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Diversidade e multiculturalismo

No documento Declarações antecipadas de vontade (páginas 154-160)

A dignidade da pessoa humana “exprime a abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva pautada pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico”575

.

Colocado nestes termos, o princípio da dignidade da pessoa humana (e o princípio do livre desenvolvimento da personalidade, dele decorrente) parece impor o respeito pela diversidade cultural, o reconhecimento de uma espécie de “direito à identidade cultural”576, ou, na terminologia de LERNER577, a “legitimidade da identidade e a sua preservação, ou seja o direito a ser diferente”. A questão, naturalmente, é a de saber até onde se poderá ir em matéria de limitação voluntária de direitos de personalidade. Ou, dito de outro modo, até que ponto o respeito pela diversidade cultural e pelo referido “direito à identidade

571 Uma “weltbürgerlische Gesellschaft”, na terminologia de Kant. 572

Assim, Perelman, Ética e Direito, op.cit., p. 261.

573 Sobre a matéria, v. Cristina Queiroz, Autonomia e direito fundamental à liberdade de consciência,

religião e culto, op.cit., pp. 337, 338.

574

Não se pretende tomar posição sobre problemas que o tema pode suscitar, como sejam o da universalidade dos direitos humanos, e o da dicotomia universalismo-relativismo. Sobre estas questões, e outras conexas, v. Jesus Ballesteros, Derechos? Humanos?, in Persona y Derecho, 48, 2003, pp. 27-45; Pablo Figueroa, Universales «versus» Absolutos, Una Crítica Filosófica al Relativismo Cultural, in Persona y Derecho, 48, 2003, pp. 159-197.

575

Gomes Canotilho, Direito Constitucional…,op. cit., p. 225.

576 Carlos I. Massini, Multiculturalismo y Derechos Humanos, Las Propuestas Liberales y el Iusnaturalismo,

in Persona y Derecho, 48, 2003, p. 67.

577 Natan Lerner, Protección Internacional de la Diversidad Cultural, in Persona y Derecho, 48, 2003, pp.

155 cultural” permite a referida limitação, sobretudo quando os comportamentos em que esta se traduz são claramente desviantes em relação aos normalmente aceites na sociedade em que ocorrem.

A problemática é obviamente complexa e não terá, porventura, uma resposta única, até porque pode suscitar ainda outras questões, como as que coloca MASSINI: “cuál es el fundamento racional de los derechos humanos en el âmbito multicultural?; es posible lograr una justificatión racional, no solo de la existencia de estos derechos, sino también de sus contenidos, alcances y limites próprios? finalmente: se trata en estos casos de una fundamentación meramente intracultural, o bien ella debe trascender el marco de lás culturas particulares y abrirse a una perspectiva de universalidad?”578.

As sociedades são casa vez mais, “sociedades de mundos múltiplos, marcadas pela diversidade e pela pluriformidade”, razão pela qual, face a tais multiculturalismos a ênfase é hoje colocada no diálogo intercultural, numa tentativa de passar da pluralidade de mundos à comunicação de mundos579.

As propostas de abordagem do multiculturalismo têm sido várias, das quais se destacarão o jusnaturalismo realista e a perspectiva liberal.

O jusnaturalismo realista, em especial nas suas versões mais recentes como a apresentada pela Nova Escola de Direito Natural580, defende, como afirmação central, a possibilidade de se obter conhecimento das dimensões básicas (ou centrais) da perfeição ou excelência humana, i.e., os chamados “bens humanos básicos”, desta forma rejeitando o cepticismo ou o chamado “não-cognitivismo ético”581. Assim, sustenta-se que é possível saber, ou seja, conhecer racionalmente, que o conhecimento é melhor que a ignorância, que a vida é melhor do que a morte, que a amizade é melhor do que ódio.

578 Massini, Multiculturalismo y Derechos Humanos, op.cit., pp. 67, 68.

579 A ideia é de João Carlos Loureiro, Bios, Tempo(s) e Mundo(s): algumas reflexões sobre valores,

interesses e riscos no campo biomédico, op. cit., p. p. 503, que, no entanto, também chama a atenção para a necessidade de limites ao discurso intercultural, exemplificando com a mutilação genital feminina e a tentativa de recusar tratamentos indispensáveis para evitar a morte no caso de menores (pp. 504, 505)

580 Massini, idem, cit., p. 68.

581 M. Canto-Sperber, La philosofie morale britannique, Paris, PUF, 1994, p. 51 e ss., apud Massini,

156 ROBERT P. GEORGE582 apelida esta doutrina de “perfeccionismo pluralista”, uma vez que reconhece as múltiplas dimensões do bem humano e admite que o homem pode aproximar-se da sua perfeição própria através de apenas algumas das referidas dimensões básicas, de acordo com a sua decisão racional e desde que não actue directamente contra nenhum de tais bens fundamentais. Estes bens, na maior parte das suas dimensões relevantes, só são realizáveis no seio e com o concurso da vida social, i.e., com a colaboração activa e passiva de outros seres humanos. Daí ser necessário o reconhecimento e formulação de toda uma ordem de normas, deveres e prerrogativas que estruturem essa colaboração. Tal ordem é o Direito e as faculdades que têm como objecto a realização dos bens humanos básicos são os direitos humanos. Por outro lado, estes bens básicos são os que se relacionam com as diversas dimensões do modo humano de existir, ou seja, com os diferentes aspectos da índole humana, com os elementos próprios da sua natureza essencial.

