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Morte não natural e evitável

No documento Declarações antecipadas de vontade (páginas 127-129)

Ainda a propósito de "limites" das diretivas antecipadas de vontade, o legislador português dispôs no sentido de que são igualmente juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito, as diretivas antecipadas de vontade "cujo cumprimento possa provocar deliberadamente a morte não natural e evitável, tal como prevista nos artigos 134º e 135º do Código Penal" (artigo 5º b) da Lei nº25/2012).

Referem-se tais preceitos do Código Penal, respectivamente, ao "homicídio a pedido da vítima" e ao "incitamento ou ajuda ao suicídio".

Este "limite" a que se refere a lei (nomeadamente a sua referência ao artigo 134º do Código Penal), transporta-nos para um mundo imenso de questões e problemas à volta da eutanásia, que justificariam, por si só, um tratamento próprio. Ainda assim, tecer-se-ão algumas breves considerações.

Já se procedeu supra à distinção dos conceitos de eutanásia em sentido estrito, distanásia, ortotanásia e incitamento/ajuda auxílio ao suicídio, que aqui se recordam brevemente. Na eutanásia é habitual considerar a existência de três modalidades: a activa directa, quando se provoca a morte mediante drogas ou outros meios letais; a passiva, que consiste na eliminação dos meios que prolongam a vida; a activa indirecta também chamada ortotanásia), quando se administram calmantes com o principal objectivo de aliviar a dor, mas cujo efeito colateral é o de apressar a morte.

A distanásia consiste no prolongamento artificial do processo de morte, ainda que sabendo que, no estado actual da medicina, não é possível a cura do paciente ou sequer a melhoria do seu estado de saúde.

O incitamento ou auxílio do suicídio consiste, como o próprio nome indica, em 'incitar outra pessoa a suicidar-se ou prestar-lhe ajuda para esse fim' (artigo 135º do Código Penal).

128 Ora, a opção do legislador português foi a de considerar 'proibidas' (com a cominação de inexistência jurídica) as directivas antecipadas de vontade que possam enquadrar-se nos conceitos de eutanásia activa directa (a prevista no artigo 134º do Código Penal) e de incitamento/auxílio ao suicídio (previsto no artigo 135º do Código Penal).

Fora do âmbito de tal 'proibição/cominação' ficaram, portanto, as directivas antecipadas de vontade que se associem aos conceitos de eutanásia activa indirecta e eutanásia passiva. Questão interligada com esta é a de saber se, nos casos de directivas antecipadas de vontade que suscitem o problema da eutanásia activa indirecta e da eutanásia passiva, o prestador de cuidados de saúde fica, ou não, isento do dever de garante.

TERESA BRITO461, em posição doutrinária minoritária, defende que mesmo na eutanásia passiva não cessa o poder de garante do médico, alicerçando-se em dois fundamentos. Por um lado, porque aceitar que cesse o dever de garante significaria aceitar a disponibilidade do bem jurídico vida. Por outro lado, afirma que nem mesmo perante uma auto-lesão cessa a posição de garante do médico. Parecem-nos argumentos algo falaciosos. O primeiro, porque esquece que a vida é de facto disponível, em certos termos, pelo seu titular, como o demonstra a não criminalização do suicídio. O segundo, porquanto não se descortina como possa manter-se uma posição de garante perante quem não a deseja462.

Com efeito, o preceito do Código Penal que exige o consentimento463 - i.e., o artigo 156º do Código Penal – não contém qualquer ressalva relativamente à possibilidade de exclusão do referido requisito. O recurso ao artigo 154º nºs 1 e 3 b) do CP464 também não sustenta tal conclusão. Na verdade, esta norma permite afastar a ilicitude da conduta do médico que actue (mesmo recorrendo à força) para salvar a vida de um suicida. Mas apenas permite isso, pois dela não se pode concluir que o médico tenha a obrigação de o fazer. Se o fizer não praticará nenhum crime. Tão só isso.

461 Teresa Quintela de Brito et al., Crimes Contra a Vida: Questões Preliminares, in Direito Penal – Parte

Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p.58 e ss.

462

Embora noutro contexto, mas reconhecendo que a “posição de garante” do médico “não implica um dever ilimitado”, v. Inês Godinho, op.cit., p.87.

463 Informado, conforme dispõe o artigo 157º CP.

464 “1 - Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma

acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

3 - O facto não é punível:

129 Por outro lado, o citado preceito rege apenas para os suicidas465, não incluindo paciente que, no exercício de um direito, recusam um acto médico. De facto, a recusa de tratamento médico – mesmo quando de tal recusa possa vir a resultar a morte – não é suicídio, tratando-se antes da afirmação do direito à autodeterminação sobre matérias relativa ao corpo, à saúde e à vida.

Parece, pois, mais defensável entender que, quando o doente manifesta a vontade de não prosseguir o tratamento – o que pode ter feito previamente através da apropriada declaração antecipada de vontade -, se extingue o dever de garante. Pelo contrário, a continuação do tratamento contra a expressa vontade do doente, fará o médico incorrer no crime de intervenções médicas arbitrárias (artigo 156º do Código Penal)466.

Por isso, o respeito da vontade do paciente - nomeadamente em conformidade com uma declaração antecipada de vontade - que se traduza na recusa de tratamentos médicos, não pode ser considerado como eutanásia (nem sequer da denominada eutanásia passiva), uma vez não é o médico que provoca a morte, mas, ao invés, a própria doença ou a sua evolução

Ao passo que na eutanásia, o médico provoca a morte a pedido do doente, com o objectivo primordial de pôr fim, de eliminar todo o sofrimento de que este padece, no cumprimento de uma DAV não se visa provocar a morte, nem eliminar a dor, mas apenas se pretende respeitar a autonomia e o direito à autodeterminação do paciente467.

4. O princípio da dignidade da pessoa humana

No documento Declarações antecipadas de vontade (páginas 127-129)

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