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A distribuição dos benefícios dos programas sociais como foco de tensão

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A ALDEIA: UMA COMUNIDADE DE FAMÍLIAS

2.3 Os Valores Que Regem E Estruruam A Convivência Na Comunidad Yaveña

2.3.3 A distribuição dos benefícios dos programas sociais como foco de tensão

Certamente a falta de participação é colocada como uma das fontes de tensão, mas a participação ativa dos vizinhos não necessariamente descomprime as fricções que possam surgir. De fato, em uma reunião com alta assistência amplia-se o leque de opiniões e visões de mundo, particularmente no momento de definir o projeto de que precisa a comunidad. Nesses casos, é comum que a prioridade de cada pessoa parta do reconhecimento de suas próprias carências que, por um ato de transferência, são consideradas como próprias e prioritárias do grupo. Isso pode agravar-se no momento de distribuir os recursos de programas sociais conseguidos, que nunca são suficientes para cobrir as necessidades de todos os vizinhos.

Assim como há conflitos que excepcionalmente podem evoluir até culminar na divisão de uma comunidad, o mais freqüente é que persistam como tensões entre os vizinhos que se desenrolam no campo da política de reputação. Casos emblemáticos desses tipos de tensões são os que registrei em todas as aldeias, em torno dos juízos que os membros da comunidade levantam em relação aos beneficiários do Programa Jefes y Jefas de Hogar Desocupados - PJJHD.

Em 2005, na Comissão Municipal de Yavi 100 famílias das 350 existentes eram beneficiárias do PJJHD. Aproximadamente, existiam entre 5 e 10 chefes/as de famílias beneficiarias por aldeia. Essas pessoas foram selecionadas em 2001 por técnicos das instâncias governamentais provinciais. No entanto, são os integrantes das OCAs os que determinam os trabalhos comunitários que executarão e o membro da comunidad que os supervisará.

Embora a forma descentralizada como se executa o PJJHD ofereça certa margem de interpretação sobre o tipo de contraprestação que podem realizar os beneficiários (trabalhos com fins produtivos, sociais, educativos, etc.), nas aldeias yaveñas restringe-se à concreção dos estudos da formação básica e a “trabalhos comunitários”. Para os yaveños “os trabalhos comunitários” são aqueles que beneficiam os vizinhos em oposição ao benefício individual. A maioria dessas ações correspondem à manutenção e limpeza dos prédios e bens de uso comunitário que tradicionalmente devem realizar todos os membros da aldeia.

Os termos em que foi desenhado e é executado o PJJHD favoreceram a exaltação de algumas tensões entre os vizinhos, em particular entre os beneficiários e o resto que evidenciam diferentes aristas das contradições, intrínsecas à vida comunitária. Uma reclamação freqüente das pessoas que não são beneficiários é que a partir do começo do PJJHD “ninguém quer trabalhar, já não se consegue um peão para que ajude na roça (...)”. Algumas pessoas acompanhavam essa reflexão indicando que “as pessoas são preguiçosas e querem todo de graça, agora, que têm essa grana garantida todos os meses, já ninguém quer trabalhar”. Com essas frases algumas pessoas pretendiam colocar sob suspeita a vocação pelo trabalho dos beneficiários do PJJHD.

No que diz respeito à pouca oferta de peões, decidi indagar de vários beneficiários que antigamente realizavam esse tipo de trabalho para seus vizinhos. Explicaram-me que efetivamente a contraprestação demandava-lhes quatro horas de trabalho e o resto da jornada mal alcançava para trabalhar em sua própria parcela. Em conseqüência, muitos careciam de tempo

para trabalhar como peões, enquanto outros simplesmente avaliavam que já não tinham necessidade de fazê-lo.