Outros três aspectos marcam ainda esta perspectiva jusnaturalista:

a) o bem humano possui uma inescusável dimensão comunitária, ou seja, trata-se de um bem que, em aspectos decisivos, se constitui como um bem comum;

b) o ser humano, o sujeito titular dos direitos humanos, reveste – por força das notas inerentes à sua natureza – o carácter de ‘persona’, i.e., de um indivíduo que actua por si mesmo, é o mesmo na maior medida possível e pode abrir-se intencionalmente à realidade através do conhecimento e da vontade livre. O ser humano é o ente mais perfeito da realidade natural, exactamente porque contém a maior soma de perfeições e contém-nas em grau maior. Essa é a razão pela qual “no hablamos de valor en el hombre, sino de dignidad”583, sendo esta dignidade o fundamento originário e radical do homem ser titular de direitos humanos;

c) a função recíproca das noções de natureza e cultura: toda a expressão ou manifestação da natureza humana reveste carácter cultural, como o necessário

582 Making Men Moral. Civil Liberties and Public Morality, Oxford, Clarendon Press, 1995, p. 161, apud

Massini, Multiculturalismo y Derechos Humanos, op.cit., p. 69.

583 R. Spaemann, Personas. Acerca de la distinción entre “algo” e “alguien”, trad. J. L. del Barco, Pamplona,

157 particularismo e historicidade; e não existe expressão cultural que não tenha um fundamento natural584.

Em síntese, uma característica central da moderna teoria de direito natural é a crença numa natureza humana universal, pelo que o que fundamenta o direito de cada pessoa, de cada comunidade cultural ou de cada sociedade política, a prosseguir o próprio bem, é a pertença de todos – considerados isoladamente ou na sua inclusão em diversos grupos sociais – a uma natureza comum585.

E as dimensões de uma comunidade que tornam possível a prossecução da perfeição humana, não se limitam à economia ou à política, mas incluem as dimensões marcadamente espirituais do homem: a ética, as tradições, a língua, as crenças religiosas, as experiências estéticas, os usos sociais, a história partilhada. Estas dimensões constituem os elementos fundamentais para o desenvolvimento da personalidade humana, entendida de modo completo, projectada ao longo de toda a vida e integrando participativamente o bem comum do resto das pessoas que constituem a comunidade. Assim, o que justifica o respeito pelas diversas comunidades culturais é o seu carácter de veículos, marcos ou ambientes necessários para a promoção, prossecução e realização do bem humano, em especial o bem humano comum. Mas quando, pelo contrário, as tradições culturais de um grupo contêm aspectos claramente contrários a alguma das dimensões da excelência humana, não existe então direito ao seu respeito e à sua defesa586.

Numa perspectiva liberal, JOSEPH RAZ587 propõe uma defesa do multiculturalismo e do direito à identidade dos grupos culturais, com base na ideia da inevitabilidade do pluralismo cultural, segundo a qual todas as culturas, mesmo que sejam incompatíveis

584 Tomando como exemplo a actividade humana alimentícia, verifica-se que a mesma reveste-se de notável

variação de modalidades através dos tempos e dos povos, mas, por outro lado, possui fundamento inegável na necessidade do ser humano se alimentar; ainda assim, as ditas modalidades culturais de alimentação possuem certos limites naturais que não podem violar, sob pena de consequências negativas para a saúde e a vida humana. Algo similar ocorreria com toda a dimensão ética e jurídica da existência humana.

585 Defender-se o contrário, levaria a situações inadmissíveis, tais como: o genocídio nazi, cujos

perpetradores começaram exactamente por qualificar como “untermenschen” os judeus, os eslavos e todos os que pretendiam eliminar; os defensores do aborto, que centram a sua argumentação na negação da qualidade de pessoas aos nascituros.

586 Assim seria no caso de práticas existentes em certas culturas, tais como a morte dos primogénitos do sexo

feminino, a excisão do órgão sexual feminino e o abandono à morte das crianças defeituosas e dos idosos. São exemplos fornecidos por Massini, Multiculturalismo y Derechos Humanos, op.cit., p. 71, que, curiosamente, neles não inclui a circuncisão masculina.

587 Multiculturalism: A Liberal Perspective, in Ethics in the Public Domain. Essays in the Morality of Law

and Politics, Oxford, Clarendon Press, 1996, apud Massini, Multiculturalismo y Derechos Humanos, op.cit., p. 76-79.

