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10. OS USOS E COSTUMES COMO REGRA DE JULGAMENTO NAS

10.7 Lex mercatoria é soft law?

Uma nova e peculiar forma de se regular a arbitragem comercial internacional tem ganhado espaço ao longo da última década: são as ferramentas não vinculantes integrantes da chamada soft law.

Tais mecanismos são criados por órgãos internacionais objetivando regulamentar um determinado seguimento, normalmente diante de situações lacunosas em termos procedimentais, dependendo sempre da aceitação das partes ou da iniciativa dos árbitros.

Conforme preleciona André de Albuquerque Cavalcanti Abbud,345

trata-se de instrumentos escritos não obrigatórios, como diretrizes, recomendações, protocolos, guias e códigos de conduta, elaborados por comissões e organismos não estatais, cuja aplicação ao processo arbitral é condicionada à vontade das partes ou à iniciativa dos árbitros.

E prossegue o referido autor, sustentando que

essas ferramentas não vinculantes, integrantes da chamada soft law, visam a orientar a prática de atos processuais no espaço deixado por leis nacionais, tratados internacionais e regulamentos de arbitragem, isto é, normas jurídicas aplicáveis à arbitragem por imposição da lei ou do contrato (hard law).

344 GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Fundamentos da arbitragem do comércio internacional. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 91.

345 ABBUD, André de Albuquerque Cavalcanti. Soft law e produção de provas na arbitragem

Mas a que se deve a proliferação e a adesão cada vez mais frequente dos regramentos integrantes da soft law?

Em primeiro lugar, o vazio muitas vezes deixado pela hard law pode ser convenientemente preenchido por regras, guias e manuais de conduta previstos na forma de soft law. Ao lado disso, a doutrina costuma citar outras vantagens, como (i) aumento na previsibilidade das decisões de natureza processual não estabelecidas na hard law, o que faz crescer a segurança jurídica em relação à arbitragem; (ii) harmonização das diferenças culturais, não se resumindo isso apenas a civil law vs. common law; (iii) difusão do conhecimento e promoção da igualdade entre as partes, uma vez que ambas as partes estarão bem mais preparadas do ponto de vista do direito processual; (iv) ganho de eficiência no processo arbitral internacional, que contribuirá para a diminuição do tempo e do custo envolvidos da arbitragem; e (v) reforço à legitimidade da arbitragem, e isso decorre justamente por meio da presença de todos os outros quatro benefícios supracitados. Assim, estando as partes mais seguras quanto ao aspecto processual numa arbitragem internacional, há, naturalmente, um fortalecimento desse instituto.346

Como exemplos desses regramentos, pode-se mencionar diversos, tratando cada qual de temas os mais variados. Veja-se alguns mais elucidativos:

(i) Sobre o advogado: a IBA editou os International Principles on Conduct for the Legal Profession; (ii) sobre o árbitro: a IBA editou as Rules of Ethics for International Arbitrators. A mesma instituição editou também as Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration; (iii) Sobre coisa julgada e arbitragem: a ILA editou as suas Recommendations (2004) sobre o assunto; (iv) sobre a confidencialidade na arbitragem comercial internacional: a ILA editou as suas Recommendations (2010) sobre o assunto; (v) sobre a determinação do conteúdo da lei aplicável numa arbitragem comercial internacional: a ILA editou as suas Recommendations (2008) sobre o assunto; (vi) sobre disclosure e prova testemunhal: o CPR editou o seu Protocol on Disclosure of Documents and Presentation of Witnesses in Commercial Arbitration; (vii) a respeito da lis pendens na arbitragem: a ILA editou

346 Todos esses benefícios foram retirados da obra ABBUD, André de Albuquerque Cavalcanti. Soft law e

as suas Recommendations (2006) sobre o assunto; (viii) sobre a organização do procedimento arbitral: a UNCITRAL editou as suas Notes on Organizing Arbitral Proceedings; (ix) a propósito da produção de provas na arbitragem: a IBA editou as Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration; (x) referindo sobre a prova do dano na arbitragem: o CPR editou o seu Protocol on Determination of Damages in Arbitration; (xi) sobre a redação da cláusula compromissória para uma arbitragem internacional: a IBA editou as Guidelines for Drafting International Arbitration Clauses; e (xii) sobre o representante da parte: a IBA editou as Guidelines on Party Representation in International Arbitration.