Em outras ocasiões, a crítica sobre o trabalho dos beneficiários apontava diretamente a suas contraprestações, seja por não cumprir com as quatro horas de trabalho, seja pela qualidade do mesmo. Em se tratando das contraprestações para o benefício dos membros da comunidad, os vizinhos da aldeia ficavam em uma posição ambígua em relação aos beneficiários. Por um lado, os membros da aldeia encontram-se em uma posição de autoridade ante os beneficiários do PJJHD, pois são eles que decidem e avaliam o trabalho que devem realizar. Por outro, em qualidade de vizinhos da comunidad são usuários do produto desse trabalho. Essa posição faz com que algumas pessoas se sintam autorizadas para julgar o desempenho dos beneficiários, às vezes falando como se fossem chefes. Além do mais, a crítica que os vizinhos fazem aos beneficiários evidencia a tentativa de afirmar posições desiguais, seja de papéis (chefe- empregado), seja moral, pois na sua denúncia argumentam que os beneficiáios tentam tirar vantagem pessoal sem oferecer a contraparte ao resto dos vizinhos.

O modo como o PJJHD é executado nas aldeias gera uma contradição com os valores que regem nesse universo social, em especial, o principio de igualdade. Consagra-se uma hierarquia ao atribuírem diferentes papeis entre os membros da aldeia, colocando alguns vizinhos em posições subordinadas perante os outros. Apesar de que essa situação possa contrapor-se ao senso comum, que entendo rege na aldeia, não significa que esse poder diferencial que consagra o PJJHD entre os membros da aldeia não possa ser utilizado pelas pessoas nas disputas cotidianas que surgirem.

Carmina, presidenta de Alcalá, relatou que a única beneficiária da aldeia não trabalhava porque argumentava que tinha uma doença. Logo, com certa ironia acrescentou, “mas, todos os dias vejo ela trabalhar em sua roça”. Durante o relato explicitou o sobrenome da beneficiária, deixando entrever que tinha vínculos de parentesco como uma liderança comunitária e, em conseqüência, os mecanismos de ‘proteção’ que estavam em jogo.

Embora os presidentes das OCAs tenham autoridade para punir os inadimplentes solicitando a baixa do PJJHD à Comissão Municipal, nem sempre agem desse modo. Alguns argumentaram que todos tinham necessidades e era difícil tomar a decisão de privar uma família dessa “ajuda econômica”. Noutras situações, os vizinhos pressionavam o inadimplente para que transferisse seu lugar a outro vizinho, evitando assim a perda de uma vaga no PJJHD. Por outro lado, embora pretendam consagrar uma autoridade para que controle o trabalho dos beneficiários, é difícil pensar que esse trabalho possa ser feito objetivamente, isto é, sem ser enviesado pelas relações pessoais que puderem existir. Em um contexto onde existem intrincadas relações pessoais, um aldeão, longe de ser apenas um beneficiário, é um parente, compadre ou vizinho. Novamente observa-se que em poucas ocasiões as sanções chegam a efetivar-se no âmbito comunitário, por causa dos motivos anteriormente explicitados. Ainda que possam cumprir um papel punitivo no que diz respeito à sanção moral, não implementam sanções econômicas. Quando muito se constituem em uma norma preventiva que pretende dissuadir certas atitudes mais do que puni-las.

Por sua vez, os beneficiários reconheceram a existência desse tipo de críticas, mas replicaram-as. Na maior parte das vezes, manifestaram que seu trabalho não era “valorado”, colocando a disputa no terreno subjetivo da avaliação de como se faz o trabalho. Também não

faltou quem recolocasse os termos da disputa no campo da “inveja”, quer dizer, pessoas que nunca foram beneficiárias do PJJHD descarregavam sua zanga contra os que tiveram sorte.

Embora não fosse registristado nos relatos dos aldeões, tenho a percepção de que o outro ponto de tensão existente é o trabalho que devem realizar os beneficiários e sua posição ante o restante dos vizinhos. Isso foi especialmente significativo na Festa do Padroeiro de uma aldeia. Nos dias prévios à festa, as mulheres beneficiárias do Programa foram as que haviam trabalhado com mais dedicação na organização do evento. No dia do acontecimento, elas cozinhavam e serviam os assistentes e os outros membros da comunidad. Ao voltar à aldeia nos dias posteriores, elas continuavam lavando a louça, arrumando a capela e os outros prédios onde haviam acontecido as atividades relativas à festa. É de salientar que a Festa do Padroeiro é o maior evento de uma comunidad. Nela os membros do grupo recebem, em caráter de anfitriões, os restantes membros que há tempo moram em outras regiões, as pessoas de outras aldeias e, especialmente, os agentes externos. Tradicionalmente, essa unidade materializa-se através da assistência “obrigatória” de todos os membros que residem na aldeia, a fim de trabalharem coletivamente na organização do evento e no atendimento às visitas. No entanto, a partir da implementação do PJJHD parte desse trabalho foi relegado aos beneficiários.

