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A quota do trabalho comunitário como foco de disputa

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A ALDEIA: UMA COMUNIDADE DE FAMÍLIAS

2.3 Os Valores Que Regem E Estruruam A Convivência Na Comunidad Yaveña

2.3.2 A quota do trabalho comunitário como foco de disputa

A distribuição da água não oferece muito espaço a atritos duradouros, pois o que está em jogo é o acesso ao recurso, porém, não parece ocorrer o mesmo com o trabalho que cada família deve destinar à manutenção dos canais. Aparentemente nem sempre todos agem segundo as normas, quer por falta de vontade, quer por impossibilidade. Em quase todas as aldeias, obtive depoimentos nos que as pessoas se queixavam dos vizinhos porque nem sempre faziam o serviço ou enviavam as crianças ou mulheres para “palear”. Algumas pessoas julgaram essas atitudes de “oportunistas”, dando a entender que essas famílias destinavam os membros do lar menos produtivos ao trabalho comunitário, enquanto deixavam os mais produtivos para o trabalho que beneficia unicamente à família. Situações desse tipo entram na metáfora do carro de boi, enunciada por Camilo (depoimento 2.11), com a que tentou retratar que, no que tange ao trabalho comunitário, as pessoas podem encostar-se nela para tentar tirar redito do trabalho dos outros ou realmente empurrá-la para o benefício de todos.

Contudo, parece ser difícil para quem conversa com diferentes pessoas de uma aldeia atribuir unicamente a uma atitude especulativa os motivos dessa inadimplência. Em alguns casos, os membros mais produtivos do lar efetivamente encontram-se trabalhando em outras regiões nos momentos dos mutirões, o que faz com a família envie os filhos ou mulheres para suprir sua falta. Em outros, os membros são idosos e não estão em condições de assistir.

Mas o dado significativo desse tipo de desavença é a percepção dos membros de grupos domésticos diferentes, ao perceber como especulativa a atitude dos outros e supor que pretendem tirar vantagem da comunidad sem oferecer algo em troca. É por isso que uma das formas que têm os aldeões para minimizar esse tipo de conflitos é ser seletivos no momento de aceitar alguém que vai morar na aldeia. Já entre vizinhos existem outros mecanismos, como ser cuidadoso no momento de convidar ou aceitar alguém construir sua morada e/ou fazer uso dos rastrojos que se encontram no âmbito do canal que utilizam.

Como já enunciei, o mais freqüente é que pessoas com laços de parentescos se instalem nas proximidades de seus parentes. Dessa maneira, há uma tendência a redefinir os conflitos que puderem surgir entre grupos domésticos, pois já não são entre vizinhos, mas entre parentes. Assim, muda o código e critérios com os quais se realizam as prestações e resolvem os desentendimentos. De fato, é mais fácil sensibilizar-se com as carências de um grupo doméstico de parentes que com as dos vizinhos. Entre parentes é maior a tolerância como também o umbral de tensão a ser atingido para o atrito virar um conflito comunitário. Muito provavelmente isso se deva a que, se bem a reciprocidade que existe em ambos é do tipo balanceada, entre parentes as trocas aproximam-se do tipo generalizada, pois fazem parte da mesma linhagem e, portanto, existe certo compromisso moral com a subsistência do outro grupo doméstico. Isso faz com que a devolução de favores esperada seja em um tempo mais extenso ou impreciso. Esse fato contribui para que as fronteiras que delimitam os interesses de cada grupo doméstico sejam mais difusas e sejam minimizados certos antagonismos entre os grupos domésticos.

Dentre os reclamos mais recorrentes enunciados pelas pessoas engajadas nas ações das organizações aborígines, encontra-se o não comparecimento dos representantes das famílias às diferentes instâncias convocadas. Mensalmente um representante de cada família deve assistir à reunião comunitária. Na maioria das aldeias, essas reuniões são realizadas pela noite na mesma data de cada mês para evitar sobreposições com a jornada de trabalho. O comparecimento às reuniões é considerado pelas lideranças comunitárias essencial para resolver os problemas comunitários e, especialmente, para formular e executar projetos. Mas a assistência dista de ser a desejada por eles.

Embora existam aldeias nas quais participa regularmente entre 50 e 90 % dos representantes das famílias, segundo as lideranças comunitárias, parece ser que a situação mais comum é a flutuação da participação. Isto é, apenas em certas ocasiões estão todos representados. Na perspectiva das lideranças comunitárias essa situação afeta seu trabalho.

Não assistir às reuniões supõe uma transgressão das normas comunitárias. As pessoas costumam justificar-se argumentando “falta de tempo”. Não ter tempo supõe ter muito trabalho por fazer na roça, na criação dos filhos, no cuidado do gado ou noutras coisas que fazem parte do universo doméstico e, portanto, não precisam ser explicadas para outros. O inadimplente perante o questionamento do seu comportamento contrapõe o (pre)texto do “dever do trabalho”. Replicar com um questionamento de ordem moral procura anular o julgamento, pois a justificativa refere- se a uma qualidade moral do inadimplente, a de “trabalhador”. Assim, quem não assiste não é por “preguiçoso”, mas por ser afeito ao trabalho.

