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A Psicologia e o projeto de um Brasil moderno: entre grifos e retoques

PARTE I – PSICOLOGIA EM MOVIMENTO

2 FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO EM MOVIMENTO: ENTRE RABISCOS, TRAÇOS E DELINEAMENTOS DE UMA PROFISSÃO

2.2 A Psicologia e o projeto de um Brasil moderno: entre grifos e retoques

A Psicologia brasileira não está imune ao panorama internacional delineado na seção anterior. De fato, tais traços serão importantes ferramentas para a sociedade brasileira e seus projetos de modernização. Vinculam-se a atuações acríticas, a-históricas e comprometidas com a conservação do status quo social. Bock (2009b) analisa a tradição da Psicologia no Brasil, grifando seu compromisso com os interesses das elites. A autora desvela que a Psicologia “tem se constituído como uma ciência e uma profissão para o controle, a

categorização e a diferenciação. Poucas têm sido as contribuições da Psicologia para a transformação das condições de vida, tão desiguais em nosso país” (BOCK, 2009b, p. 16).

Desde o período da colonização brasileira por Portugal, Bock (2009b) identifica a presença desse compromisso da Psicologia como ciência e, posteriormente, como profissão. Em seu argumento, ressalta que a Psicologia instituiu-se na sociedade moderna como uma ciência e uma profissão conservadoras, uma vez que não se deteve na construção ou debate de um projeto de transformação social.

Ressalta-se que a Psicologia presente no Brasil colonial é representada por ideias psicológicas, não compondo um corpo de saberes. Pereira e Pereira Neto (2003) expõem que, apesar do interesse crescente da elite brasileira pela produção e aplicação dos saberes psicológicos, até o início do século XIX, o Brasil não possuía uma Psicologia propriamente, considerando uma terminologia pertinente, não havia um conhecimento definido e uma prática reconhecida.

Observa-se aqui a relação entre as ideias psicológicas e as demandas que permearam a colonização brasileira (BOCK, 2009b; ANTUNES, 2008). Conforme Antunes (2008, p. 470):

É importante destacar que a maioria desses escritos estava comprometida com os interesses metropolitanos e expressava as mazelas de sua dominação na colônia. Entretanto, há contradições, sendo que algumas dessas obras assumiram posições que se opunham aos ideais da metrópole, como a defesa da educação feminina, entre outras.

O século XIX aloca definitivamente a Psicologia no projeto brasileiro de sociedade moderna. Massimi (2007) apresenta a sociedade brasileira do século XIX, destacando o desafio de modernização de uma nação com um projeto de unidade política, social e cultural. Nesse desafio, a saúde, a educação, a religião e a moral e outras dimensões da vida dos cidadãos passam a ser controladas pelo aparelho estatal e, ao mesmo tempo, ocorre uma progressiva estruturação dos papéis sociais desses cidadãos. Assim como Figueiredo e Santi (2006) e Ferreira (2007) atentam para a presença de um Regime Disciplinar que atenda às demandas sociais, Massimi (2007) enfatiza a necessidade de consolidar um conjunto de saberes que forneça bases para uma concepção de homem e de sociedade funcional a esse objetivo.

Bock (2009b) acrescenta ainda que, nesse período, deu-se a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, o que demandou serviços até então inexistentes e propiciou o desenvolvimento

rápido do Rio de Janeiro. No entanto, a cidade carioca cresceu de forma não planejada e estruturada, uma vez que não havia infraestrutura para abarcar tal crescimento, o que resultou em doenças, miséria, prostituição e loucura. Impõem-se, então, o desenvolvimento de uma perspectiva de saneamento e de higienização, compreendida aqui pelo viés moral e material (BOCK, 2009b).

Embora ainda não fosse uma disciplina científica autônoma, entre o século XIX e início do século XX, a Psicologia começou a ocupar um espaço próprio como campo de conhecimentos e práticas. Mesmo que vinculadas a outras disciplinas, as ideias psicológicas estão no ensino superior - nas faculdades de Direito e Medicina - nos seminários episcopais e no ensino médio, bem como nas escolas normais. Também são desse período os primeiros laboratórios de Psicologia experimental, os quais acompanham o movimento de criação no Brasil de uma ciência do homem em acordo com métodos e objetivos presentes no cenário cultural e social internacional (MASSIMI, 2007).

