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Autonomia da vontade, disponibilidade e possibilidade de consentimento Que relevância terá a problemática da autodeterminação e da autonomia privada no

No documento Declarações antecipadas de vontade (páginas 78-83)

domínio dos direitos de personalidade e dos direitos fundamentais, uma vez que a doutrina lhes aponta - exactamente como uma das suas características - a indisponibilidade? Esta indisponibilidade não impedirá, no domínio dos direitos de personalidade e dos direitos fundamentais, o exercício da autonomia privada e, consequentemente, a limitação

280 Heinrich Hörster, A Parte Geral, op.cit., p. 230.

281 Carvalho Fernandes, Teoria Geral, I, op.cit., p. 86.

282 Diogo Leite de Campos, Nós - Estudos sobre o Direito das Pessoas, op. cit., p. 131. 283

79 voluntária de tais direitos, nomeadamente se tal limitação resultar de documento de diretivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde?

A tutela jurídica da personalidade tem desde logo consagração num plano suprapositivo, já que decorre do Direito Natural e é uma exigência da Ideia de Direito, impondo-se, pois, ao legislador (mesmo ao constitucional) e a todos em geral.

No plano positivo e no que à ordem jurídica portuguesa concerne, os principais preceitos da lei ordinária civil em matéria de direitos de personalidade são os artigos 70º a 81º do Código Civil (que continuam o caminho já aberto pelos artigos 359º a 363º e 368º do Código de Seabra, que aí tratava os direitos “originários”), de entre os quais assume especial relevância o artigo 70º, cujo nº 1 estipula: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”. Este preceito284, não se referindo directamente a direitos de personalidade, consagra contudo uma tutela geral da personalidade285, com a vantagem de que para que um direito de personalidade seja reconhecido não se torna necessária a sua específica previsão legal, bastando que decorra da personalidade ontológica, i.e., que seja exigência inelutável da personalidade humana.

A tutela da personalidade aparece ainda plasmada na lei constitucional (Constituição da República Portuguesa), sobretudo através da consagração dos direitos fundamentais (artigos 12º e seguintes) e, dentro destes, dos direitos liberdades e garantias (artigos 24º e seguintes). Se é certo que não há equivalência entre direitos fundamentais e direitos de personalidade286 - tanto mais que estes se centram mais sobre a pessoa e as emanações da personalidade e aqueles têm em vista principalmente (ainda que não exclusivamente) a posição do indivíduo, do cidadão perante o Estado – também não deixa de ser verdade que na Constituição estão consagrados como direitos fundamentais os mais importantes direitos da personalidade. Também ao nível do texto constitucional (artigo 16º nº 1) se determina a

284 Castro Mendes (Teoria Geral do Direito Civil, I, AAFDL, Lisboa, 1978, p. 312) endereçou críticas à

redacção do artigo 70º (adopção de uma fórmula geral em vez de uma enumeração de direitos de personalidade e a inclusão do qualificativo “ilícita”), que, com toda a razão, não são compartilhadas por Pais de Vasconcelos (Teoria Geral, op. cit., p. 46, n. 47).

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Sendo certo que se perfilha a posição dos que rejeitam, no ordenamento jurídico português, a existência do “direito geral de personalidade”, não se entrará – por desnecessidade quanto à abordagem da questão em análise no presente estudo – na enumeração dos argumentos contra ou a favor.

286 Sobre o assunto pode ver-se a análise feita por Oliveira Ascensão (Direito Civil, I, op.cit., pp. 75, 76,

80 existência de um catálogo aberto de direitos fundamentais287, o que, em última análise, pode levar direitos de personalidade não expressamente previstos na lei fundamental a assumirem, ainda assim, dignidade constitucional.

Também o Direito Penal realiza a tutela da personalidade, através da tipificação como crimes das mais graves agressões à personalidade. O Direito Internacional também não é estranho à tutela da personalidade, pois aí proliferam diversas declarações de direitos humanos.

Com interesse para a questão em apreço, traz-se à atenção a distinção, feita por Pais de Vasconcelos288 (e que aqui se acompanha), entre direito objectivo e direito subjectivo de personalidade.

O primeiro seria constituído pela regulação jurídica de defesa da personalidade, cuja ratio se funde em razões de ordem pública, com especial ligação ao respeito pela dignidade humana e que tenha que ver “com a defesa da Humanidade, da globalidade de toda a espécie humana, e com a exigência moral de a respeitar”. De tal tutela objectiva seriam exemplo, na Constituição da República Portuguesa, o artigo 24º nº 1 (ao estatuir que a vida humana é inviolável) o artigo 25º nº 1 (ao dispor que a integridade moral e física das pessoas é inviolável) e os direitos descritos no artigo 26º. O direito objectivo de personalidade é indisponível, situa-se no campo da heteronomia e a sua tutela seria “construída como um dever de agir perante os outros”, impondo a todos um dever de respeitar a dignidade de cada indivíduo, incluindo a sua própria.

