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A crise da autonomia da vontade: uma perspectiva funcional A crise da autonomia da vontade

No documento Declarações antecipadas de vontade (páginas 73-78)

A concepção teórica da autonomia privada é produto do individualismo261, que reúne e consolida tendências verificadas no direito romano, no direito canónico, no contrato social e no liberalismo económico, e que se manifesta, historicamente, no jusnaturalismo. Revela- se como o produto e instrumento de um processo político e económico baseado na liberdade e na igualdade formais. O seu fundamento ideológico é, pois, o liberalismo. Na verdade, o rápido desenvolvimento do comércio e da indústria, a crescente divisão do trabalho e a especialização, aumentaram consideravelmente o intercâmbio de bens e serviços. O princípio da autonomia da vontade tornou-se então muito útil para o desenvolvimento deste processo, acolhido pelo pensamento económico liberal que, na sua expressão mais pura, acredita que a lei da oferta e da procura responde aos melhores interesses da sociedade.

Considerado expressão da liberdade do homem, o princípio da autonomia – enquanto manifestação marcante do pensamento filosófico-cultural e económico do liberalismo - exacerbava o papel da vontade individual. O contrato assumia-se como o modelo ideal de justiça e como um importante instrumento de liberdade. Se alguém contratasse sem acautelar os seu interesses “poderia afirma-se, ainda assim, ter tido pelo menos a satisfação de ser «l’artisan de son propre malheur»262. Era a doutrina do «laissez faire, laissez

passer, laissez contracter» já que o contrato beneficiava de uma presunção de utilidade

social.

Mas com a formação da sociedade de massas, o crescente intervencionismo do Estado e a concentração do poder económico, a autonomia entrou em crise no século XX. A liberdade de criação sofre restrições directas (como no contrato de seguro) ou indirectas (tipificação

260 Amaral Neto, A autonomia privada, op.cit., p. 16.

261 Aqui no sentido de “doutrina segundo a qual se concede à pessoa humana ... uma supervalorização

relativamente à sociedade” – Amaral Neto, A autonomia privada, op.cit., p. 19.

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74 das situações jurídicas); a liberdade de estipulação constrange-se perante uma crescente rede de regras injuntivas; as cláusulas contratuais gerais suprimem muitas vezes a liberdade de estipulação e, por consequência, a liberdade de negociação263. O Estado passou a intervir activamente para corrigir as injustiças a que o liberalismo conduzia e o contrato viu-se denunciado como possível fonte de injustiça e de desordem, tornando-se lugar comum falar-se de “um frasco de perfume vazio”264.

As críticas à autonomia densificam-se em argumentos de ordem filosófica, moral, económica e ideológica.

Do ponto de vista filosófico, ao individualismo contrapõem-se as tendências sociais contemporâneas que consideram o homem um ser social, que vive necessariamente em grupo, circunstância da qual decorrem inevitáveis relações e condicionamentos que limitam a sua capacidade de agir individualmente, no seu exclusivo interesse.

Numa perspectiva moral, torna-se óbvio que não basta ao Direito a consagração da liberdade e da igualdade meramente formais, que devem ser conformadas por critérios materiais, o que justifica a intervenção de noções como a de bons costumes e ordem pública. Além disso, tem-se apontado que “as relações contratuais pressupõem um certo movimento volitivo, mas isso não pode implicar o reconhecimento de uma vontade totalmente incondicionada” e ainda que “é preciso considerar a autonomia da vontade em face da heteronomia estatal, ou seja, o Estado pode até não constranger a liberdade subjectiva (vontade livre), mas pode constranger o exercício dessa liberdade”265.

Sob o ponto de vista económico, há quem advogue a crescente intervenção do Estado na organização e disciplina dos sectores básicos da economia266, com vista a um maior equilíbrio das forças económicas e sociais em presença e, nessa medida, à defesa de valores como a segurança, a justiça, a igualdade, o bem comum, a paz social.

263 Sobre se ainda há autonomia na ausência de liberdade de estipulação, mas pronunciando-se em sentido

afirmativo, v. Oliveira Ascensão, Direito Civil, II, op.cit., pp. 96-99.

264 Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, op.cit., p. 47. 265

Olney Queiroz Assis, Princípio da autonomia da vontade x princípio da boa-fé (objectiva). Uma investigação filosófica com repercussão na teoria dos contratos, in Jus Navegandi, Teresina, a. 9, n. 593, 21 Fevereiro 2005 (Em linha). (Consultado em 18.05.2016). Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6349.

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75 Por fim, ideologicamente, como já se referiu, o princípio da autonomia privada encontra a sua razão de ser na expressão mais pura do liberalismo económico, numa época histórica em que o Estado tinha uma função mais política do que económica ou social. Era o Estado de Direito, dirigido principalmente à defesa dos direitos individuais dos cidadãos. Sobretudo após as duas guerras mundiais do século XX, surge o Estado Social, intervencionista, protegendo os sectores mais desfavorecidos, paralelamente a um claro declínio da concepção liberal da economia e a uma consequente crítica ideológica do dogma da vontade. Esse intervencionismo tem igualmente lugar no campo do direito privado assistindo-se ao que alguns apelidam de “socialização” ou “publicização” do Direito Civil267.

O individualismo do século XIX (resultante das concepções jusnaturalistas e iluministas que se positivam no Código Napoleónico e no BGB268, nos quais a pessoa, com a sua liberdade e autonomia era o centro por excelência do universo jurídico), foi-se reduzindo gradualmente a partir do começo do século XX e, acentuadamente, a partir da Segunda Guerra Mundial, mercê duma progressiva intervenção do Estado, limitadora da autonomia. A autonomia privada passa a ter carácter instrumental em face da liberdade de iniciativa económica: as limitações a esta também se aplicam àquela.

Convém, contudo, reter que as críticas dirigidas ao contrato e ao princípio da autonomia privada dirigem-se principalmente ao sentido que o individualismo lhe atribuía e à “idolatria que lhe era prestada”269

. Por isso, o que se constata não é tanto um declínio do contrato, mas sim um empolamento da sua dimensão social.

De igual modo, o direito subjectivo – enquanto poder jurídico dependente da vontade do respectivo titular270 - vê-se limitado por figuras como o abuso do direito ou, então, o respectivo exercício fica, de alguma forma vinculado, quer por imperativos de ordem ética, quer pelo seu fim económico e social, não sendo, assim, suficiente a titularidade do poder formal.

267 Amaral Neto, A autonomia privada, op.cit., p. 32, 33, que cita Jean Carbonnier e René Savatier. 268

Castrillo Santos, Autonomia y heteronomia, op.cit., p. 2, lembra que o princípio da “autonomia da vontade” teve igualmente expressão no código espanhol de 1889 “y en otros, especialmente los de raiz latina, con la fuerza de un dogma”.

269 Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, op.cit., p. 47. 270

76 Portanto, mais do que uma redução quantitativa do espaço reservado à actuação dos particulares no exercício da sua autonomia, verifica-se sobretudo uma mudança de sentido do princípio da autonomia, sendo certo que os seus limites e restrições se fundamentam na necessidade de defender a própria autonomia. No fundo, trata-se de evitar que do exercício (abusivo) da autonomia de uns resulte a ofensa da autonomia de outros. Como lembra HÖRSTER271, “a autonomia privada não está à disposição da autonomia privada”.

Funcionalização

Tradicionalmente, para a concepção estrutural, dogmática, do Direito, a ciência jurídica não deveria ocupar-se com as funções dele, mas apenas com os seus elementos estruturais, reservando-se a análise funcional para a sociologia e a filosofia. Existe, contudo, uma relação estreita entre, por uma lado, a teoria estrutural do Direito e o ponto de vista técnico-jurídico e, por outro, a teoria funcional e o ponto de vista sociológico e filosófico. Ao jurista interessa saber não apenas como o Direito é feito, mas igualmente a sua causa final, para que serve.

É desta forma que surge o conceito de função em Direito, expressão que designa “o papel que um princípio, norma ou instituto desempenha no interior de um sistema ou estrutura, de partes interdependentes”272

.

Assim, a funcionalização dos institutos, princípios, normas ou categorias jurídicas significa que o Direito passa a interessar-se pela sua função e eficácia, sobretudo no tocante ao controlo e disciplina social, bem como na sua relação com a economia. Daí a função económico-social dos institutos jurídicos, inicialmente em matéria de propriedade e, depois, de contrato. No que concerne à autonomia privada, a preocupação com a sua função económico-social, significa que o seu reconhecimento e exercício estão, de certo modo, condicionados à sua utilidade social, i.e., à satisfação do bem comum273 e ao seu objectivo tendencial de igualdade material e justiça social. O novo Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002) acolhe de forma expressa a ideia de função social do contrato (condicionadora da autonomia privada, rectius da liberdade de contratar) no

271 A Parte Geral, op.cit., p. 55.

272 Amaral Neto, A autonomia privada, op.cit., p. 36.

273 Amaral Neto, idem, p. 38, explica que ideologicamente, a função social no Direito, representa a

77 artigo 421º onde se lê: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da

função social do contrato”274

.