Desse modo, segundo Bock (2009b), as ideias psicológicas, articuladas com as demandas dessa sociedade brasileira rumo à modernização, explicitam seu compromisso ideológico e conservador. Ao lado da medicina e da educação, essas ideias forneceram as bases para a higienização moral da sociedade, visando à construção de uma sociedade sem desordens e desvios.

Patto (2009) sublinha o enraizamento sociopolítico da Psicologia ao destacar sua relação com a Pedagogia no Brasil da Primeira República (1889-1930), que, dentre outras, apresentou condições de responder aos anseios da nova república por ordem e progresso. De fato, ressalva-se que a proclamação da república não acarretou em radicais transformações econômicas, sociais e políticas. Sem a participação do povo, tratou-se muito mais de uma cisão da classe dominante com o Império devido às mudanças econômicas desencadeadas em meados século XIX (PATTO, 2008, 2009).

Acompanhamos Patto (2008, 2009) na ponderação de que, diferente das sutilezas das instituições disciplinares europeias identificadas por Foucault, a sociedade brasileira não abandonou práticas de violência física em repressão àqueles que divergiam da ordem social. A barbárie proporcionada pela elite manteve-se, todavia, é nesse período que a educação escolar começou a ganhar relevo como via para a formação de cidadãos exemplares dentro do que poderia ser considerado normal.

normal é aquele que trabalha e obedece, não protesta ou questiona. Isto é, normal é quem participa como cidadão da manutenção da ordem, quem contribui para o progresso do país. E quem se desvia desse padrão? A ciência – aqui incluída a recém-nascida Psicologia – contribui para explicar a anormalidade do desviante, sua patologia e formas de tratá-lo.

Os saberes psicológicos adentram nas escolas, nas fábricas e, com seu instrumental, contribuem na avaliação e seleção dos sujeitos, conforme as aptidões aferidas. Quem deve estar nos bancos escolares? Quem deve desempenhar um trabalho intelectual ou um trabalho braçal? De acordo com Mancebo (2008), a Psicologia chega ao Brasil com a finalidade de selecionar e recrutar, racionalmente, trabalhadores para cargos diversos, em consonância com uma avaliação considerada objetiva de suas aptidões e habilidades.

Nesse sentido, Patto (2009) considera que a Psicologia vem justificar, pela via da ciência, que as diferenças entre os sujeitos devem-se a fatores psicológicos ou biológicos, ocultando determinações sociais e econômicas. Em suas palavras: “[…] a invenção da Psicologia acompanha uma necessidade historicamente posta de justificação da desigualdade estrutural e de controle do corpo social com procedimentos compatíveis com a ideologia liberal e a serviço dos que querem reproduzir a ordenação social em vigor” (PATTO, 2009, p. 33).

O que se evidencia é que a perspectiva de modernização do país não faz desta um projeto atrelado à transformação social, ao rompimento da estrutura de opressão social que marca a sociedade brasileira. As contribuições das ideias psicológicas nesse processo seguem um caminho de naturalização já conhecido:

As ideias psicológicas falam da moral como característica natural do homem, que a perde quando se degenera. A moralidade naturalizada falava de valores que eram dominantes na sociedade europeia e que correspondem à moral dos grupos dominantes. Eram valores distantes das possibilidades das camadas trabalhadoras e escravas da sociedade brasileira (BOCK, 2009b, p. 17-18).

Nesse excerto, Bock (2009b) sublinha o que já discutimos: a vinculação da Psicologia a esse caminho deve-se principalmente à adoção de uma perspectiva naturalizante de ser humano e de desenvolvimento psíquico, com pouca atenção às condições concretas de constituição humana. Como vimos, essa posição desdobra-se na produção ideológica da Psicologia (BOCK, 2009b). Ao adotar uma visão naturalizada e universal de ser humano, a Psicologia contribuiu no ocultamento das desigualdades sociais, visto que as condições

sociais e históricas de produção da vida humana eram desconsideradas.

Esse é o cenário do início do século XX: tem-se uma Psicologia considerada como ciência autônoma, consolidando-se no Brasil (BOCK, 2009b; ANTUNES, 2011) e já fortemente implicada com demandas de conservação de uma ordem hegemônica que massacra e controla os cidadãos, especialmente aqueles das camadas populares. É nesse período, que será abordado a seguir, que observamos o princípio de seu processo de profissionalização, a constituição de sua atuação na educação, no trabalho e na clínica, consideradas como as áreas tradicionais da Psicologia, assim como assiste-se às primeiras experiências formativas nesse campo e à posterior regulamentação dessa profissão e de sua formação.

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