O direito subjectivo de personalidade, pelo contrário, é disponível, situa-se no âmbito da autonomia privada e constrói-se como “o direito subjectivo absoluto que cada um tem de defender a sua própria dignidade como Pessoa”. Os direitos especiais de personalidade seriam poderes integradores desta tutela subjectiva, muito embora possam conter elementos da tutela objectiva. Assim, “naquilo que o direito de personalidade é objectivo, o titular não tem autonomia no seu exercício, não pode dele prescindir, não pode dispor dele;

287 Os perigos, para os próprios direitos humanos e também para os direitos de personalidade, do seu

excessivo “empolamento” – que afinal implica o seu “empobrecimento” – são esclarecedoramente apontados por Oliveira Ascensão, A Reserva da Intimidade da Vida Privada e Familiar, op. cit., que exemplifica com a inclusão, feita pela Constituição brasileira, do direito à gratuitidade da certidão de óbito, nos direitos fundamentais e que lhe merece o seguinte comentário: “o núcleo ético da categoria está perdido”.

288 Idem, pp. 39-44. Capelo de Sousa também parece admitir esta distinção, muito embora a trate a propósito

81 no que é apenas subjectivo, já o titular pode livremente tolerar as ofensas, prescindir da sua defesa, ou mesmo dispor dele gratuita ou onerosamente”.

Nesta linha de raciocínio, o teor do artigo 81º do Código Civil, traduziria a interpenetração destas duas formas de tutela (objectiva e subjectiva), ao admitir a disposição negocial de bens de personalidade, desde que não seja “contrária aos princípios da ordem pública”. Independentemente da eventual discordância no que concerne a algum ou alguns aspectos específicos desta construção289 ou à preferência por outros modos de abordar o problema, ela tem contudo o mérito de dar a perceber que a liberdade de exercício e a disponibilidade características do direito subjectivo, não podem funcionar plenamente quanto se trata da tutela da personalidade, já que aqui nem tudo é livremente disponível, nem tudo se submete à autonomia privada, pois há que contar com outros valores. Pensar assim, não faz, contudo, esquecer que a tutela da personalidade assenta mais em razões pessoais do que em razões sociais e que, deste modo, as ofensas atingem mais o próprio do que os outros ou a sociedade. Em síntese, poder-se-ia dizer que “a tutela da personalidade tem a ver com a colectividade e com a pessoa, com o Estado e com o cidadão, com o próprio e com os outros”290

.

O ponto de equilíbrio, ou melhor, o peso e a relevância dadas – na presença de bens de personalidade concretos – aos aspectos supra referidos é que, por fim, determinarão a solução a encontrar em cada caso concreto: total predominância da autonomia, completa ausência da mesma ou convivência (numa variedade de graus e pesos relativos) de autonomia e heteronomia.

Deste modo, o princípio da autonomia poderá arvorar-se em pressuposto imprescindível para o desenvolvimento da personalidade (“eine unerlässliche Voraussetzung für die freie

Entfaltung der Persönlichkeit”, na expressão de Larenz291

).

E no exercício dessa autonomia (expressão da vontade própria, a pessoa seria, em princípio, livre para consentir na lesão de direitos de que é titular. Isso não significa que se deva esquecer a diferença entre vontade e consentimento. Na verdade, a vontade marca a

289

Nomeadamente, quanto ao entendimento de quais os bens totalmente indisponíveis e os eventuais graus de (in)disponibilidade de outros.

290 Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, op.cit., p. 40.

291 Lehrbuch des Schuldrechts, I, 13ª ed., München, 1982, p. 58, apud Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas

82 interioridade incomensurável do homem (pessoa), enquanto que o consentimento é um objecto, consequência da vontade, símbolo e exteriorização da vontade, mas distinto da vontade. Para FRISON-ROCHE, através da vontade a pessoa manifesta a o seu poder, a sua capacidade de se reger pela sua própria lei, a sua liberdade, ao passo que o consentimento seria sinal “d’une sorte de capitulation”292.

292 Marie-Anne Frison-Roche, Remarques sur la distinction de la volonté et du consentement en droit des

83 CAPÍTULO V–CONSENTIMENTO E DISSENTIMENTO

1. Figuras de disponibilidade em que releva a vontade do titular do direito293

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