Da simples leitura dos regramentos mencionados, chama a atenção o fato de se referirem a temas eminentemente procedimentais, isto é, dizem respeito a práticas observáveis no contexto do processo arbitral.

Por outro lado, é bastante comum encontrar na doutrina quem relacione a lex mercatoria (como sabemos, empregada para decidir o mérito da controvérsia) com a soft law.

Esse aparente conflito leva a perquirir, afinal, se a lex mercatoria reúne características que pudessem enquadrá-la como integrante da chamada soft law, não obstante se tratar de questão de pouca relevância prática para o desfecho de arbitragens internacionais, mormente o fato de que a incidência de ambas no caso concreto dependerão de autorização das partes.

Ao definir conceito e contornos do instituto, Abbud sustenta ser possível identificar três sentidos principais em que a ideia de soft law costuma ser usada. O primeiro relaciona-se ao seu instrumento (declarações, memorandos de entendimento e recomendações seriam soft por natureza). O segundo diz respeito ao conteúdo de tais instrumentos, ou ao “caráter mais ou menos constritivo de suas normas”.347 Estariam aí

enquadradas as disposições formuladas de modo amplo e abstrato, dotadas de clausulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, tais como princípios. O terceiro sentido carregado na expressão soft law é empregado para referir a regras cujo cumprimento não é possível de ser imposto, seja por meio do Judiciário, seja por arbitragem.

347 ABBUD, André de Albuquerque Cavalcanti. Soft law e produção de provas na arbitragem

Levando-se em consideração principalmente o segundo sentido atribuído à expressão soft law, considera-se perfeitamente possível nela enquadrar a lex mercatoria, sabidamente construída sob a influência de cláusulas gerais e formada de modo amplo e abstrato, carregando conceitos indeterminados e princípios particulares da atividade que o costume ou a prática reiterada de mercadores acabou por regulamentar.

Talvez uma prova disso seja que, ao citar exemplos do soft law forjados por entidades privadas, tenha referido autor incluído nesse rol os Princípios para Contratos Comerciais Internacionais do Instituto Internacional para Unificação do Direito Privado (UNIDROIT), bem como os Termos Internacionais do Comércio (INCOTERMS) da CCI, ambos “leis do mercado” conforme as mais recorrentes definições de lex mercatoria.

Referindo-se às origens ou a “genealogia da soft law”, Abbud traz ensinamento de Anna di Robilant, para quem uma das correntes aponta os ancestrais da soft law na chamada lex mercatoria,348 o que pode ser considerado outro elemento autorizador do

enquadramento que se sustenta.

Ainda que não discorrendo propriamente sobre o tema aqui proposto, pode-se encontrar em Teubner passagem em que conclui ser a lex mercatoria uma espécie de soft law:

...mais como um direito de valores e princípios do que um direito de estruturas e regras, o que não retira a sua força: por ser soft law, a lex mercatoria não se torna um ‘direito fraco’, mas resistente a mudanças e adaptável a tentativas de unificação.349

De modo diverso, aqueles que negam o enquadramento em tela, certamente dirão que a soft law não pode ser equiparada ao costume350 (alterando-se com

348 ROBILANT, Anna di. Genealogies of soft law, p. 500-501, 511-22, 527-47 apud ABBUD, André de Albuquerque Cavalcanti. Soft law e produção de provas na arbitragem internacional, 2014, op. cit., p. 12.