158 entre elas, possuem igual valor intrínseco e não existe um critério objectivo com o qual possam ser julgadas segundo cânones de superioridade ou inferioridade. Trata-se de uma argumentação liberal, uma vez que enfatiza o papel das culturas como pré condição e factor que dá forma e conteúdo à liberdade individual.

De qualquer modo, RAZ acaba por reconhecer que o pluralismo das culturas é relativo, já que todas elas terão de ser toleradas, defendidas e promovidas só na medida em que não sejam “opressivas”, i.e., que restrinjam de modo não razoável o exercício da liberdade individual dos que as integram. Assim, o princípio do pluralismo cultural subordina-se, em última instância, ao princípio liberal da autonomia na escolha dos modos de vida ou dos projectos pessoais.

A esta perspectiva liberal costuma apontar-se que o princípio da autonomia – segundo o qual se elege como especialmente valiosa a liberdade de escolha dos planos de vida pessoais – choca contra uma evidência inegável: a de que “é possível eleger planos de vida insensatos, cursos de acção imorais e degradantes, que frustrem definitivamente a realização humana dos bens básicos e conduzam à desintegração pessoal e social”588. Ainda nesta linha de pensamento crítico, a autonomia é apenas condição antropológica da moralidade, já que sem autonomia não é possível a moralidade. Mas a autonomia em si mesma, nem sempre é moralmente valiosa. Sê-lo-á apenas quando escolhe entre os bens humanos básicos, entre as diferentes possibilidades de realização da excelência humana, mas não quando escolhe um curso de acção directamente dirigido à frustração de um bem (seja este referenciado apenas ao sujeito ou igualmente a terceiros).

Mas a verdade é que o próprio RAZ acaba por recorrer a certos bens básicos e à natureza humana como justificação racional do seu multiculturalismo ético. Com efeito, depois de colocar o exercício da liberdade no centro da sua argumentação a favor do multiculturalismo, conclui afirmando que a pertença a um grupo cultural torna possível a prosperidade cultural e material, as relações interpessoais e a própria identidade e escreve mesmo que a opressão “frustra sistematicamente a habilidade das pessoas, ou dos grupos

588

159 de pessoas, para realizar ou dar expressão nessa sociedade a um aspecto importante da sua natureza”589

.

Não repugna, pois admitir, que o que justifica o respeito pela identidade cultural será, não só a admissão do exercício da liberdade, mas igualmente a possibilidade concreta de realização de bens humanos.

Na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia590 pode encontrar-se uma perspectiva multicultural ou multiétnica591, quer no seu preâmbulo (“respeito pela diversidade das culturas e das tradições dos povos da Europa”), quer em diversas disposições, como os artigos 22º (que repete o respeito pela “diversidade cultural, religiosa e linguística”) e 21º (não discriminação em razão “do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional” ou ainda “nacionalidade”).

Neste contexto, o artigo 3º nº 1 da Carta (“Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental”) pode ser entendido592 como consubstanciando uma plena valorização da liberdade de autodeterminação pessoal quanto à sua integridade física e mental, numa tripla perspectiva: direito a manter a integridade contra agressões de terceiros593; direito a realizar e manter essa integridade; liberdade de cada um se auto determinar com respeito à sua integridade. Desta forma se consagraria a possibilidade de respeito pela dignidade humana, pelo direito ao desenvolvimento da personalidade e o respeito dos comportamentos de cada um enquanto expressão da identidade de grupo (afirmação da união e coesão com o grupo étnico, religioso ou outro) e, nessa medida, da própria identidade pessoal.

Ainda assim, não pode nunca escamotear-se o facto de certos comportamentos – mesmo que enquadrados numa limitação voluntária de direitos de personalidade ou direitos fundamentais – poderem ser de tal forma desviantes em relação ao que é ética, cultural ou

589

Multiculturalism: A Liberal Perspective, op.cit., p. 184, apud Massini, Multiculturalismo y Derechos Humanos,op. cit., p. 79.

590 Publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 18.12.2000 (2000/C 364/01).

591 Na terminologia de Maria Carmela Venuti, Integrità della persona e multietnicità, in Família, Rivista di

diritto della famiglia e delle sucessioni in Europa, 3, Iuglio-Settembre 2003, Giuffrè Editore, 2003, p. 603 e passim.

592 Assim, Carmela Venuti, Integrità della persona e multietnicità, op.cit., p. 607 e passim.

593 A versão na língua inglesa parece igualmente clara quanto a este aspecto (“Everyone has the right to

respect for his or her physical and mental integrity”), enquanto que as versões francesa e alemã optaram por um “droit á son inegrité physique et mentale” e um “Recht auf körperliche und geistige Unversehrtheit”.

160 socialmente admissível em certa comunidade ou sociedade, que se suscite a questão da sua legitimidade. Seria o exemplo clássico da mutilação genital feminina (excisão)594, se bem que para a questão poderá não ser indiferente saber se a mesma se pratica em alguém menor ou incapaz ou em pessoa maior, no pleno uso das suas faculdades e com o seu expresso e esclarecido consentimento.

No documento Declarações antecipadas de vontade (páginas 154-160)

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