As lideranças comunitárias não se encantam com essa retórica e reconhecem-nas como “desculpas”. Dependendo de quem estiver envolvido, essa troca verbal pode ser o prólogo de duelos verbais que, como é de supor, desenrolam-se em termos morais. Os inadimplentes podem ser alvo de diferentes qualificativos dentre os que destacam “egoísta”, “individualista”, “descomprometido”, “oportunista” ou “falto de consciência”, com os que se procura atingir sua reputação, espécie de sanção ou punição simbólica, e assim esperar que revertam sua atitude.

Conforme o analisado por Pitt Rivers “a unidade moral da aldeia consegue-se através de uma opinião pública ativa e altamente articulada (...) possui uma unidade derivada da proximidade física e moral, do saber comum e da aceitação de valores comuns” (PITT RIVERS, 1971 [1954]:45). Em última instância, a opinião pública faz-se efetiva através da vergonha, ou seja, quando o agente sente afetado seu prestígio, ao ser acusado ou condenado pelo resto dos membros de sua comunidade. É nesse contexto que adquire seu potencial analítico a noção de small politics – pequena política– proposta por Bailey (1971:2), pois através dela pode ser analisado como os agentes se engajam nesse ‘jogo social’ que envolve a construção de sua reputação e a dos outros, a partir de lidarem com as regras e valores nesse campo social. O ‘bom jogador’ é aquele que pode servir a seus próprios interesses enquanto corresponderem com o interesse comunitário. Nesse jogo, constrói-se uma hierarquia moral no universo social da aldeia que possibilita compreender as ações e visões de mundo dos agentes a partir de sua posição.

Assim como os inadimplentes podem ser alvo de estigmas, eles também podem replicar tentando delegar a responsabilidade nas lideranças comunitárias. Como reconheceu o secretário de uma OCA: “alguns não assistem porque dizem que é perda de tempo, às vezes recebemos críticas que nos reunimos sem fazer nada, que não trabalhamos, mas às vezes não se pode...” (SM-C-2007:4). Nesse caso, os vizinhos questionados contestaram colocando em dúvida a própria vocação de trabalho das lideranças comunitárias. Para os membros da OCA a qualidade

da gestão das autoridades é avaliada segundo a quantidade de projetos que conseguirem para o resto, vivenciada pelas famílias através dos benefícios que recebem. Por sua vez, as lideranças argumentam que só podem fazer coisas com a participação do resto. Em ambos os argumentos, o trabalho e sua produtividade ou benefício constituem-se na motivação que está por trás da participação, isto é, pelo que vale a pena participar. Não obstante, mais do que ser uma convergência de visões, constitui-se em um argumento de dupla face.

Não por acaso, vários presidentes das OCAs deixaram entrever em seus relatos que as pessoas “aparecem nas reuniões quando houver alguma coisa para repartir”, insinuando que quando era necessário que contribuíssem com trabalho o entusiasmo não era o mesmo. Essa percepção foi a retratada por Camilo, quando se referiu a encostar-se no carro de boi e não empurrar, como uma atitude oposta a trabalhar pelo bem de todos na comunidad.

Para limitar esse tipo de comportamento, em várias aldeias as autoridades impuseram como norma no estatuto comunitário que a inadimplência a uma reunião ou evento de trabalho deve ser compensada com um multa em dinheiro ou sua porção equivalente em trabalho para beneficio da comunidad. No entanto, parece ser que a norma não é fácil de ser aplicada. Em um âmbito social onde todos têm vínculos de vizinhança, quando não de parentesco, assumir o papel de autoridade e punir alguém pode levar a afetar os vínculos afetivos. Essa norma estatutária adquiriu um papel normativo, mas nem sempre consegue efetivar o punitivo. Em algumas aldeias, tentam reforçar o estímulo à participação através do que é a própria motivação das pessoas, a distribuição dos benefícios. Desse modo, introduziram como critérios que os recursos que se obtiverem dos programas sociais devem ser distribuídos entre aquelas famílias mais necessitadas, que são as que têm uma ativa participação nas atividades da OCA, isto é, “que estão comprometidas com a comunidad”.

Não obstante, esse tipo de incentivo ou a estigmatização que os vizinhos possam implementar como medida de punição nem sempre tem o mesmo efeito nas pessoas. Em todas as aldeias, encontrei pessoas que nunca participavam dos eventos comunitários e, em decorrência, não eram consideradas como potenciais destinatárias dos benefícios dos programas sociais.

