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Sessenta e nove vezes, o escritor de Deuteronômio repetiu a promessa que Israel viria um dia a “possuir” e “herdar” a terra que lhe fora prometida. Esporadicamente, vinculava explicitamente esta promessa à palavra que Abraão, Isaque e Jacó receberam (D t 1.8; 6.10,18; 7.8; 34.4). Assim, Israel era compelido a relacionar a conquista iminente de Canaã, sob a liderança de Josué, à promessa de Deus, e não a qualquer sentimento de superioridade nacional.

Tanto a terra de Canaã como o povo de Israel eram igualmente chamados “herança (

nalflâh

) de Javé” (ISm 26.19; 2Sm 21.3; lR s 8.36) ou sua “propriedade”

(<ahuzzâh,

Js 22.19;

yerussah,

2Cr 20.11). Desde o tempo em que Êxodo 19.5 chamou Israel de “propriedade exclusiva [peculiar]” (

fgüllâh

)6 de Javé, a nação veio a ser “povo próprio” de Deus no meio de todos os povos da terra (D t 7.6; 14.2; 26.18) e “povo de herança”

(‘am nalfllâh,

D t 9.26,29; 32.8-9; lR s 8.51,53; 2Rs 21.14).7 Assim, Israel tornou-se o povo prometido, e Canaã, a terra prometida.

Em Deuteronômio, a terra tornou-se o centro especial das atenções. Repetidas vezes, em cerca de vinte e cinco referências, a terra foi chamada de dádiva de Javé (1.20,25; 2.29; 3.20; 4.40; 5.16, passim). E esta dádiva foi a mesma terra já prometida aos “pais” (1.8,35; 6.10,18,23; 7.13; 8.1; 9.5; 10.11; 11.9,21; 19.8; 26.3,15; 28.11; 30.20; 31.7,20-21,23; 34.4). É difícil entender como von Rad confundiu a questão, dizendo que, já que a terra pertence a Javé, “é agora bem claro que esta noção é de uma ordem totalmente diferente daquela da promessa da terra aos patriarcas antigos”8. Sua linha de argumentação não se sustenta

6. A palavra “peculiar” é derivada do latim peculiares, que, por sua vez, deriva-se de peculium, termo técnico indicando os bens privados que uma criança ou um escravo tinha licença para possuir. Em Alalakh, o cognato

sikiltu é a “possessão preciosa” do deus. Devo esses dados a J. A. Thompson, Deuteronomy. Downers Grove: InterVarsity Press, 1975, p. 74-75, n. 1.

7. Cf. J. Hermann, “N alflâh and N ahal in the Old Testament”, Theological Dictionary o f the New Testament,

10 vol, ed. Gerhard Kittel, trad. G.W. Bromiley. Grand Rapids: Eerdmans, 1965, 3:769-776. Também Patrick D. Miller Jr., “The Gift of God: The Deuteronomic Theology of the Land”, Interpretation 22 (1969): 451-461. 8. Gerhard von Rad, “The Promised Land and Yahwehs Land in the Hexateuch”, The Problem o fth e Hexateuch and Other Essays, trad. E. W. Truemen Dicken. Nova Iorque: McGraw-Hill, 1966, p. 88; idem, Old Testament

diante das claras asserções do texto. Decerto, o fato de que Javé é o verdadeiro dono da terra não é sinal de sincretismo com aspectos da religião cananeia. Embora Baal pudesse ter sido considerado com o senhor da terra e doador de todas as bênçãos, na religião cananeia, Javé era Senhor do mundo inteiro — sua “palavra criadora”, para citar excelente expressão de von Rad, decidira aquela questão. Consequentemente, não havia dois pontos de vista quanto à herança da terra. Somente podia pertencer a Israel por ser, primeiramente, a terra de Javé, podendo ele dá-la a quem quisesse e por quanto tempo quisesse. Não começara Deuteronômio com a mesma observação a respeito de alguns dos habitantes anteriores da Transjordânia? Os emins, horeus e zanzumitas tinham sido desa- possados e destruídos pelo Senhor (2.9,12,21) e todas as terras deles tinham sido dadas por Deus a Moabe, Edom e Amom, assim com o Israel recebera Canaã de suas mãos. A comparação com Israel é feita naquele mesmo contexto: “assim como Israel fez à terra da sua herança, que o Se n h o rlhe deu” (2.12).

