apresentação e discussão dos dados: 1. Contextualização da entrevista; 2. Sumário da história dos participantes; estrutura das narrativas (conteúdos episódicos e semânticos, tempos verbais, expressões, valência emocional associada à narrativa, mudança de entonação, linguagem corporal); 3. Construções de mapas de significações para representar os eventos marcadores de trajetórias de rupturas-transições: pertencimentos socioculturais e recursos simbólicos envolvidos no Self Educacional. 4. Quadro síntese dos marcadores de rupturas-transições, pertencimentos socioculturais e reconfiguração do Self Educacional.

A construção de mapas de significações, extraídos da matriz analítica, após intensivas leituras e interpretações, foi um recurso gráfico de suma importância para visualização, análise e compreensão dos signos emergentes. Os mapas foram construídos de forma progressiva, em várias versões, desde as formas mais esquemáticas, a exemplo dos Apêndices M e N, até evoluir para aqueles que expressam, de forma mais refinada e específica, a síntese da interpretação dos dados, sua leitura pode ser entendida conforme a descrição a seguir:

Mapa 1 – Trajetórias de Acesso: Linhas Narrativas eventos marcadores de rupturas-

transições no acesso à universidade

O Mapa representa a linha narrativa das trajetórias de acesso à universidade, reconstruídas durante a entrevista. Compõe-se de signos extraídos do discurso do participante. As linhas são representadas por setas, e a leitura é feita da seguinte forma: seguindo as setas, por linha, da esquerda para direita e, depois, para esquerda. Os círculos em vermelho representam as rupturas ou pontos de bifurcação.

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