Já se referiu supra que, atendendo às suas características (nomeadamente a sua apontada indisponibilidade) poderia pensar-se que pelo menos alguns direitos de personalidade (os que comporiam o ‘núcleo duro’ desta), estariam fora da esfera de autonomia do seu titular e, nessa medida, não admitiriam qualquer limitação, por ser o damo mais grave (e irreversível) que pode ser causado à pessoa.
O exemplo clássico, fornecido por quem sustenta esta postura, é o da (alegada) indisponibilidade do direito à vida600, que vem sendo considerado como um direito absoluto, no sentido de não admitir qualquer restrição.
É verdade que, apesar do ordenamento criminal ter deixado de punir o suicídio, ainda assim mantêm-se as sanções criminais para o homicídio a pedido da vítima (artigo 134º do CP) e para o auxílio ao suicídio (artigo 135 do CP), o que parece revelar preferência pela protecção do bem jurídico visa, em detrimento da liberdade pessoal.
597 Jorge Reis Novais, op.cit., p.766., que explica que “diferentemente do que acontece com a verificação da
proporcionalidade da restrição, o controlo de razoabilidade concentra-se na gravidade, qualitativa ou quantitativa, que a medida provoca na esfera do(s) afectado(s)” – Idem, p. 768.
598 André Figueiredo, O princípio da proporcionalidade e a sua expansão para o direito privado, in Estudos
Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Almedina, Coimbra, 2008, p.31.
599 Acórdão nº 302/01 do Tribunal Constitucional, apud Benedita Mac Crorie, Os Limites da Renúncia a
Direitos Fundamentais…, op.cit., p.253.
600
162 Mas há igualmente o reverso da medalha que se tem vindo a revelar face às “recentes aquisições em termos de autodeterminação pessoal”601.
É o caso do artigo 156º do Código Penal que criminaliza as intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, i.e., sem o consentimento do paciente. Aqui não se tutela nem a vida, nem a saúde do paciente, mas, ao invés, a autodeterminação pessoal, enquanto poder sobre o respectivo corpo e mesmo sobre a vida.
E é igualmente o caso com a admissão expressa pelo legislador das declarações antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde, que eleva “acima do sacrossanto direito à vida um recém-adquirido direito de autodeterminação em matérias relacionadas com o corpo e a saúde”602
. Este direito está ínsito no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, decorre do princípio da dignidade da pessoa humana e permite à pessoa definir o seu percurso de vida, bem como a sua essência como pessoa603.
Neste contexto, a asserção da Lei Fundamental segundo a qual a “vida humana é inviolável”604
, só pode significar que a vida humana digna605 é inviolável. “Não há, nesse sentido, um direito à vida, mas um direito à vida digna, o que há-de abranger também o encerramentoda vida quando tal resultado for mais consentâneo com a dignidade humana do paciente”606
.
Ademais, como se tem feito notar607, não se afirma na Lei Fundamental que a vida é indisponível, mas que é inviolável. (no sentido de que não pode sofrer atentado alheio à vontade do seu titular)608.
O direito à vida consagrado na CRP apresenta uma dimensão negativa e uma dimensão positiva609.
601
Benedita Mac Crorie, Biodireitos…, op.cit., p.830.
602 Ibidem.
603 “(E)nglobando a autonomia individual e a autodeterminação e assegurando a casa um a liberdade de traçar
o seu próprio plano de vida” – Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 288/98 de 17 de Abril, apud Benedita Mac Crorie, Biodireitos…, op.cit., p.831.
604 Artigo 24º nº1 da CRP.
605 Isto é, vivida em condições compatíveis com a dignidade da pessoa humana.
606 Anderson Screiber, Direitos da personalidade, 1ª ed., São Paulo, Atlas, 2011, apud Paulo Bernardo
Lindoso e Lima, A efectivação do direito à dignidade no fim da vida: a necessidade de assegurar um novo direito, in RIDB, Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano 3 (2014), nº6, Lisboa, 2014, pp. 4316, 4317.
607 Paulo Bernardo Lindoso e Lima, op.cit., p.4318. 608
163 Na sua dimensão negativa implica o direito a não se ser morto (proibição do homicídio –
cf. artigo 131º e seguintes do Código Penal) e ainda o direito à protecção e ao auxílio em
caso de grave necessidade que ponha em perigo a vida (artigo 200º do Código Penal). O que significa que o bem jurídico vida humana é pois, em regra610, indisponível para terceiros.
