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Usos e costumes como fonte de direito nas arbitragens do comércio

10. OS USOS E COSTUMES COMO REGRA DE JULGAMENTO NAS

10.2 Usos e costumes como fonte de direito nas arbitragens do comércio

arbitragem privada internacional.262

No campo dessas arbitragens internacionais, o seu objeto será – como o nome prenuncia – matéria ligada ao comércio internacional, incluindo-se aí desde o comércio de serviços e mercadorias até questões de investimento, passando por discussões a respeito de propriedade industrial ou mesmo societárias.

A qualificação “comercial” é empregada, aí, no sentido amplo do termo, indicando todas as atividades com fins econômicos ou lucrativos, exercidas ao menos por uma das partes em caráter habitual e que impliquem relacionamento de caráter econômico social. Comercial corresponde à empresarial, sob essa acepção. Distinguimo-la da atividade das entidades privadas, exercidas sem intuito de lucro, presente ou remoto, direto ou indireto, ou seja, das atividades cívicas, social, política, cultural etc. Entretanto, precisamos ter cuidado ao examinar a atividade do sujeito envolvido, pois, em muitos casos, a atividade educacional ou a cultural podem ter fins econômicos ou lucrativos. É o caso das galerias de arte, dos organizadores de exposições e colóquios comerciais, entre outros. A questão da natureza comercial relaciona-se com o objetivo e a atividade da pessoa jurídica. No direito brasileiro, como no português e no italiano, é o caráter empresarial da atividade que a determina.263

Os seus sujeitos, de igual maneira, serão pessoas físicas e jurídicas de direito privado, qualquer que seja a sua nacionalidade.

Dessa delimitação fica claro que serão, justamente, nessas arbitragens comerciais internacionais que o emprego dos usos e costumes revelar-se-á mais presente, tanto pela ausência de um ordenamento supranacional impositivo para dirimir tais questões, tanto em razão da ampla liberdade conferida às partes, não se limitando referida fonte a preencher lacunas de regras estatais positivadas ou mesmo atuando supletivamente.

262 BAPTISTA, Luiz Olavo. Arbitragem comercial internacional, 2011, op. cit., p. 41. 263 Ibid., p. 63.

No comércio internacional, todavia, não há muitas regras aplicáveis globalmente. Os negócios privados quando devem ser examinados pelos tribunais estatais competentes devem ser qualificados e submetidos às regras aplicáveis de conflitos de leis, num procedimento complexo e difícil. Por isso, os operadores passaram a privilegiar usos e costumes. Dai ter-se falado na emergência de uma nova lex mercatoria, e em ocorrer o recurso frequente a usos profissionais, muitas vezes compilados ou codificados pelos interessados.264

Daí porque se dará mais enfoque ao emprego dos usos e costumes nessa modalidade de arbitragem.

A doutrina costuma relacionar como fontes de direito arbitral as leis, os usos e costumes, os princípios gerais do direito (fontes estatais) e a lex mercatoria, as compilações e consolidações, e as regras das instituições arbitrais – as chamadas soft law (fontes de origem privada).

A respeito da fonte que mais de perto importa para os propósitos deste trabalho, os usos e costumes, Luiz Olavo Baptista anota aspectos de sua evolução para após inseri-lo no contexto arbitral:

Os usos aparecem na prática, sendo fruto de uma cultura e de uma práxis. Em geral, os usos são relacionados com determinadas atividades. Os advogados, os comerciantes, os banqueiros, os artesões, e muitos outros grupos profissionais desenvolvem práticas que, tornando-se costumeiras, representam usos, e codificados ou de alguma forma oficializados, costumes.

São admitidos pela maioria dos sistemas jurídicos que lhes da força de lei onde não há norma estatal expressa a respeito, ou onde as normas são supletivas. Os usos aparecem por várias formas. Ora são cláusulas de estilo, que passam a ser, algumas vezes presumidas como existentes e cuja força obrigatória decorre da vontade tácita dos contratantes. Ora são práticas típicas de uma profissão ou local (como as práticas portuárias) cujo caráter obrigatório varia conforme o caso. Podem ser ainda práticas profissionais, típicas daquela atividade, seguidas por empregadores e empregados, fornecedores e fregueses.

264 Ibid., p.71.

Os usos estão associados aos costumes. Por vezes, confundem-se. Os costumes soem ter raízes históricas mais profundas, que se não afetam a sua natureza jurídica de fontes de direito, servem como descritores do direito vivo, sendo elementos culturais importantes. Não se pode esquecer que até o advento da codificação napoleônica (como ainda ocorre em outros cantos do globo – nos países muçulmanos, por exemplo), os costumes eram a fonte de direito mais importante. Sem ter a origem legislativa das codificações modernas, eram compilados e aplicados como uma fonte primordial de direitos.265

A importância histórica dos costumes, aliás, é relembrada nas Ordenações Reais, escritas conforme os costumes do Reino, como era o caso das Manuelinas e Filipinas.

Especificamente na seara da sistemática arbitral, a aplicação dos usos e costumes do comércio internacional é por demais relevante, notabilizando-se como característica marcante da arbitragem que envolve o comércio internacional, sendo a ela inerente.

De fato, ao se pesquisar a história da arbitragem, percebe-se que ela está sedimentada nos usos e costumes e na equidade desde seus primórdios.

Discorrendo sobre a ligação dos institutos nos primórdios da arbitragem em Portugal, Selma Lemes lembra que

...da pesquisa histórica efetuada surge fato curioso e elucidativo para o presente estudo, pois, no direito português, a arbitragem, o julgamento por “alvidros”, tem origem no vocábulo românico “alvedrio”, que também significava a equidade supletiva ou substitutiva, sendo dirigida aos juízes, alcaides ou outros, que poderiam integrar as lacunas ou deficiências do direito vigente, respeitando os valores jurídicos dominantes.

