• Nenhum resultado encontrado

Para testar a obediência do hom em e a sua livre decisão de seguir seu Criador, Deus colocou a árvore do conhecim ento do bem e do mal no jardim do Éden, proibindo Adão e Eva de com er do seu fruto. Em si, a árvore não continha enzimas ou vitaminas mágicas; m eramente representava a possibilidade de o hom em rebelar-se contra a palavra de Deus. Ao com er do fruto, a humanidade passaria a “conhecer” pessoalmente (i.e., provaria experimentalmente) o lado oposto do bem que até então desfrutava. A totalidade da experiência — boa e ruim — entraria no repertório de suas sensações.

É necessário acrescentar outro fator antes que se possa entender a teologia da queda. A serpente (hannãhãs), aquela criatura que era “o mais astuto de todos os animais do campo” (Gn 3.11), também estava presente no jardim.

A astúcia e sutileza da serpente eram comparavelmente maiores do que as de qualquer animal do cam po.11

A maioria das pessoas sabe que o Novo Testamento identifica essa serpente com Satanás: “O Deus de paz em breve esmagará Satanás debaixo dos vossos pés” (Rm 16.20); “E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, chamada Diabo e Satanás, que engana todo o mundo” (Ap 12.9; 20.2); “A serpente enga­ nou Eva com a sua astúcia [...] porque o próprio Satanás se se disfarça de anjo de luz” (2Co 11.3,14). Poucos, porém, reconhecem que ele assim agiu no jardim do Éden.

A forma e o formato de Satanás não se devem deduzir de sua denominação de serpente, nem mesmo a palavra “dragão”. Não se pode determinar a m orfolo- gia dele pela maldição lançada sobre ele. Gênesis 3.14 meramente assevera que a derrota dele era tão certa que haveria de, simbolicamente, “andar sobre o seu ventre” (cf. Gn 49.17; Jó 20.14, 16; SI 140.3; Is 59.5; M q 7.17), o que aponta para a futura derrota plena de Satanás. Além disso, a sua situação desprezível e a sua abjeta humildade eram tão reais que lamberia o pó ou, conform e dizemos hoje,

11. A palavra hebraica m ikkôl pode ser entendida em Gênesis 3.1,14 como partitiva —“dentre todos os ani­ mais do campo” —, ou como comparativa — “do que todos os animais do campo”. Em 3.14, porém, todos concordam que a mesma construção deve ser comparativa. O contexto também requer a interpretação que damos. Ver Paul Haupt, “The Curse on the Serpent”, Journal ofB iblical Literature 35 (1916): 155-162.

“comeu pó”. Ambas as frases seguem a expressão figurativa do Antigo Oriente Próximo, representando seres humanos conquistados: ficavam prostrados, com o rosto em terra, defronte dos monarcas vitoriosos, muitas vezes formando nada mais do que o escabelo do trono real.12 Sem dúvida, os répteis não comem terra para se alimentar, mas Satanás provaria a derrota com o resultado do papel que desempenhou na tentação. Devemos, outrossim, observar com cuidado que Deus já criara “répteis”, conform e Gênesis 1.24, e os pronunciara “bons” (v. 25). Portanto, a maldição sobre Satanás não pode ter sido o motivo para que Deus criasse “animais que rastejam”, pronunciando sobre eles uma maldição por causa da ação de Satanás; esse modo de locom oção já existia na ordem criada, sem nenhuma implicação negativa.

A serpente consistentemente falava por conta própria no diálogo com a mulher; não era representante de outra pessoa. Estava ciente do que Deus dis­ sera; de fato, com seu próprio conhecim ento, sabia as possíveis alternativas e eventualidades. Para a mulher, era uma pessoa e não algum dos animais, porque não expressou surpresa quando ela lhe falou. No entanto, ficou ofendida com a limitação distorcida que a serpente atribuía a Deus e à liberdade restrita do primeiro casal. A serpente queria dizer que era grosseiramente injusto que Deus lhes negasse o privilégio de com er de alguma das árvores do jardim.

O engano conseguiu, porém, impor o seu logro, e a mulher sucumbiu à forte pressão e argumentação astuta do próprio tentador. Adão também desobe­ deceu, mas com menos motivos de pressão do que aquela que fora aplicada à mulher. Ele apenas comeu, conquanto tivesse grande vantagem por andar e falar no jardim há mais tempo do que Eva. Assim, a primeira tragédia do fracasso de três personalidades selecionadas pelo autor para reflexão teológica montou o cenário para uma nova palavra de bênção divina. Se haveria de vir alguma bênção de algum lugar, seria da parte de Deus.