Numa dimensão positiva, o direito à vida traduz-se no direito à sobrevivência, i.e., no direito de dispor das condições de subsistência mínimas.
Mas implicará um dever de viver? Não, não se deve confundir o direito à vida consagrado no artigo 24º da CRP com um dever de viver611, como o demonstra a disponibilidade do próprio sobre a sua vida (o suicídio não é um ilícito). PEDRO F. SILVA-RUIZ recorda que pode legitimamente defender-se que “el derecho a la vida no tiene carácter absoluto sino
relativo, lo que supone que no existe el deber de vivir y la persona puede ejercer su libertad y decidir acortar su vida”612
.
Se bem que o bem jurídico vida tenha um valor absoluto face a ataques de terceiros, “esse valor relativiza-se face a ataques do próprio titular ou quando está em jogo a liberdade de cada um tomar decisões que o envolvam e à sua própria vida”613
. Por isso, a livre e consciente oposição do titular do bem jurídico vida (e integridade física) em ser submetido a determinado tratamento, faz cessar o dever de garante do médico614.
Portanto, o bem jurídico vida é disponível para o próprio titular. O suicídio consciente e livre situa-se num “espaço vazio de direito”615, constatando-se uma “tolerância”616 da ordem jurídica relativamente a ele. MANUELA VALADÃO E SILVEIRA afirma, um
609 Parecer Nº P/05/APB/06 da Associação Portuguesa de Bioética – relatores Helena Melo e Rui Nunes;
(em linha), (consultado em 15.05.2016), disponível em
http://www.apbioetica.org/fotos/gca/12802556471148471346directivas_medicas_parecer_05.pdf.
610 Não é punível a lesão do bem jurídico vida em caso de legítima defesa ou de estado de necessidade
desculpante – cf. artigo 32º e seguintes do Código Penal.
611
Inês Godinho, op. cit., p.132, n.424.
612 Pedro F. Silva-Ruiz, El derecho a morrir com dignidade y el testamento vital, in Boltetin de Informacion,
Ano XLVI, 25 Octubre 1992, Nº1651, Madrid, p.5687.
613 Maria Paula Ribeiro de Faria, A «lei do sangue» - ou o conflito entre o respeito pela autonomia da pessoa
e a defesa da vida e a integridade física, in Direito e Justiça, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Volume XII, Tomo 1, 1998, p.262.
614 E, consequentemente, qualquer eventual responsabilidade do médico em relação a um eventual desenlace
fata.
615 Parecer Nº P/05/APB/06 da Associação Portuguesa de Bioética, op. cit., p.16. 616
164 tanto ousadamente (mas bem, no nosso entender) que ainda “ninguém demonstrou que o dever constitucional de protecção da vida se imponha ao próprio titular”617
.
Não parece, assim, legítimo concluir que os conflitos que se verifiquem entre, por um lado, os bens jurídicos vida e integridade pessoal e, por outro, liberdade e autonomia, se devam solucionar sempre a favor da vida618.
Nesta linha de pensamento, INÊS GODINHO619 defende a ideia – que igualmente sustentamos – de que a declaração antecipada de vontade em matéria de cuidados de saúde, mesmo quando contém uma recusa de tratamento que coloque em risco a integridade física ou a vida, não questiona a vida humana como bem jurídico, mas também não subscreve o entendimento de que a vida seja um bem absoluto.
Por isso, “o testamento biológico vem a configurar uma manifestação da dignidade da pessoa humana, enquanto autodeterminação, ao ter escolha e palavra a dizer sobre o seu corpo, a sua vida e, até, sobre a sua morte”620621
.
617 Maria Manuela F. Barata Valadão e Silveira, Sobre o Crime de Incitamento ou Ajuda ao Suicídio, 2ª ed.
Ver., Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, p.63, apud Parecer Nº P/05/APB/06 da Associação Portuguesa de Bioética, op. cit., p.16.
618 No mesmo sentido, v. Parecer Nº P/05/APB/06 da Associação Portuguesa de Bioética, op. cit., p.12. 619
Op. cit., pp. 132, 133.
620 Idem, p. 133.
621 No mesmo sentido, v. ainda Helena Pereira de Melo, o Direito a Morrer com Dignidade, in Lex
Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Centro de Direito Biomédico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Ano 3, nº6, 2006, pp.69-80.
165 CAPÍTULO VII–CAPACIDADE PARA CONSENTIR E PARA DISSENTIR
1. Novo ramo da capacidade de exercício