349 TEUBNER, Gunther. “Global Bukowina: legal pluralism in the world society”. In: TEUBNER, Gunther (Ed.). Global law without a State. Brookfield: Dartmouth, 1997, p. 18-19.

350 Como se sabe, para que determinados usos ou práticas possam se considerados costumes como fonte de obrigações jurídicas no direito internacional, é preciso concorrerem dois requisitos: de um lado, o costume deve refletir um comportamento constante e uniforme dos sujeitos ao longo do tempo (elemento material ou fático); de outro, esses mesmos sujeitos devem ter a consciência da obrigatoriedade daquele ato, isto é, a convicção de que se comportam em cumprimento de um dever jurídico (elemento psicológico – opinio necessitatis sive obligationis).

frequência), considerado para todos os fins fonte de direito em sentido estrito, talvez por “não refletir práticas geralmente adotadas em concreto, mas apenas opiniões de profissionais da área sobre as formas ‘mais recomendadas’ de se resolverem certas questões”.351

Não há, outrossim, um sentir por parte dos usuários da arbitragem que se trata de veiculação obrigatória.

A estes se diga que, na verdade, também a lex mercatoria não poderá ser empregada sem a expressa concordância das partes, mas, ao fazê-lo, não apenas passará a ter observância obrigatória pelos árbitros como provavelmente terá sido legitimada como soft law em razão de refletir uma prática ou costume largamente aceito em determinado mercado.

A questão é que, se não aceita a aplicação da lex mercatoria pelas partes, é possível que ainda assim esta exerça influência determinante para o julgamento da controvérsia, papel padronizador e orientador muitas vezes visto nos instrumentos de soft law – ainda que não vinculantes; e, caso seja aceita como obrigatória pelas partes, a soft law passa na verdade a ser hard law, e aí se aproxima da lex mercatoria porque obrigatória a sua observância desde que anuído pelas figuras integrantes da arbitragem.

Ou seja, o fato de não ser vinculante ou de não poder ser apontada como fonte própria de direito consuetudinário, não impede que se enquadre a lex mercatoria como integrante da soft law.

Uma última questão diz respeito à área de incidência da soft law: se aplicável no mérito da controvérsia ou se apenas a respeito de temas processuais, hipótese esta que obviamente retiraria o propósito desta indagação.

Não se ignora que é no cenário processual que os regramentos de soft law ganharam e continuam a ganhar notoriedade. Mas eles existem também no campo do direito material:

Já se viu que a soft law, tomada isoladamente, não pode ser considerada costume como fonte do direito internacional. De início, porque as diretrizes e princípios contidos nos instrumentos de soft law processual não necessariamente refletem usos generalizados e constantes na prática; antes, podem ser apenas recomendações daquilo que profissionais da área reputam as melhores técnicas para se conduzir a arbitragem. Mas, principalmente, a soft law não se equipara ao costume porque seus usuários não têm a convicção de que ela veicula obrigações propriamente ditas; eles não a adotam ou se comportam como se estivessem diante de deveres jurídicos (ABBUD, André de Albuquerque Cavalcanti. Soft law e produção de provas na arbitragem internacional, 2014, op. cit., p. 118-119).

351 ABBUD, André de Albuquerque Cavalcanti. Soft law e produção de provas na arbitragem

As soft law, quase sempre editadas na seara do direito processual, recebem nomes como guidelines (diretrizes), notes (notas), protocols (protocolos), rules (regras) e recommendations (recomendações). Existem também no campo do direito material e da deontologia, mas as que vêm se destacando, primordialmente, no cenário internacional, estão tratando de questões processuais, como conflito de interesses entre árbitro e advogado, produção de provas, organização de procedimento, dentre outras.352

Consoante já mencionado alhures, um bom exemplo disso seriam os princípios UNIDROIT de direito contratual.

11. COMO ESTÃO DISPOSTOS OS USOS E COSTUMES NO DIREITO