Foi uma palavra profética de ju ízo e de libertação, dirigida à serpente (3.14-15), à m ulher (v. 16) e ao hom em (v. 17-19). Em cada caso, foi declarada a razão da m aldição: (1) Satanás ludibriou a m ulher; (2) a mulher escutou a serpente; e (3) o hom em escutou a m ulher — ninguém escutou a Deus! C om o conseqüência, a própria terra sentiria os efeitos da queda do hom em . Daria cardos e abrolhos, bem com o causaria o suor humano. Ao m esm o tempo, filhos nasceriam com dor, e o fato da m ulher “voltar-se” (fsü q â h) para seu m arido (e não “teu desejo”, com o querem quase todas as traduções)13, resultaria no fato dele “governar” (m ãsal) sobre ela. A serpente, por sua parte, enfrentaria a vergonha da derrota certa e final.14

12. Cf. as tabuinhas de Amarna, E.A. 100.36; Salmo 72.9; Isaías 49.23; Miquéias 7.17.

13. A tradução de fsúqâh como “desejo” remonta à Idade Média, quando uma nuança sexual foi introduzida pela primeira vez. Para mais informações sobre esta questão e assuntos correlatos, ver Walter C. Kaiser Jr., “Correcting Caricatures: The Biblical Teaching on Women”, Priscilla Papers 19, n. 2 (2005), 5-11.

Em meio ao canto fúnebre de pesar e repreensão, no entanto, surgiu a palavra surpreendente de esperança profética da parte de Deus (Gn 3.15). Uma hostili­ dade divinamente instigada — “porei inimizade entre ti [a serpente] e a mulher, entre a tua descendência e o descendente [semente] dela — chega ao clím ax com o surgimento triunfante de um “este” — sem dúvida um hom em representativo da semente da mulher. Ele desferiria um golpe m ortal na cabeça de Satanás, enquanto o máximo que a serpente poderia fazer, ou mesmo seria permitida a fazer, seria dar uma mordida no calcanhar desse descendente masculino.

Não se revelou de imediato quem seria esse descendente. Talvez Eva pensasse que fosse Caim. Deu a seu filho o nom e de Caim (hebr. qayin) dizendo: “adquiri (hebr. qaniti) um hom em, a saber, o Se n h o r” (4 .1 ) —esta é pelo m enos uma maneira de traduzir a frase enigm ática.15 Independentemente da interpretação dada à expressão, Eva equivocou-se, e o texto bíblico apenas registra os anseios dela, talvez indicando a clara compreensão que ela tivera de Gênesis 3 .1 5 —

tinha esperança de que Deus traria uma pessoa que lidaria com o pecado que ocasionara a queda.

Não obstante, Deus não ficara em silêncio. Falara, e a sua palavra profe­ tizava outro dia, quando a reviravolta total do golpe temporário da serpente surgiria com o resultado daquele que falara tão peremptoriamente. Além disso, a “bênção” do plano da promessa de Deus para a humanidade continuou de fato. Uma evidência daquela bênção se vê na genealogia dos dez hom ens mais significativos do período antediluviano registrados em Gênesis 5 .16 Eram “fru­ tíferos” e “m ultiplicaram-se”, assim com o Gênesis 5.2 reafirmou aquela palavra que disse: “Criou o hom em e a mulher, e os abençoou”. E, assim, tiveram “filhos e filhas”, com o mais um sinal da bênção de Deus.

A humanidade foi abençoada nos campos (4.1-2), e nos avanços culturais também (v. 17-22). Ademais, a seleção dos vinte homens que conduziram as duas genealogias até Abraão (aparentemente, foram listados apenas os mais im portan­ tes da linhagem e seqüência) marcou o progresso daquela “semente” prometida a Eva, bem com o os intermediários daquela bênção para os seus contemporâneos.

Entrementes, o tema de julgamento continuou a estragar o registro. Houve outra notícia de banim ento da presença imediata do Senhor. Assim com o Adão e Eva foram expulsos do jardim do Éden, em Gênesis 3.23-24, assim tam bém Caim, o assassino do seu irmão Abel, foi condenado a ser “fugitivo e errante pela terra” (4.12-16).

O sentimento da presença de Deus fora tão íntim o que, quando se traziam ofertas ao Senhor, era o próprio Senhor que em primeiro lugar inspecionava o homem (4.4-5) e, depois, a oferta. Deus atribuía mais valor à condição do cora­ ção do ofertante do que à oferta que este trazia. Assim aconteceu que ciúmes se

15. Tradução literal do hebraico, a mesma que Lutero usou ao interpretar o hebraico em sua Bíblia em alemão. 16. Sobre o emprego de números nas genealogias de Gênesis 5 e 11, ver o Excurso A, no fim deste capítulo.

irromperam na instituição da família, tendo como resultado o assassinato e a imposição necessária do tem a de julgamento.

A segunda palavra de promessa: