• Nenhum resultado encontrado

Vontade, liberdade, autodeterminação e autonomia

No documento Declarações antecipadas de vontade (páginas 63-66)

São dois os modos de desenvolvimento da actividade espiritual do homem: o conhecer e o querer. Pelo conhecer, apreendem-se os objectos e faz-se a sua captação mental. Pelo querer, exercita-se uma faculdade em direcção a um fim ou valor.

Pode, pois, entender-se a vontade – do ponto de vista psicológico – como “uma faculdade espiritual do homem que manifesta uma tendência, um impulso para algo, a realização de um valor intelectualmente conhecido”218, uma faculdade cujo carácter principal se encontra na tendência.

Para além de poder ser perspectivada sob este prisma psicológico, a vontade também é objecto de consideração noutros campos do conhecimento, como a ética, a filosofia e o direito219. Assim, do ponto de vista ético, a vontade traduz-se numa atitude ou disposição moral para querer alguma coisa. Do ponto de vista filosófico, é encarada como uma “entidade a que se atribui absoluta subsistência e se converte, por isso, em substrato de todos os fenómenos”220

, i.e., numa espécie de motor impulsionador e director do movimento no reino das faculdades. Na perspectiva do direito, a vontade assume especial relevância, já que é elemento “constituinte mínimo”221 dos actos jurídicos, ou seja, dos actos a que o Direito atribui efeitos. E metafisicamente consiste numa entidade à qual se atribui absoluta subsistência e se converte, por isso, em substrato de todos os fenómenos. Há ainda que distinguir a vontade jurídica da vontade psicológica. A psicologia conhece a vontade como um tipo especial de tendência psíquica (representação consciente de um fim

218 Francisco dos Santos Amaral Neto, A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica

(perspectivas estrutural e funcional), in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Ferrer-Correia, II, Boletim da Faculdade de Direito, Número Especial, Coimbra, 1989, p. 11.

219 Sobre o papel da vontade no Direito, com referências à Willenstheorie (de que foram defensores nomes

ilustres como Puchta, Savigny, Windsheid, v. A. Giulliano, La volontà nel diritto, in Rivista del diritto commerciale e del diritto generale delle obbligazioni, Anno LVII, nº 1-2 (gennaio-febbraio 1959), parte prima, pp. 73-75.

220

Ferrater Mora, Diccionario de filosofia, Buenos Aires, 1965, p. 919, apud Amaral Neto, A autonomia privada, op.cit., p. 11.

221 Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Volume II (Acções e Factos Jurídicos), 2ª edição, Coimbra

Editora, 2003, pp. 13, 14, explicando (a propósito do acto jurídico) que a relevância da vontade perante a ordem jurídica pode situar-se na voluntariedade, na intenção e na finalidade de produção de efeitos jurídicos.

64 e de meios adequados para o atingir) e estuda-a no campo do ser. O Direito analisa-a sobretudo no campo do dever ser, reconhecendo-a como factor de eficácia jurídica.

À possibilidade ou faculdade de actuar em harmonia com a vontade chama-se liberdade, conceito plurívoco, complexo222, mas que assume especial importância no Direito, até pelos limites que se colocam à sua actuação. A liberdade jurídica é a possibilidade da pessoa actuar com transcendência jurídica: do ponto de vista do sujeito traduz-se no poder de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas; do ponto de vista objectivo consiste no poder de regular juridicamente tais situações223. NORBERTO BOBBIO224 distingue ainda entre a liberdade “segundo a doutrina liberal” - como um estado de não impedimento (como se diz livre o homem que não está em prisão) – da liberdade como “autonomia” (na linguagem técnica da filosofia) no sentido do poder de dar normas a si próprio. No primeiro caso, liberdade contrapõe-se a impedimento e associa-se à ideia de acção; no segundo caso, é o inverso de constrição e associa-se a vontade (“uma vontade livre é uma vontade que se autodetermina”).

Com efeito, designa-se normalmente por autonomia a esfera de liberdade de que o agente dispõe no âmbito do direito privado. Desta forma, a autonomia da vontade é “o princípio de direito privado pelo qual o agente tem a possibilidade de praticar um acto jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos”225. AMARAL NETO distingue os conceitos de autonomia da vontade e autonomia privada, considerando o primeiro como manifestação de liberdade individual no campo do “direito psicológico” e a autonomia privada como o poder de o indivíduo dar a si próprio um ordenamento jurídico (perspectiva subjectiva), bem como o carácter próprio desse ordenamento, constituído pelo agente em oposição ao carácter dos ordenamentos constituídos pelos outros (perspectiva objectiva)226.

222 É conceito que pode apreciar-se de variados ângulos e perspectivas: como liberdade natural, como

liberdade social ou política, como liberdade pessoal, como liberdade jurídica.

223

A liberdade jurídica (fazer ou não fazer, ao arbítrio de cada um, todo o acto não ordenado nem proibido por lei e, de modo positivo, a faculdade de optar entre o exercício e o não exercício de direitos) distingue-se da liberdade da vontade, ou liberdade como poder (a faculdade de actuação dentro da esfera jurídica).

224 Apud Joaquim de Sousa Ribeiro, O Problema do Contrato, As cláusulas contratuais gerais e o princípio

da liberdade contratual, Almedina, Colecção Teses, reimpressão, Coimbra, 2003, p. 31, n. 34.

225

Amaral Neto, A autonomia privada, op. cit., pp. 12-14.

226 Para António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Coimbra ,

1985, p.44, n.63), a expressão autonomia da vontade designa “correntes do pensamento jurídico, já superadas, sobrevalorizando o papel da vontade, mormente nos capítulos da interpretação negocial e das divergências e vícios da vontade”).

65 O contrário de autonomia é heteronomia227, significando esta a sujeição a um direito criado por outrem que não aquele ou aqueles a que se destina. Mas convém lembrar que entre a pura autonomia e a pura heteronomia existem muitas vezes “situações e regulações intermédias mais autónomas ou mais heterónomas, numa transição fluida e gradativa”228. A autonomia privada é jurígena - "corresponde a um espaço de liberdade jurígena atribuído pelo Direito à pessoas", explica MENEZES CORDEIRO229 - verdadeira criadora de normas jurídicas entre particulares, uma vez que se traduz no “estabelecimento, conformação e extinção, autónomos, das relações jurídicas privadas por parte dos homens segundo a sua vontade individual, dentro dos limites estabelecidos pela ordem jurídica”230. Pode, assim, afirmar-se, com OLIVEIRA ASCENSÃO, que a autonomia – de acordo, aliás, com o seu sentido etimológico: poder de estabelecer as suas próprias regras – traduz- se no poder de dar-se um ordenamento, querendo com isto significar-se que “a ordem jurídica global admite que os particulares participem da construção da sua própria ordem jurídica, nos quadros embora da ordem jurídica global”231. Tal não significa que seja fonte de Direito, pois não está na origem de regras ou normas gerais, mas sim de situações jurídicas.

O objecto da declaração ou manifestação das partes, no exercício da autonomia privada, é caracterizado pelo seu conteúdo material, que consiste na auto-regulação de interesses232 (verdadeira função do negócio jurídico, onde releva com particular intensidade, a autonomia privada), que é de índole jurídica (no sentido atrás deixado expresso, de criação de preceitos individuais e não de normas gerais)233.

Neste contexto, a autonomia privada surge como uma verdadeira projecção na ordem jurídica do personalismo ético, entendido este como concepção axiológica da pessoa

227 Sobre estes conceitos e as suas relações (também numa perspectiva histórica), v. Castrillo Santos,

Autonomia y heteronomia, in Anuario de Derecho Civil, Tomo II, Fasciculo II (Abril-Junio), Madrid, 1949, pp.565-605.

228 Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., p. 15., Teoria Geral, Relatório, op. cit., p. 60. 229 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, op. cit., p.217. 230

Capelo de Sousa, Teoria Geral do Direito Civil, Volume I, op. cit., p. 59.

231 Oliveira Ascensão, Direito Civil, II, op.cit., pp. 79, 80.

232 Assim, Oliveira Ascensão, idem, p. 87 e, ao que parece, Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito

Civil, Sumários desenvolvidos para uso dos alunos do 2º ano, 1ª turma do Curso Jurídico de 1980/81, Centelha, Coimbra, 1981, pp. 10-16, que, embora falando de autodeterminação, refere-se ao “poder de auto- gestão da sua esfera de interesses”. Diferentemente, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, op.cit., pp. 301-306.

233 Com indicação de diversas posições assumidas quanto ao objecto da declaração no exercício da autonomia

privada, bem como no que concerne à questão da “causa eficiente”, v. Oliveira Ascensão, Direito Civil, II, op.cit., pp. 79-88.

66 enquanto centro e destinatário da ordem jurídica, impondo o reconhecimento originário e inerente da personalidade, da igualdade de todas as pessoas, da sua dignidade e liberdade. O fundamento da autonomia privada é, no plano imediato, a liberdade234 como valor jurídico e, em termos mediatos, a concepção da pessoa como base da ordem jurídica e social e de que a sua vontade – desde que manifestada de forma livre – é “instrumento de realização da justiça”235

.

No documento Declarações antecipadas de vontade (páginas 63-66)

Outline

Documentos relacionados