Assim sendo, a funcionalização de um princípio, norma instituto ou direito, implica o estabelecimento de limites pelo ordenamento jurídico275 ao exercício das faculdades subjectivas. Por isso, a função social é um “princípio geral de actuação jurídica”, um “princípio superior ordenador”276

. O Direito é, desta forma, chamado a exercer uma função correctora e de equilíbrio de interesses dos vários membros da sociedade, limitando o poder jurídico do sujeito (pessoa), mas sem o desconsiderar já que ele é, em última análise, o fim do próprio Direito.

À noção de função não é estranha a ideia de que a vinculação resultante da autonomia privada pode ser colocada em crise não só por razões ligadas à liberdade do agente, mas igualmente ao próprio conteúdo do negócio, já que este “é consentimento e conteúdo”, donde resulta que a validade de uma vinculação, mesmo consentida, depende da satisfação de um interesse digno de protecção. O conteúdo duma situação jurídica pode, por si, ser causa de invalidade. “O exercício disfuncional é rejeitado”, esclarece OLIVEIRA ASCENSÃO277, lembrando o contributo de JHERING para a recuperação de preocupações de substância para o conceito de direito subjectivo ao atribuir-lhe dois elementos: o substancial (fim prático do direito) e o formal (protecção através da acção da Justiça). Todo o direito seria então expressão dum interesse reconhecido pelo legislador (fórmula do interesse juridicamente protegido).

Esta funcionalização não deixa de operar mesmo em relação aos direitos subjectivos e aos direitos de personalidade278, pese embora o facto de os direitos subjectivos terem bastante que ver com a ideia de liberdade individual (e, por isso, eram entendidos como

“liberties”279, ou como “espaços de liberdade”, (Freiheitsräume280

) e os direitos de

274 Sobre a “função social” no novo Código Civil brasileiro, v. algumas referências em Cassio M. C.

Penteado Júnior, O relativismo da autonomia da vontade e a intervenção estatal nos contratos, in Jus Navegandi, Teresina, a. 7, n. 63, mar. 2003, 8Em linha). (Consultado em 18.05.2016). Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3805.

275 Na sua positivação normativa ou através de princípios vinculantes. 276 Amaral Neto, A autonomia privada, op.cit., p. 39.

277 Direito Civil, III, op.cit., pp. 63, 64, 258, 259. 278

Como parecem admitir Oliveira Ascensão, Direito Civil, III, op.cit., p. 96, que fala no “carácter funcional” do direito subjectivo (a propósito da questão do objecto dos direitos de personalidade), Carvalho Fernandes, Teoria Geral, I, op.cit., pp. 86, 87 e Heinrich Hörster, A Parte Geral, op.cit., pp. 226-231.

279 “For Right is Liberty, namely that Liberty which the Civil Law leaves us”, Hobbes, Leviathan, II, 27,

78 personalidade serem considerados iura in se ipsum (com os correspondentes poderes de uso e fruição, de acção ou de omissão, de exigência de respeito e de exigência de participação).

Realmente, vem-se instalando a ideia de que os direitos subjectivos são atribuídos para a realização de certos fins económico-sociais, que podem mesmo “ultrapassar a esfera individual e egoísta do seu titular”281, além de que o exercício discricionário do direito subjectivo pode ser um meio de causar dano a terceiro ou pode ainda traduzir-se em comportamentos objectivamente reprováveis (por violarem valores inerentes ao Direito ou por este acolhidos). Tudo isto significa a imposição de um limite à ideia contida na fórmula romanista segundo a qual os poderes contidos no direito subjectivo incluiriam o «jus

utendi, fruendi ac abutendi». Acolhida assim a funcionalização do direito subjectivo, é

como se este tendesse a ser cada vez mais poder funcional e cada vez menos direito subjectivo.

Aliás, é seguramente muito redutor entender o direito subjectivo apenas como um poder da vontade do respectivo, pois “esquece-se o «sujeito passivo» - que não é «sujeito» nem «passivo»; esquece-se a dimensão social, solidarística, de qualquer direito, de qualquer instrumento de inter relacionação”282.

Será provavelmente neste contexto que MENEZES CORDEIRO fala da associação da autonomia com "uma ideia de auto-responsabilidade"283.

6. Autonomia da vontade, disponibilidade e possibilidade de consentimento

No documento Declarações antecipadas de vontade (páginas 73-78)

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