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O projeto de Psicologia científica: os primeiros traços para a constituição das

PARTE I – PSICOLOGIA EM MOVIMENTO

2 FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO EM MOVIMENTO: ENTRE RABISCOS, TRAÇOS E DELINEAMENTOS DE UMA PROFISSÃO

2.1 O projeto de Psicologia científica: os primeiros traços para a constituição das

representações sociais sobre o psicólogo

Que representações sociais suscita o psicólogo e a Psicologia? Que desenhos elas revelariam dessa profissão? Como se vinculariam com sua história? E, sobretudo, que interlocuções são possíveis entre essas representações e a formação desse profissional? Quando nos deparamos com estudos em representações sociais, observamos uma frequente representação sobre o psicólogo como um profissional de ajuda, orientador de comportamentos, focado na solução de problemas. É o caso do trabalho de Lahm e Boeckel (2008), que investigou as representações sociais dos usuários de uma clínica-escola de Taquara/RS sobre o psicólogo. O que as autoras identificaram é que essas representações estão relacionadas ao ato de ajudar, compreender, conversar e orientar. As autoras verificaram que a atuação do psicólogo vincula-se a atendimentos individuais com enfoque curativo, o que contribui para a consolidação de uma representação social marcada pelo caráter terapêutico/clínico, encobrindo a visão de uma Psicologia que atue em diferentes âmbitos como o institucional e o comunitário. Eis aqui uma imagem frequentemente sublinhada na profissão e que será por nós retomada em outros momentos.

Pesquisas com estudantes de Psicologia também revelam semelhanças com essas representações sociais. É o caso de Saccol et al. (2011), que realizaram um estudo com discentes de Psicologia de uma instituição de ensino privada da região sudoeste do Paraná e constataram que a representação de Psicologia está relacionada ao bem-estar interior e à orientação das emoções e dos comportamentos. O que isso nos revela? Dentre os traços que podem contribuir para explicar tais produções de representações sociais estão aqueles que grifam uma atuação tradicional em Psicologia, em que predomina a vertente clínica individualizada. Decerto, um caminho pertinente a seguir é essa trilha, mas há que se considerar que esse caminho não estava pronto, já aberto; ele foi se constituindo à medida que a Psicologia surgia como ciência e profissão e que respondia às demandas da sociedade.

realizar uma abordagem crítica da história da Psicologia, considerando elementos políticos e sociais que apontam na construção de como ela é representada e praticada. Patto (2009) orienta-nos nessa iniciativa ao provocar, em um artigo que analisa a relação entre Psicologia e Educação, questionamentos sobre historiografia da Psicologia e as vinculações desta com as relações de poder que vigoram em nossa sociedade. Para a autora, tal história não pode estar acima das condições políticas, sociais e econômicas do lugar em que é produzida.

Nesses termos, compreende-se que se tomarmos o fato de a Psicologia científica ter surgido a partir da inauguração do laboratório de Leipzig na Alemanha, em 1879, sem maiores reflexões sobre as condições que produziram essa situação, estaremos incorrendo na tomada da história como mera sucessão e descrição de acontecimentos. Considerada de forma descontextualizada e acrítica, tal inauguração não nos permite enxergar os determinantes políticos, sociais e culturais dessa trajetória e, de modo mais relevante, dificulta a visão de que a história movimenta-se e, neste movimento, intercruzam-se elementos que contribuem para a Psicologia atual, seus desafios e tensionamentos, os quais reverberam na formação.

Assim, o lugar-comum da iniciação da Psicologia como ciência independente, no laboratório alemão conduzido por Wundt, cede espaço para que analisemos as condições que atravessaram essa inauguração. Nessas reflexões, amparamo-nos, a princípio, em Ferreira (2007) quando afirma que é quase consenso entre pesquisadores o estabelecimento do século XIX como marco de surgimento da disciplina da Psicologia, porém, para além das inaugurações oficiais, há que se buscar experiências, práticas e saberes que condicionaram essa fundação. Nessa perspectiva, dentre as hipóteses de trabalho levantadas por Ferreira (2007), segue-se o entendimento de que, na nossa modernidade ocidental, irromperam uma diversidade de experiências e práticas que, emaranhadas, conduziram a uma multiplicidade de orientações no campo atual da Psicologia.

