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A questão da ordem pública e a Convenção de Nova Iorque

7. OS LIMITES DOS BONS COSTUMES E DA ORDEM PÚBLICA PARA A

7.3 A questão da ordem pública e a Convenção de Nova Iorque

O contexto econômico e político do segundo pós-guerra fez nascer a necessidade de um maior respeito às regras de comércio internacional, dentre as quais o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras.

Dentro desse espírito é que foi editada a Convenção sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras feita em Nova Iorque aos 10 de junho de 1958.

É possível imaginar que antes dela não houvesse o sentimento hoje mais consolidado de maior segurança jurídica para aqueles que se envolviam em arbitragens comerciais internacionais, ficando sempre a dúvida se uma sentença proferida consoante os estreitos requisitos de um dado ordenamento seria ao final regularmente reconhecida e executada em outro país, imaginando-se não serem raras as situações em que questões políticas e de ordem corporativa pudessem influenciar tal reconhecimento.

Foi somente com a edição e legitimação da CNI (esta conseguida a partir da pronta ratificação e em massa por mais de 150 países signatários) que se alastrou o então esquecido sentimento de segurança jurídica que se percebe hodiernamente quanto ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras.

O Brasil aderiu à CNI em 23 de julho de 2002, através do Decreto n. 4.311, ato que muito colaborou para tornar mais seguras as relações comercias com previsão de solução via arbitragem que, por algum motivo, precisariam de ser executadas em solo nacional.

Todavia, o êxito conseguido a partir da CNI não veio de maneira fácil. Evidentemente, um diploma nascido para abarcar culturas e ordenamentos tão diferentes certamente pressupôs ampla negociação de valores tidos pela comissão de cada país membro, confrontação de paradigmas e, por que não se dizer, equilíbrio de interesses.

Dentre tais interesses, a questão da(s) soberania(s) nacional(is) sempre permeou as discussões, sendo um dos seus pontos mais espinhosos o respeito àquilo que cada um dos países envolvidos havia por ordem pública (interna).

Coube então à CNI equilibrar a necessidade premente de internacionalização da arbitragem, conferindo segurança e previsibilidade ao procedimento internacional, e a garantia de preservação de valores e princípios fundamentais em cada um dos países contratantes.

Domenico Di Pietro bem salientou que

esse mecanismo de equilíbrio que permeia toda a CNI mostrou-se apropriado e de grande sucesso, ao levar um grande número de Estados a ratificá-la, garantindo, de um lado, uma regra geral que impõe aos Estados uma obrigação geral de reconhecer e executar as sentenças arbitrais estrangeiras e, de outro lado, permitir aos Estados que ajustem a aplicação desta obrigação geral de modo a evitar conflito com princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico.144

E a garantia de que os princípios e valores fundamentais de cada um desses países participantes seria respeitada foi assegurada no artigo V(2) da CNI, assim disposto:

2. O reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral também poderão ser recusados caso a autoridade

144 DI PIETRO, Domenico. “General remarks on arbitrability under the New York Convention”. In:

Arbitrability: International & Comparative Perspectives. Edited by MISTELIS, Loukas & BREKOULAKIS, Stavros. The hague: Kluwer, 2009, p. 97.

competente do país em que se tenciona o reconhecimento e a execução constatar que:

a) segundo a lei daquele país, o objeto da divergência não é passível de solução mediante arbitragem; ou

b) o reconhecimento ou a execução da sentença seria contrário à ordem pública daquele país.

De se notar que referido dispositivo listou duas hipóteses de recusa, sendo a primeira relacionada à aptidão do litígio ser resolvida via arbitragem (arbitrabilidade ratione materiae), de acordo com o que dispuser a lei local, e a segunda, que guarda relação com a violação da ordem pública do local em que se pretende executar a sentença arbitral.

A lei brasileira praticamente reproduziu o dispositivo acima em seu artigo 39, que ficou assim redigido:

A homologação para o reconhecimento ou a execução da sentença arbitral estrangeira também será denegada se o Superior Tribunal de Justiça constatar que:

I – segundo a lei brasileira, o objeto do litígio não é suscetível de ser resolvido por arbitragem;

II – a decisão ofende a ordem pública nacional.

Parágrafo único. Não será considerada ofensa à ordem pública nacional a efetivação da citação da parte residente ou domiciliada no Brasil, nos moldes da convenção de arbitragem ou da lei processual do país onde se realizou a arbitragem, admitindo-se, inclusive, a citação postal com prova inequívoca de recebimento, desde que assegure à parte brasileira tempo hábil para o exercício do direito de defesa.

Tal reprodução reforçou propósitos pedagógicos até que o Brasil ratificou a CNI, sendo a matéria ali reproduzida incorporado ao ordenamento nacional.

Seja como for, o fato é que tanto a CNI como a L.Arb. elencam hipóteses bastante restritas para o não reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras, possibilitando sua aplicação apenas em situações excepcionais.

Mas, afinal, essas hipóteses de restrição mereciam distinção ou ambas encerram conteúdo condizente com a limitação imposta pela ordem pública do país receptor?

Ainda durante as discussões que precederam ao projeto da CNI, representante do governo francês concluiu que o requisito de respeito à ordem pública seria suficiente para guardar o ordenamento que recepcionará a sentença arbitral, sendo que a distinção entre as alíneas “a” e “b” do artigo V poderia representar ampliação de restrições ao

reconhecimento, dando aplicação internacional à norma de validade meramente nacional.145

Mais do que isso, a questão atinente à arbitrabilidade de dado conflito (art. V, 2, a, CNI) pode facilmente representar um valor fundamental do país em questão de modo a integrar o largo conceito de ordem pública, contido na alínea seguinte do mesmo dispositivo (art. V, 2, b, CNI).

Isso, pelo menos em uma primeira análise, poderia levar à conclusão de que a distinção havida para listar as hipóteses de recusa para reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras é inócua.

Alguns no entanto a justificam a partir de estudo feito por Jacob Dolinger em que este sustenta três dimensões da ordem pública, sendo elas (i) a limitação da vontade das partes; (ii) a aplicação de leis estrangeiras; e (iii) o reconhecimento de direitos adquiridos no exterior.146

Segundo o autor, o primeiro nível de ordem pública se presta

a garantir o império de determinados valores no plano do direito interno, impedindo que estes valores sejam desrespeitados pela vontade das partes. São, entre outras, as leis de proteção de menores, aos incapazes, à família, à economia nacional e a determinados institutos civis e comerciais que constituem, de certa forma, a publicização do direito privado.147

Refere-se essa primeira dimensão à restrição imposta no artigo V(2)(a) que, segundo Eduardo Damião Gonçalves, traduz-se em uma

145 “Article IV(b) of the Netherlands text would permit the judge of the country in which the award was sought to be relied on to refuse enforcement when the subject matter of the award was not capable of settlement by arbitration under domestic law of that country. The judge would thus be tempted to give international application to rules which were of exclusively domestic validity. The exception of incompatibility with public policy was quite sufficient to cover the rare cases in which the enforcement of an arbitral award might conflict with that policy” (United Nations Conference on International Commercial Arbitration: sumary record of the eleventh meeting, p. 7 apud GONÇALVES, Eduardo Damião. “Comentários ao artigo V(2)(a)(b) da convenção de Nova Iorque”. In: WALD, Arnoldo; LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem comercial internacional. A Convenção de Nova Iorque e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 279).

146 DOLINGER, Jacob. A ordem pública internacional e seus diversos patamares. n. 828. São Paulo: RT, 2004, p. 33-42.

limitação do Estado à livre disposição das partes para a solução de controvérsia referente a determinadas matérias pela via arbitral, imposta para a proteção de situações de particular interesse ao ordenamento em questão.148

Já o segundo nível de ordem pública, para Dolinger, “é a intervenção do princípio de ordem pública na aplicação das leis indicadas pelas regras de conexão do direito internacional privado”.149

Por último, o terceiro nível da ordem pública corresponde à ordem pública aplicada ao reconhecimento de direitos adquiridos no exterior. Notadamente,

tendo adquirido o direito a estas reivindicações de forma legítima no exterior, a ordem pública não se opõe à execução destes direitos em nosso território. (...) só deixaremos de respeitar direitos adquiridos no exterior quando a sua execução em nossa jurisdição for chocante de forma gravíssima.150

Conforme assenta Eduardo Damião Gonçalves,

é com base neste último grau de ordem pública que a aplicação do artigo V(2)(b) deve ser limitada apenas a situações extremas e excepcionais. É pela compreensão desta hipótese, de recepção de direitos adquiridos legitimamente no exterior, que se entende que a recusa nesses casos se dará em razão do desrespeito à ordem pública verdadeiramente internacional.151

De fato, a função essencial da ordem pública é a proteção do ordenamento jurídico contra inserções de origem externa nocivas à integridade e coerência do próprio ordenamento.152 Utilizá-la como pretexto para justificar o não reconhecimento de

sentenças arbitrais estrangeiras, sem que isso represente propriamente um risco à integridade e coerência do ordenamento, parece de todo errado e desaconselhável.

148 GONÇALVES, Eduardo Damião. “Comentários ao artigo V(2)(a)(b) da convenção de Nova Iorque”, 2011, op. cit., p. 280.

149149 DOLINGER, Jacob. A ordem pública internacional e seus diversos patamares, 2004, op. cit., p. 35. 150 Idem.

151 GONÇALVES, Eduardo Damião. “Comentários ao artigo V(2)(a)(b) da convenção de Nova Iorque”, 2011, op. cit., p. 281.

152 ALMEIDA, Ricardo Ramalho. Arbitragem comercial internacional e ordem pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 385.

Nesse desiderato, tem-se que apenas a exceção de ordem pública de “terceiro grau” da classificação proposta por Jacob Dolinger “seria capaz de impedir a aceitação de situações já consumadas no exterior, como é o caso das sentenças arbitrais”.153

É, pois, medida extrema e de aplicação restritiva.

Um exemplo da aplicação restritiva da exceção de ordem pública a que se fez menção é encontrado no caso Parsons & Whittemore Overseas Co Inc vs. Societé Generale De L’Industrie Du Papier (RAKTA),154 no qual foi decidido que o

reconhecimento e a execução de sentença arbitral estrangeira não podem ser negados, exceto nos casos em que a recepção viole noções básicas de moralidade e justiça.

Nele, a Corte americana defendeu aplicação bastante restrita da exceção de ordem pública contida no art. V(2)(b) da CNI, mencionando que ela

...não foi criada com a intenção de abrigar os rumos errantes da política internacional. Ao contrário, uma noção circunscrita de ordem pública foi idealizada pelos redatores da Convenção e toda evidencia é que, ao ratificar a Convenção, os EUA subscreveram esta concepção.

Em outro caso, Mitsubishi Motors Corp. vs. Soler Chrysler Plymounth, Inc.,155 a

Corte Suprema estadunidense ressaltou a importância em se garantir certa previsibilidade na solução de disputas referentes ao comércio internacional. Destacou-se nessa ocasião que o resultado obtido via solução arbitral deveria ser mantido, ainda que uma solução diferente devesse ter sido proferida no âmbito doméstico.

Em outras palavras, a Corte julgadora afastou a incidência da exceção de ordem pública entendida de maneira ampla, que funcionaria como simples argumento para rediscutir toda a matéria posta a julgamento, e ateve-se ao núcleo duro do conceito a ela emprestado, conferindo maior eficiência e utilidade à CNI.

153 GONÇALVES, Eduardo Damião. “Comentários ao artigo V(2)(a)(b) da convenção de Nova Iorque”, 2011, op. cit., p. 290.

154 US Court of Appeals for the Second Circuit, 23-11-1974, 508 F.2d 969. 155 473 US 614 (1985).

8. O INSTITUTO JURÍDICO DOS USOS E COSTUMES COMO FONTE DO