Concorda-se que Levítico 25.23 de fato declarou: “A terra é m inha [diz Javé]. Estais comigo com o estrangeiros e peregrinos”. Isto, porém, estava em desa­ cordo com as promessas feitas aos patriarcas, segundo as quais eles possuiriam a terra? Nunca na história de Israel ela possuiu totalmente a terra, terreno ou solo em nosso sentido da palavra; sempre lhe era concedida por Javé como feudo em que podia cultivar e viver por tanto tempo quanto servisse a ele. Esta terra, porém, como o mundo inteiro, pertencia ao Senhor — assim tam bém pertencia a abundância que nela havia e as pessoas que nela viviam. Foi essa a lição ensi­ nada ao faraó nas pragas repetidas (“Para que saibais que a terra é do Se n h o r”

[Êx 9.29]) e a Jó (“Tudo o que existe debaixo do céu é meu” [41.11]), e mais tarde em Salmo 24.1 e naquele grande com entário acerca da aliança davídica, Salmo 89.11.

Da mesma forma, von Rad se preocupava em demasia com o fato de que a palavra “herança”

(natilâh)

era persistentemente empregada para indicar terras tribais, mas em nenhum lugar no Hexateuco (os seis primeiros livros da Bíblia) a terra inteira foi chamada “herança” de Javé.9 Havia, contudo, exemplos do seu emprego com respeito à terra inteira. J. H erm ann10 notou que era a incum bên­ cia de Josué dirigir Israel no empreendimento de tom ar a terra inteira como “herança”, ou, na forma verbal, “recebê-la por herança” (D t 1.38; 3.28; 31.7; Js 1.6 — a form a hifil do verbo

nahal).

Naturalmente, a ênfase do momento recaía sobre cada tribo. Cada uma tinha que ser satisfeita separadamente e fazer seu papel para receber a sua “porção”

(hebel

— Js 17.5,14; 19.9), “parte”

(hêleq

— Dt 10.9; 12.21; 14.27; 18.1; Js 18.5,7,9; 19.9), ou “sorte” {gôrãl — Js 14.2; 15.11; 16.1; 17.1; 18.11; 19.1,10,17,24,32,40,51).

Theology. Londres: Oliver and Boyd, 1962,1:296-301 [publicado em português com o título Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: ASTE/Targumim, 2007].

9. Rad, “Promise Land”, p. 82,86. 10. Hermann, “N ahalâh and N a h a t, p. 771.

Antes disto, os patriarcas possuíram apenas uma pequena parte daquela terra, um local de sepultamento, com o prenda do cum primento futuro. Sendo assim, num sentido real, Canaã era “a terra das suas peregrinações” (Gn 17.8; 28.4; 36.7; 37.1; 47.1; Êx 6.4). Os patriarcas possuíam sobretudo a promessa, mas não a própria realidade total.

A terra era dádiva, mas Israel tinha de “possuí-la” (yãras); desse modo, o recebimento da dádiva tinha ação correspondente, uma ação militar. Ambas estas noções, conform e indicou M iller11, situavam-se lado a lado na expressão “na terra que eu [Javé] lhes dou para tomar posse” (D t 3.18; 5.31; 12.1; 15.4; 19.2,14; 25.19). A soberania divina e a responsabilidade humana eram ideias complementares mais do que pares antitéticos.

O que Deus deu somente poderia ser chamado de “boa terra” (1.25,35; 3.25; 4.21-22; 6.18; 8.7,10; 9.6; 11.17), assim com o sua obra na criação recebera sua palavra de aprovação. Era “terra que dá leite e mel” (11.9; 26.9,15; 27.3; 31.20).12 De todas as maneiras, a herança prometida era dádiva encantadora — per­ tencente a Javé e dada em arrendamento a Israel como cumprimento parcial de sua palavra de promessa. Nessa terra, Israel seria abençoado (15.4; 23.20; 28.8; 30.16), mas ênfase especial era dada ao abençoar o solo (28.8). Assim, a “bênção” de Deus mais uma vez veio a ser um dos conceitos vinculadores que uniam a teologia dos períodos anteriores com a da era pré-monárquica.