Essas experiências estão fortemente atreladas ao cenário socioeconômico que caracteriza a Modernidade e que sinaliza os rumos do capitalismo. Bock (2009a) explica que, nesse período, há a ascensão da burguesia moderna como classe social, o que traz transformações importantes para o surgimento da ciência moderna e da Psicologia. A autora aponta a ênfase na razão humana, na liberdade do ser humano, na possibilidade de transformação do mundo real e o destaque no homem em si, como condições fundamentais para a constituição de uma ciência racional, cuja intenção era desvendar as leis da natureza e construir conhecimentos pelas vias da experiência e da razão.

Ora, a experiência de uma vida íntima e a ênfase no indivíduo livre são marcas da Modernidade, configurando-se como eixos para a constituição da Psicologia científica e traçam as linhas que demarcarão o desenho de suas representações sociais. Figueiredo e Santi (2006) nomeiam de experiência de subjetividade privatizada uma das precondições para o aparecimento de tal ciência no século XIX. Essa subjetividade propiciou que a humanidade se reconhecesse como livre e independente de uma coletividade, características pertinentes à Modernidade.

Os autores lembram que nossa experiência como indivíduos autônomos não é natural. Na verdade, essa experiência é produto das múltiplas transformações que a humanidade atravessou na era Moderna (FIGUEIREDO; SANTI, 2006). Nesse período, o homem desprendeu-se da autoridade divina e dos limites dos feudos: “Não podendo esperar pelo conselho de uma figura de autoridade, o homem viu-se obrigado a escolher seus caminhos e arcar com as conseqüências [sic] de suas opções. Nesse contexto houve uma valorização cada vez maior do 'Homem', que passou a ser pensado como centro do mundo” (FIGUEIREDO; SANTI, 2006, p. 24).

Acrescentamos Ferreira (2007), que afirma que essas experiências dizem respeito à constituição de um domínio de interioridade reflexiva – a subjetividade -, a separação desta do corpo e a produção da individualidade, sendo um campo de singularização valorativa em um espaço coletivo.

No que tange à constituição de um plano de interioridade reflexiva, Ferreira (2007) pontua que, em outras épocas, como a Antiguidade pagã, tal experiência não fazia parte da vida dos indivíduos. Ele pondera que há entre os gregos uma interioridade, mas esta difere da noção atual: trata-se de uma experiência que não era individualizada, nem reflexiva ou ancorada em um eu. É, mais precisamente, uma interioridade universal: “Mais uma alma em mim do que a minha alma” (FERREIRA, 2007, p. 16).

Salienta-se que antes de chegarmos à Modernidade, a ética cristã, presente a partir do século II, iniciou a invenção de uma interioridade individualizada. Todavia, naquele período, a interioridade associava-se à purificação da alma, à religião e comunhão com Deus (FERREIRA, 2007). Aqui reside, pois, uma diferença básica em relação à era Moderna: o homem tornou-se o centro e a medida da verdade, o que abriu espaço para o desenvolvimento das ciências modernas. Conforme Ferreira (2007, p. 18-19), “Se a experiência de constituição de uma interioridade na Antiguidade cristã visa distinguir a presença do bem e do mal em nós,

a partir do século XVII o exame da interioridade tem como meta o acesso à verdade e a fuga das ilusões [...]”.

Nessa direção, o autor explica que a verdade e o conhecimento não eram mais subservientes aos desígnios divinos, sendo atrelados à razão ou aos sentidos humanos. Estas são bases relevantes para o desenvolvimento do pensamento moderno que, dividido entre racionalistas e empiristas, vai delineando e fortalecendo a ideia de subjetividade humana até chegarmos ao século XIX com o projeto de uma Psicologia como ciência objetiva, nos moldes das ciências naturais. E eis que estamos quase retornando ao laboratório de Wundt...

Antes, porém, é preciso enfocar o processo de constituição da individualidade, característica muito cara do que ainda se insiste como traço do desenho da Psicologia, concebida no contraponto à sociedade. Ferreira (2007) remete ao processo de constituição de indivíduos como unidades políticas destacadas e diferenciadas da sociedade. Explica que a individualização está associada ao fato dos indivíduos experienciarem que são tanto fonte como alvo de poderes. Isto significa que as pessoas sentem-se singulares, apartadas do conjunto social.

Essa primeira experiência de individualização, conforme Ferreira (2007), dá conta do nominado indivíduo soberano, posto que é universal, abstrato, sendo fonte de lei e, concomitantemente, por ela regulado. Embora seja o início da constituição de uma experiência de individualização, Ferreira (2007) recorda que esse sujeito ainda não é alvo de interesse de estudos. Como Figueiredo e Santi (2006) observam, para isso ocorrer, são necessárias outras precondições socioculturais.

Entre os séculos XVIII e XIX, despontam, na cultura ocidental, a ideologia liberal e o Romantismo, que colocam em relevo o lema da liberdade individual, da igualdade e das diferenças entre os homens (FIGUEIREDO; SANTI, 2006). Essas ideias, tão caras ao capitalismo, fortaleceram a experiência de individualização que se desdobrou na emergência da Psicologia.

Em sua leitura sócio-histórica, Bock (2009a) contribui para visualizarmos as implicações desses movimentos para a constituição da Psicologia como ciência, assim como a necessidade de superarmos as visões de homem e de fenômeno psicológico construídas nesse contexto. No bojo das ideias liberais, estão a valorização do indivíduo, considerado livre, igual, fraterno, dotado de uma natureza humana, com direitos à propriedade privada, à segurança, etc (BOCK, 2009a). O individualismo, peça importante para o desenvolvimento do

capitalismo, vai ganhando espaço, diminuindo o valor da vida coletiva. É o predomínio da privacidade em detrimento da coletividade e a urgência de uma ciência que investigasse esse indivíduo. Em síntese,

A noção do eu e a individualização nascem e se desenvolvem com a história do capitalismo. A idéia [sic] de um mundo “interno” aos sujeitos, da existência de componentes individuais, singulares, pessoais, privados toma força, permitindo que se desenvolva um sentimento de eu. A possibilidade de uma ciência que estuda esse sentimento e esse fenômeno também é resultado desse processo histórico. A Psicologia se torna necessária (BOCK, 2009a, p. 19).

Avançando, Figueiredo e Santi (2006) destacam a crise da subjetividade privatizada como uma das precondições para o surgimento da Psicologia científica. Conforme os autores, a emergência dessa subjetividade não é suficiente para uma ciência psicológica, é preciso que ela entre em crise. E esta surge, em meados do século XVIII e XIX, quando se descobre a ilusão que são as ideias de liberdade e de diferença. É o questionamento do Liberalismo e do Romantismo, pois não somos tão livres e nossos interesses individuais não resultam em uma fraternidade, mas em disputas e tensionamentos.

De acordo com Figueiredo e Santi (2006), o século XIX é marcado por conflitos entre trabalhadores e patrões, com as reivindicações operárias organizadas em sindicatos; o Estado, visando amainar esses conflitos e restabelecer a ordem social, cresce na administração pública, na burocracia, nas forças armadas; cresce também a grande indústria, com produção mecanizada e padronizada e se intensifica o consumo de massa. Daí surge a provocação dos autores: diante disso, como fica a ideia de que cada um é único e diferente? Ao que respondem:

Quando os homens passam pelas experiências de uma subjetividade privatizada e ao mesmo tempo percebem que não são tão livres e tão singulares quanto imaginavam, ficam perplexos. Põem-se a pensar acerca das causas e do significado de tudo que fazem e pensam sobre eles mesmos. O tempos estão ficando maduros para uma psicologia científica (FIGUEIREDO; SANTI, 2006, p. 48-49).

Os autores prosseguem, atentando para as necessidades do Estado no tocante à previsão e ao controle desse sujeito. É preciso saber lidar com ele, educá-lo, treiná-lo, discipliná-lo, normatizá-lo conforme a ordem social hegemônica. Surgem, desse modo,

demandas por projetos científicos, a serviço desse Regime Disciplinar, que produzam conhecimentos sobre o indivíduo, bem como técnicas de controle.