Destarte, entendo que novamente a concreção do princípio de igualdade, efetivado através da participação em igualdade de condições em um evento que é responsabilidade de todos, vê-se distorcida ante a forma como é assimilado um programa social, criado em outro universo social e pensado sob outros valores sociais. Provavelmente essa contradição com os valores comunitários e com as posições assumidas em diferentes eventos da vida comunitária estejam gerando ou potenciando desconformidades entre vizinhos. Na maioria dos casos, essas divergências parecem ser preexistentes, embora nem sempre sejam raciocinadas ou objetivadas pelos protagonistas, nos termos aqui formulados. Contudo, contribuem à exaltação dos atritos existentes na comunidade de vizinhança, favorecendo sua evolução em conflitos que podem acabar formalizando grupos enfrentados.

Aparentemente não são poucas as tentativas dos beneficiários por redefinirem o tipo de contraprestações. Em Grazalema alguns deles, que foram favorecidos pelo Programa de Moradia recebendo os materiais para a construção de sua casa, solicitaram a licença da OCA para considerar o trabalho investido na edificação de suas moradas como contraprestação do PJJHD. Mas a solicitude foi rejeitada. Os vizinhos argumentaram que a contraprestação devia ser um tipo de trabalho comunitário e não que beneficie só uma família. A tensão entre o beneficio individual e o comunitário novamente se explicitou.

É eloqüente o fato de que todos os conflitos relatados nesta seção tenham como denominador comum a tensão entre o interesse da família, ou da comunidade doméstica nos termos de Weber, e o da comunidade vizinha. Em relação à água, parece existir uma certa especulação com o trabalho dos vizinhos para a manutenção dos canais, quer dizer, todos querem um eficiente fornecimento de água, mas não é tão claro a disposição para trabalhar nos canais de uso comunitário. Na assistência às reuniões comunitárias, parece que tem mais influência o que há para receber do que cada pessoa tem para aportar. No PJJHD, a tensão entre os beneficiários e os restantes membros da comunidade parece estar atravessada por quem se beneficia com o produto do trabalho dos beneficiários. Em todos esses atritos, encontram-se indivíduos engajados em disputas que ocorrem no campo da moral, mas que disputam coisas, sejam materiais, sejam simbólicas, que redundam no benefício do interesse dos membros do grupo doméstico e/ou de pertença ou em favor de algum parente, compadre ou vizinho.

Entendo que essas tensões originam-se em uma contradição estrutural da aldeia yaveña. Pelo fato de ser uma comunidade de vizinhança, que por sua vez é constituída por comunidades domésticas diferentes que tentam melhorar a posição social de seus membros, evidencia-se a dificuldade de não ser sempre possível compatibilizar os interesses de umas e das outras. É nesse sentido que ganha força a idéia de Tönnies de que “a comunidade é a união do diferente”, mas esse diferente não pode se distanciar muito, aliás, a comunidade poderia desmanchar-se.

Essas disputas, longe de enfrentar apenas duas pessoas ou grupos domésticos podem evoluir em conflitos que clivem, ora conjunturalmente, ora permanentemente a comunidad, por causa das alianças que as pessoas engajadas no atrito buscam estabelecer com os vizinhos.

Assim, compreende-se que a comunidad yaveña, longe de ser uma totalidade coesa, faz parte de um investimento continuo de energia de seus integrantes para manter unido o que está em continua tensão com possibilidades de fragmentar-se. A comunidad, como é pensada pelos yaveños, corresponde a um ideal de convivência mais do que a uma realidade empírica. Em outras palavras, a comunidad yaveña é um grupo em continua construção, onde os vizinhos investem energia o tempo todo para unir o que as diferenças de interesses das comunidades domésticas tendem a separar.

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