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Jó, Provérbios, Eclesiastes e Cânticos dos cânticos (cerca de 1070—931 a.C.)

Os estudiosos judeus e protestantes comumente consideram apenas os livros de Jó, Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos com o livros sapienciais, ao passo que a erudição católica acrescenta os livros extracanônicos de Eclesiástico (Ben Siraque) e a Sabedoria de Salomão. Os três grupos acrescentam vários salmos a estes quatro (ou seis) livros.

O livro de Jó

Conquanto o conteúdo literário do livro de Jó pareça pertencer à literatura de sabedoria do período sapiencial de Israel, de acordo com a m aioria dos estu­ diosos, encaixa-se m elhor no período patriarcal, conform e já defendemos no capítulo 2. Não obstante, o livro de Jó se apresenta na forma de diálogo poé­ tico que tam bém possui estrutura narrativa. Com o resultado dessa incomum combinação de gêneros literários, surge uma tensão entre a forma prosaica da introdução e do epílogo e a forma poética do corpo do livro.

Até as duas últimas décadas do século X X , era generalizada a classificação de Jó como literatura de sabedoria. Contudo, surgiu grande oposição afirmando que Jó era totalmente singular ou, então, pertencia ao gênero de lamento, forma estabelecida com mais certeza recentem ente.1 Segundo observação de Westermann, a questão do gênero não tem exercido influência decisiva na inter­ pretação do livro. A maior parte dos exegetas continua com a pressuposição de que Jó trata de um problema — a questão do sofrimento que deixa perplexo quase todos os mortais, podendo ser resumida nisto: “com o reconciliar o sofri­ mento de um justo com a existência de um Deus justo?”.

1. Claus W esterm ann, The Structure o fth e B ook o fjo b , trad. Charles A. Muenchow. Filadélfia: Fortress, 1981, p. 1, n. 1, e p. 13-14.

Em problema semelhante envolvendo forma e conteúdo, os critérios para distinguir Salmos Sapienciais podem ser divididos em duas categorias: formais (estilo literário) e temáticos (conteúdo). Fazendo uso dos estudos de Roland E. Murphy2, Sigmund Mowinckel3, e R. B. Y. Scott4, pode-se agrupar os seguintes estilos distintos dos Salmos Sapienciais: (1) estrutura alfabética, tal como nos salmos acrósticos; (2) ditos numéricos (p. ex., “três, sim, quatro”); (3) “bem- -aventuranças” (’asrê); (4) ditos daquilo que é “m elhor”; (5) comparações, admoestações; (6) discursos de um pai para seu filho; (7) o emprego de vocabu­ lário e fraseologia sapiencial; e (8) o emprego de provérbios, símiles, perguntas retóricas, e palavras tais como “escuta-me”. Exemplos de temas sapienciais são: (1) o problema da retribuição; (2) a divisão entre os justos e os ímpios; (3) exor­ tações à confiança pessoal no Senhor; (4) o tem or do Senhor; e (5) a meditação na lei escrita de Deus com o fonte de deleite.

Empregando tanto o critério formal como o temático, facilmente se pode classificar os seguintes salmos com o salmos de sabedoria: 1; 37; 49 e 112. A estes, pode-se acrescentar 32; 34; 111; 127; 128 e 133. Considerando a meditação na lei de Deus com o critério, pode-se incluir os Salmos 119 e 19.7-14 também. Talvez o Salmo 78, com seu convite: “Meu povo, escutai m eu ensino” e suas formas de parábola (mãsãl) e enigma (hidôt) (v. 2), tam bém se qualifique para a classificação entre os Salmos Sapienciais. Concluím os, portanto, que os Salmos 1; 19b; 32; 34; 37; 49; 78; 111; 112; 119; 127; 128 e 133 pertencem à categoria sapiencial junto aos quatro livros de sabedoria.