Essas pessoas são as que carregam com os estigmas mais despectivos na aldeia. Ocupam o papel de “outsiders” na configuração que constitui uma comunidad, no sentido de Elias (ELIAS, 1994:22). Na maioria das vezes, estão por fora de toda instância de poder e de decisão e são depositários de estigmas que, em certa maneira, referem-se a todo o ruim que puderem ter os membros da comunidad. Sob a perspectiva dos vizinhos, embora façam parte da comunidad por terem direitos a morar no território da aldeia, sua pertença ao grupo de vizinhança é marginal e sua moral não é a mesma que a do resto. Sua existência possibilita diferenciar o comportamento esperado do não desejado, ‘um mau exemplo’, dando visibilidade e delimitando os que se ajustam à ‘comunidad ideal’, através da diferenciação. Provavelmente, é por isso que não significou muito constrangimento para os membros da comunidad falar mal dessas pessoas ante um estranho quanto eu. Em certo modo, a ‘baixa qualidade moral’ dessas pessoas possibilitava- lhes distinguirem-se como membros “comprometidos” com vocação para trabalhar pelo bem- estar do resto sem contemplar o benefício próprio.

Diferentemente das famílias marginadas de Winston Parva estudadas por Elias, esses outsiders yaveños parecem não se apropriar dos estigmas que recebem, mas repelê-los. Nas conversações que tive com alguns deles, quando indaguei-lhes sobre os motivos para não participar nas reuniões comunitárias, um homem argumentou que nesses espaços as autoridades

faziam brigar as pessoas, fato que promovia a divisão na comunidad. Em sua argumentação transluzia-se a posição de destinatário das acusações dos outros que tinha suportado quando assistiu à reunião. Em outra ocasião, um morador de uma aldeia vizinha argumentou que não precisava assistir às reuniões, pois “lá não fazem nada e eu posso sustentar a minha família por minha conta”. Nessa oportunidade, o trabalho constituía ao dissidente em uma pessoa digna que não precisava da ajuda ou da dádivas dos outros para garantir o bem-estar de sua família. Por sua vez, um morador de Sanlucar, referiu-se aos que participavam das reuniões da seguinte forma: “eles pedem uma coisa e outra e querem fazer algo, mas já é tarde, não vão poder fazer porque não há união, cada um puxa para seu lado” (B-SJ, 2005:9).

Note-se que os valores que regem na comunidade moral yaveña não só estão internalizados e são acionados por aqueles moradores que gozam de maior reputação e, portanto, encontram-se nas posições dominantes da hierarquia social, mas também por aqueles que são acusados por não agir segundo as convenções. Nos três depoimentos obtidos as pessoas fundamentaram sua posição desqualificando moralmente o resto, acionando os valores que regem na comunidad. No entanto, cada agente possui uma interpretação particular desses valores ou percebe e avalia de diferente modo o que acontece em uma mesma situação. Por exemplo, na última situação descrita, para os vizinhos a união supunha assistir às reuniões, apesar de que alguém pudesse ser punido ou questionado pelo resto, pois só assim se chega a um consenso nas idéias e na ação. Na narrativa do entrevistado, o próprio ato de questionar o agir de uma pessoa supunha o desrespeito e a briga e, em decorrência, a clivagem do grupo, a desunião. Esse tipo de divergência no seno de uma comunidade é explicado por Pitt Rivers, que enuncia:

“(...) os valores não são uniformes, no sentido de que não são compartilhados igualmente por todos os membros da comunidade (...), mas variam conforme a posição do agente dentro da estrutura social. Essa variação, que às vezes origina rivalidades, conduz também a uma série de inconsistências lógicas, as quais, no entanto, não são sociologicamente inconsistentes. Mais bem devem referi-las à necessidade de reconciliar laços sociais conflituosos dentro da mesma comunidade e dentro dos mesmos indivíduos. As formas em que essa reconciliação verifica-se dão à estrutura da sociedade muitas de suas características.” (PITT RIVERS, 1971:10-11).

Contudo, os ‘outsiders’ não estão excluídos de todos os âmbitos comunitários. No geral, sua participação restringe-se a pagarem pelo uso da água e contribuir com trabalho ou dinheiro na manutenção dos canais de irrigação. Ambas as ações estão relacionadas à água que, como foi analisado, é fundamental para garantir a reprodução biológica de quem mora na aldeia. Se bem eles podem ser excluídos ou, inclusive, autoexcluir-se dos diferentes âmbitos de sociabilidade da aldeia, a água termina unindo-os, quando menos, no planejamento de seu uso. Novamente se evidencia a relevância que tem a água na sociabilidade da região. Pode-se discutir e conviver com pontos de vistas antagônicos sobre diferentes aspectos, sejam religiosos, sejam políticos ou de outro tipo, mas, no que diz respeito a água, a necessidade de chegar a um consenso é imperiosa. Assim, existe uma superposição entre o conjunto de usuários que compartilham um mesmo sistema de provisão de água e os que integram um grupo de convivência. Nessa perspectiva, adquire sentido que os membros de Alcalá interrompessem a provisão de água aos de Grazalema após seu afastamento da OCA. Com esse ato, os vizinhos de Alcalá, além de preservar um

recurso prezado, concretizam um rito de passagem através do qual abandonaram o grupo de convivência que integravam com os de Grazalema para passar a criar o próprio.

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