Em consonância com Ferreira (2007), supera-se, pois, a visão de um indivíduo soberano para um outro disciplinado. Se no primeiro, o sujeito é avaliado por meio da lei, nesse último, a ordenação vem pela norma, que determina a filiação ou não à normalidade. Se antes havia um sujeito, agora trata-se de um objeto que é determinado, singular e diferenciado, além de ser dotado de uma interioridade definida por sua natureza biológica, dado o desenvolvimento desse campo (FERREIRA, 2007).

A subjetividade privatizada e sua respectiva crise, bem como a experiência de individualização, fornecem as marcas essenciais da Psicologia que surge no século XIX. Para Ferreira (2007), a Psicologia localiza-se no espaço político entre o indivíduo autônomo e soberano, que é a fonte do poder, e o indivíduo sob o controle das disciplinas, que é alvo dos poderes, realizando o trânsito entre ambos.

É esse o cenário em que a Psicologia foi “inaugurada”, em 1879, cujo desafio era a desvinculação das práticas metafísicas e a assunção do modelo científico tradicional. Para tanto, há que se seguir com rigor esse método, caracterizado por ser:

[…] positivista, porque se constitui como sistema baseado no observável; racionalista, pela ênfase na razão como possibilidade de desvendar as leis naturais; mecanicista, porque se pautou na idéia [sic] do funcionamento regular do mundo; associacionista, porque se baseou na concepção de que as idéias [sic] se organizam na mente de forma a permitir associações que resultam em conhecimento; atomista, pela certeza de que o todo é sempre o resultado da organização de partes; e determinista, porque pensou o mundo como o conjunto de fenômenos que são sempre causados e que essa relação de causa-efeito pode ser descoberta pela razão humana (BOCK, 2009a, p. 15-16).

No entanto, tais pretensões para a Psicologia não obtiveram sucesso, à medida em que, ao buscar seguir com rigor esse trajeto, as especificidades do fenômeno psicológico foram abandonadas ou parcialmente consideradas. Indo além: tais pretensões, aliadas ao quadro psicologicista e individualista que expusemos, contribuíram para a elaboração de uma ciência psicológica que visualizava seu objeto de estudo de forma abstrata, universal e naturalizada.

Bock (2009a) argumenta que as concepções de fenômeno psicológico subjacentes a essas pretensões o localizam de modo descolado da realidade em que o sujeito está inserido e do próprio sujeito em si, sendo o mundo social estranho ao indivíduo. Nestes termos, podemos concluir que a subjetividade é compreendida como algo inerente ao sujeito,

fenômeno natural e dado, apartado da realidade social que não o constitui, mas que interfere de alguma forma.

Na verdade, o mundo social surge de modo acrítico e plano, tal como um cenário em que se desenvolve o comportamento do sujeito em sua relação com o objeto. O cientista deve adotar uma postura neutra, visando garantir a objetividade e o rigor do trabalho, porém, tal postura impede o olhar crítico e o enfoque sobre determinantes políticas, sociais, históricas, culturais e econômicas que também concorrem na produção desse fenômeno. Bock (2009a) denuncia que esse descolamento da realidade social e cultural propicia a constituição do processo ideológico da Psicologia. Nesse sentido, a ciência psicológica contribui para ocultar aspectos sociais do processo de construção do fenômeno psicológico, colocando em relevo somente aspectos psicológicos, concebidos de modo isolado e naturalizado. Aqui, tem-se alguns subsídios para refletir sobre aquela fala da estudante de Palmeira dos Índios que parece separar a Psicologia e o social.

Com efeito, a ausência dessa postura crítica e multidimensional oportuniza o crescimento do viés ideológico dessa ciência. Acrescentamos, aqui, Patto (1984), que nos incita a refletir ao retomar o nascimento da Psicologia científica e desnudar seu caráter ideológico. Segundo a autora, a Psicologia, em sua constituição e desenvolvimento, é um instrumento e efeito das necessidades dessa sociedade, quais sejam: selecionar, orientar, adaptar e racionalizar, com o intuito de aumentar a produtividade. Esses são traços que se alinham na composição do desenho de psicólogo através de suas representações sociais, os quais serão sublinhados no Brasil e ganharão novos contornos quando se inicia no século XX a profissionalização da Psicologia. É o que acompanharemos a seguir.

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