Além de problemas relacionados a forma e conteúdo, surgem questões liga­ das a possíveis fontes do Antigo O riente para parte do material sapiencial da Bíblia. No decurso dos últimos sessenta anos, a maior parte das pesquisas acerca da literatura sapiencial trata do relacionamento entre os escritos sapienciais de Israel e os dos seus vizinhos do Egito e da Mesopotâmia. Houve, no entanto, outro avanço salutar nas pesquisas. Algumas pessoas se lançaram à tarefa de descobrir as conexões entre a sabedoria e a criação5, entre a sabedoria e Deuteronôm io6, entre a sabedoria (ou sapiência) e os profetas7.

2. Roland E. Murphy, “Psalms” Jerom e B iÚ kal Commentary, ed. Raymond E. Brown, Joseph A. Fitzmyer e Roland E. Murphy. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1968, p. 574 [publicado em português com o título O

Novo Comentário Bíblico São Jerônim o.Santo André: Academia Cristã, 2007]; idem, “A Consideration o f the Classification o f ‘W isdom Psalms”’, Vetus Testamentum Supplement9 (1963): 156-167.

3. Sigmund M owinckel, “Psalms and W isdom”, Vetus Testamentum Supplement3 (1955): 204-224. 4. R. B. Y. Scott, The Way o f Wisdom.Nova Iorque: M acm illan Co., 1971, p. 193-201.

5. W alther Zim m erli, “The Place and Lim it o f W isdom in the Framework o f the Old Testam ent Theology”,

Scottish Journal o f Theology17 (1964): 146-158.

6. M oshe Weinfeld, “W isdom Substrata in D euteronom y and Deuteronom ic Literature”, Deuteronomy and the Deuteronomic School.Oxford: Clarendon Press, 1972, p. 244-274; ver tam bém Erhard Gerstenberger, “Covenant and Com m andm ent”, Journal ofB iblical Literature84 (1965): 38-51, esp. 48-51.

A literatura de sabedoria era, de fato, o recipiente dos legados teológicos dos tempos m osaicos e da história profética dos profetas anteriores. O melhor argumento em prol de uma clara conexão entre essas eras (em bora em ordem de dependência inversa à que sustentamos aqui) foi o estudo feito por Moshe Weinfeld sobre “W isdom Substrata in Deuteronomy and Deuteronom ic Literature” [“Os Substratos Sapienciais em .Deuteronôm io e na Literatura Deuteronômica”]8.

Segundo Weinfeld, a presença de líderes e m agistrados que eram “hom ens capazes, tem entes a Deus, hom ens confiáveis e que repudiem a desonestidade” (Êx 18.21), “hom ens sábios, inteligentes e experientes” (D t 1.13-17; cf. Nm 11.11-30) correspondia bem com as qualidades que se exigiam dos líderes na literatura sapiencial. Assim, em Provérbios 8.15-16, é pela sabedoria que “reinam os reis, e os príncipes decretam o que é justo [...] governam os prín­ cipes e os nobres, sim, todos os juizes da terra”. W einfeld notou que até a fra­ seologia achada na nom eação dos juizes em D euteronôm io 1.9-18; 16.18-20, a saber: “não fareis discrim inação em julgam entos”, vê-se outra vez apenas em Provérbios 24.23; 28.21.

Alguns dos principais paralelismos alistados por W einberg entre D eute­ ronôm io e a literatura de sabedoria foram:

1. “Não acrescentareis nada à palavra que ele vos ordena, nem diminuireis nada” (D t 4.2; cf. 12.32).

“Toda palavra de Deus é pura [...] Nada acrescentes às suas palavras” (Pv 30.5-6).

2. “Não removerás os marcos do teu próximo” (D t 19.14; cf. 27.17).

“N ão rem ovas os m arcos an tigos que teus pais fixaram ” (Pv 2 2 .2 8 ; cf. 23.10).