Verifica-se, desta forma, que a arbitragem e a equidade identificavam-se na ancestralidade etimológica do direito português, do qual o direito brasileiro se origina. E mais. Afere-se que essa identidade ultrapassa a semântica, pois o julgamento por equidade, desde então, afinava-se com a própria arbitragem, que era praticada por pessoas não versadas em leis (“amigos comuns”).266

265 BAPTISTA, Luiz Olavo. Arbitragem comercial e internacional, 2011, op. cit., p. 68-69.

266 LEMES, Selma Ferreira. “A arbitragem e a decisão por equidade no direito brasileiro e comparado”. In: LEMES, Selma Ferreira; CARMONA, Carlos Alberto; MARTINS, Pedro Batista (Coord.). Arbitragem: estudos em homenagem ao prof. Guido Fernando Silva Soares. São Paulo: Atlas, 2007.

Em razão da importância atribuída ao instituto, organismos privados que administram procedimentos arbitrais também se preocuparam em enaltecer o emprego dos usos e costumes como fonte hábil a decidir conflitos, como é o caso da lei modelo da UNCITRAL267 e mesmo do regulamento da CCI,268 que basicamente dispõem que o

tribunal deverá levar em consideração os usos do comércio pertinentes.

A L.Arb. brasileira, que tem por base a Lei Modelo, também faz menção expressa à observância dos usos e costumes no caso de as partes autorizarem, como faculdade, a sua utilização, no que é acompanhada por sistemas legais de diversos países.

No mesmo sentido, o regramento da Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) prevê, em seu artigo 9° (1),269 que as partes ficarão vinculadas pelos usos e práticas por elas aceitas,

enquanto que o Estatuto da Corte Internacional de Justiça dispôs que o tribunal deverá decidir de acordo com o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito.270

Nessa linha, a sentença CCI n. 6955 definiu parâmetros à configuração dos usos do comércio, a saber, sua regular observância pelos comerciantes, que se refiram a determinado local, com vocação para tal, e a justificação de que há expectativas para que aqueles usos do comércio sejam atendidos no negócio jurídico em questão:

Usage of trade on the other hand concerns usages of a place, vocation, or trade, and its proof does not depend

267 Art. 33.3: “Em qualquer caso, o tribunal arbitral decidirá de acordo com os termos do contrato e terá em conta o uso comercial aplicável à transação”. Disponível em: <http://goo.gl/7eue15>. Acesso em: 6 dez. 2015.

268 Art. 21 – 2: “O tribunal arbitral deverá levar em consideração os termos do contrato entre as partes, se houver, e quaisquer usos e costumes comerciais pertinentes”.

269 Art. 9 (1) – “As partes se vincularão pelos usos e costumes em que tiverem consentido e pelas práticas que tiverem estabelecido entre si”.

270Art. 38: A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará:

a. as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes;

b. o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito; c. os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas;

d. sob ressalva da disposição do Artigo 59, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito.

A presente disposição não prejudicará a faculdade da Corte de decidir uma questão ex aequo et bono, se as partes com isto concordarem.

upon anything going on between the parties other than their participation in trading at the place, in the vocation, or in the trade in question. There are three elements in the UCC formulation of usage of trade: (1) regularity of observance, (2) in a place, vocation or trade, (3) justifying the expectation that the usage will be observed in the transaction. For a trade usage to be used in a case there is a fourth requirement: proof of the usage as a fact.271

A diferença é que a aplicação dos usos e costumes como critério de julgamento em arbitragens, principalmente comerciais internacionais, se assim for convencionado, será de forma direta, “tendo eficácia pronta, direta e preferencial”,272 conforme

esclarece Cândido Rangel Dinamarco.

Difere em muito, portanto, do modo com que tradicionalmente é aplicada no direito nacional: de maneira apenas subsidiária, preenchendo lacunas legais ou, à semelhança dos princípios gerais do direito, atuando “somente como focos de irradiação de critérios para a interpretação das leis”.273

Ao lado disso, muitas vezes o apego a uma legislação estatal específica pode não representar o critério que melhor se aproxima do sentimento de ideal de justiça, o que dificilmente ocorrerá nos casos de usos e costumes do comércio internacional.

Observa-se que na medida em que dada prática é largamente aceita em um determinado mercado, ao ponto de haver se consolidado como verdadeiro costume, de se presumir que esteja conforme o justo e adequado, ao menos em relação àquelas situações que a ela se assemelham ou nela possam se enquadrar.

Este diferenciador contribui para que os usos e costumes se sustentem como excelente ferramenta de solução de conflitos em casos cujas matérias de discussão às vezes mostram-se não regulamentadas ou regulamentadas de forma superficial e com muitas lacunas.

Além desses casos, mercados autorregulados (como resseguros, petróleo e gás) também seriam campo fértil à utilização dos usos e costumes.

271 DEN BERG, Albert Jan van (Ed.). Yearbook commercial arbitration. Vol. XXIVa. Kluwer Law International, 1999, p. 107-140 apud BAPTISTA, Luiz Olavo. Arbitragem comercial e internacional, 2011, op. cit., p. 68-69.

272 DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo, 2013, op. cit., p. 44. 273 Ibid., p. 43.

A lex mercatoria, para muitos uma espécie de regulamento transnacional,274 é

comumente utilizada por árbitros como “direito” aplicado ao mérito dos litígios, notadamente naqueles casos em que não há escolha do direito aplicável pelas partes.

Tal fato também serve para demonstrar a força com que os usos e costumes têm se legitimado, caminhando para posição de protagonismo em grandes disputas comerciais internacionais travadas no âmbito arbitral, especialmente hodiernamente.