• Nenhum resultado encontrado

Análise dos usos e costumes a partir de precedentes judiciais

9. OPERACIONALIZAÇÃO DOS USOS E COSTUMES NO VIGENTE

9.1 Análise dos usos e costumes a partir de precedentes judiciais

Com o objetivo de se analisar a força jurígena dos usos e costumes na prática da hermenêutica contratual, alguns casos concretos serão descortinados, isto é, precedentes judiciais que expressamente se valeram dos usos e costumes para decidir impasses suscitados no âmbito do processo obrigacional.

O primeiro caso tomado como referência é a Apelação Cível n. 70028894954, da 12ͣ Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em que, embora vencido o entendimento do relator no colegiado, houve aplicação dos usos e costumes em contrato de transporte terrestre internacional celebrado no Brasil.

O julgado analisado restou assim ementado:

Apelação. Transporte rodoviário internacional. Roubo da carga e do caminhão. Ação indenizatória proposta pelo transportador contra a contratante do serviço. Improcedência. Descabe responsabilizar-se a empresa ré, contratante do serviço de transporte da carga, pelos prejuízos suportados pelo transportador autor, que foi vítima de roubo à mão armada durante a execução do serviço. Alegação do demandante de que caberia à ré, uma vez que exportava carga de valor vultoso para a Argentina, a contratação de escolta. Incumbência que não foi, entretanto, demonstrada nos autos. Contrato de transporte firmado sem qualquer exigência ou ressalva. Riscos que são imputáveis ao transportador e não ao contratante. Apelo provido, por maioria.

Cuidou-se nessa oportunidade de ação indenizatória por danos materiais proposta pelo realizador do frete contra a empresa transportadora, em razão de roubo à mão armada protagonizado no trajeto em que transportava carga de propriedade da requerida.

Ao analisar a responsabilidade pelos prejuízos suportados pelo autor, o entendimento exposto pelo relator, vencido, foi de que a transportadora concorreu para a produção do evento ao violar dever de custódia, quando deixou de observar deveres básicos de segurança em razão da vultuosidade da carga transportada.

Segundo depreendeu o relator do caso, configurava prática bastante comum entre empresas transportadores a contratação de escolta em contratos de transporte

análogos, especialmente no trecho do infortúnio (fronteira entre Brasil e Argentina), onde esse tipo de atividade criminosa era propagadamente habitual.

Até mesmo pelo valor envolvido no frete contratado, o entendimento foi de que não seria viável à prestadora do serviço do frete se cercar das cautelas de praxe, mas a própria demandada, independentemente de cláusula expressa nesse sentido.

Logo, em razão da boa-fé e atentos aos usos e costumes do local (art. 113, do C.C.), a requerida deixou de observar obrigação sua, presente nesse tipo de contratação.

Depreende-se do voto do relator, em que pese haver sido vencido230, que a

questão das práticas mercantis aceitas como costumes no mercado de transporte terrestre de cargas foi bem abordada, decidindo a questão com base nelas e não apenas no que fora expressamente contratado.

Em outro caso envolvendo a emissão de cheques cruzados que tiveram seus beneficiários alterados mediante falsificação, também o emprego dos usos e costumes foi determinante para o deslinde da questão.

Muito embora omissos os dados do processo, foi possível entender a partir de parecer231 encomendado a Fernando Netto Boiteux que o caso envolveu discussão sobre

a responsabilidade do banco que autorizou a compensação da cártula sem antes observar procedimentos bancários específicos que certamente concluiriam pela falsificação dos campos “destinação” e “favorecido”.

Consta da opinião legal que a análise de certos elementos essenciais ao cheque são obrigatórios pelo banco, que se assim procedesse teria desde logo identificado “falsificação grosseira” e não permitido o seu pagamento.

Mas, além da observância de procedimentos bancários obrigatórios, decorrentes de lei (Lei 7.357/85 – Lei do Cheque), foi destacado no parecer analisado que também os usos e costumes bancários impunham ao banco pagador consulta mais acurada ao cheque emitido.

Como examinado na descrição dos fatos que motivaram esta consulta, a (emitente) acusou o Banco de ter agido sem respeitar os “procedimentos bancários específicos”.

230 A decisão prevalecente foi de que não havia no contrato de transporte firmado qualquer exigência ou ressalva quanto à escolta dos bens transportados, tampouco previsão legal a esse respeito.

231 Ver Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Vol. 131. Ed. Malheiros: São Paulo. 2003, p. 264 e ss.

Esses procedimentos se encontram tanto na legislação – inclusive na sua interpretação jurisprudencial -, quanto nos usos e costumes, até mesmo por força do disposto no art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil.

A importância dos usos e costumes em matéria bancária não requer demonstração, tendo em vista que muitos deles, como o do cruzamento de cheques, se transformaram em lei, posteriormente.

Há casos em que a própria lei comercial determina que os usos e costumes sejam aplicados para suprir as lacunas, em matéria comercial, com preferência sobre as leis civis, como dispõe o art. 291 do Código Comercial, por exemplo.(...)

Entre esses costumes, um se aplicaria particularmente ao caso em exame, que é o da consulta feita ao emitente por ocasião do pagamento de cheques de elevado valor. Este costume é reconhecido não só na nossa prática bancária como, também, no direito comparado, o que demonstra a sua universalidade.232

E concluiu o parecerista pela responsabilização do banco por haver inobservado costume assente nesse mercado, consistente na consulta de cheques se estes forem de elevado valor.

Mais uma vez, ficou bastante clara a posição de protagonismo exercida pelos usos e costumes no processo de interpretação dos contratos, revelando-se fonte normativa que auxilia tanto a interpretação quanto ao preenchimento de lacunas por vezes existentes nas leis postas.