3. “Não terás pesos diferentes (’eben w ã’ãben) na tua bolsa [...] Não terás dois efas ( ’cpâh ufêpâh) na tua casa [...] Terás peso exato e justo (’eben selêmâh)

[...] Porque todo aquele que faz essas coisas, que pratica a injustiça, é uma abominação para o Se n h o r9, teu Deus” (D t 2 5 .1 3 - 1 6 ).

8. Weinfeld, “W isdom Substrata”, p. 244-245. Segundo nossa ordem, Deuteronôm io é claram ente um docu­ mento do segundo m ilênio que exibe, em sua totalidade, o m esm o esboço mostrado pela Gattungliterária dos tratados heteus de vassalagem. Cf. M eredith Kline, Treatyo f Great King.Grand Rapids: Eerdmans, 1962; Kenneth A. Kitchen, Ancient Orient and the Old Testament.Downers Grove: InterVarsity Press, 1964; R. K. Harrison, Introductionto the Old Testament.Grand Rapids: Eerdmans, 1969. Outros estudiosos que acredi­ tavam que Deuteronôm io influenciara a sapiência bíblica são alistados por Weinfeld, “W isdom Substrata”, p. 260, n. 4. Nomeia, entre outros, A. Robert, “Les attaches littéraires bibliques de Prov. i-ix ”, Revue Biblique43 (1934): 42-68, 172-204, 374-384; 44 (1935): 344-365, 502-525. O. E. Oesterley, Wisdomo f Egypt and the Old Testament.Londres: Society for Prom oting Christian Knowledge, 1927, p. 76 ss.

9. Conform e Weinfeld, “W isdom Substrata”, p. 268, a expressão “abom inação diante do Senhor” aparece, quatro vezes em Ensino de Am enem ope(14.2-3; 13.15-16; 15.20-21; 18.21— 19.1). Em D euteronôm io, aparece em 7.25-26; 12.31; 17.1; 18.9— 12; 22.5; 23.18; 24.4; 25.13-16; 27.15; e, em Provérbios, nos versículos 3.32; 11.1,20; 12.22; 15.8-9,26; 16.5; 17.15; 20.10,23.

“O Se n h o r odeia pesos fraudulentos ( ’eben w ã’ãben)” (Pv 20.10,23); “mas o peso justo (’eben selêmâh) é o seu prazer” (11.1).

4 . “Quando fizeres algum voto ao Se n h o r, teu Deus, não demorarás para cumpri-lo” (Dt 23.21-23).

“Não te precipites com a boca [...] Quando fizeres algum voto a Deus, não demores a cumpri-lo” (Ec 5.1-5).

5. “Não fareis discriminação em julgamentos” (D t 1.17; cf. 16.19).

“Julgar fazendo discriminação de pessoas não é bom” (Pv 24.23; cf. 28.21). 6. “Seguirás a justiça, somente a justiça, para que vivas” (D t 16.20).

“Quem segue a justiça e a bondade achará a vida” (Pv 21.21; cf. 10.2; 11.4,19; 12.28; 16.31).

Estes exemplos são, naturalmente, apenas o começo. Bastam , porém, para ilustrar o fato de que a sabedoria não era completamente separada, quanto aos conceitos e quanto à teologia, de materiais que, segundo nosso juízo, são ante­ riores aos tempos sapienciais. A influência da sabedoria tam bém se estendeu além de seus dias até à era dos profetas, tanto os profetas anteriores (Josué, Juizes, Samuel, Reis) quanto os profetas posteriores (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze).

Independentem ente de até onde ou em que direção aquela influência se espalhou, a pergunta-chave é: “Q ual rubrica teológica ou term o especial englobava a prom essa e a lei ju ntam ente com a sabedoria?” C rem os que tal con ceito fosse “o tem or de Deus/do Senh or”. Este con ceito se achará reite­ radas vezes em Provérbios, frequentem ente em Eclesiastes, e às vezes nos salm os de sabedoria.