• Nenhum resultado encontrado

A Dimensão Espacial Da Comunidad

No documento Download/Open (páginas 53-55)

A ALDEIA: UMA COMUNIDADE DE FAMÍLIAS

2.1 Os Sentidos Nativos Da Comunidad

2.1.1 A Dimensão Espacial Da Comunidad

Muitos dos moradores da comarca de Yavi nunca viram um mapa com os limites do território da Comisión Municipal de Yavi, pois não existe. Caso existisse um, seria possível que o mapa ainda não estivesse disponível para eles24. Contudo, a carência desse instrumento cartográfico não impede os yaveños construírem nas suas mentes uma idéia aproximada da superfície do distrito, seus limites e as distâncias relativas entre aldeias. Ainda que possam fazer essa delimitação através dos acidentes geográficos que atravessam e delimitam a comarca – montanhas, rios, etc.–, na maioria das vezes recorrem aos elementos internos que a constituem, isto é, as aldeias.

Em reiteradas ocasiões escutei dizer aos yaveños que “a Comissão Municipal de Yavi abrange treze distritos”, “parajes” – vilarejos– ou “comunidades”. Nunca referiram a superfície da Comissão Municipal em termos quantitativos (hectares ou quilômetros quadrados). Em geral, as referências espaciais dentro do território eram as comunidades. Uma pessoa ia de uma para outra ou vinha de tal comunidad. Um evento acontecia ou uma paisagem localizava-se “em tal comunidad”. Assim, a totalidade da superfície da Comissão Municipal de Yavi é pensada a partir das comunidades que a integram ou, em outras palavras, a Comissão é um mosaico de comunidades.

Alguns povoadores manifestaram que no passado “paraje” ou “poblado” eram as denominações mais freqüentes para designar as aldeias. Porém, a partir da segunda metade da década de 1990, a categoria comunidad adquiriu dominância na medida em que os aldeões foram formalizando sua representação através da “organização comunitária aborígine”. Assim, esse fato poderia ser interpretado como um caso de apropriação, ainda que com resignificação, de categorias de classificação impostas pelo Estado Nacional.

Todavia, na primeira vez que visitei Yavi, antes de que se instaurasse a questão da posse comunitária da terra, registrei a utilização da categoria comunidad para referir-se às aldeias25. Isso é explicado por Madrazo (1982) que demonstra que a noção de comunidad foi introduzida na Puna pelos espanhóis no início da colonização no começo do século XVI, para denominar os assentamentos dos nativos, retomando uma categoria já existente na Península Ibérica. Portanto,

24 Nas diferentes visitas à região, tentei conseguir um mapa para abstrair e situar na minha mente as aldeias que iria

visitar, para ter uma idéia aproximada das distâncias entre elas e para apresentar as características cartográficas do território neste texto. Não obstante, a busca foi inútil: nem na prefeitura nem na escola existia um, apenas consegui um esquema desenhado por um ex-comissionado.

25 Em janeiro de 1995, antes de que fosse implementada a reforma da Constituição Nacional, fiz junto a duas colegas

do curso de Agronomia um estágio de vivência em duas aldeias da comarca. Nessa ocasião apropriamos-nos de várias das categorias nativas, dentre elas comunidad era uma das mais usadas para denominar as aldeias.

estaríamos diante de um processo mais complexo no qual ao longo dos séculos a categoria comunidad era introduzida pelo Estado, ora o colonial, ora o republicano, com diferentes fins classificatórios e de ordenamento do território. E paralelamente era apropriada e resignificada a cada momento pelos nativos. Sobre este ponto voltarei no próximo capítulo quando analisar o agir das “organizações indigenistas” e a recolocação da identidade étnica na região.

As aldeias analisadas nesta pesquisa têm um padrão de ocupação do espaço semelhante. Cada uma é atravessada por um regato a partir do qual se constroem canais que fornecem de água para a irrigação das parcelas destinadas à produção agrícola. Em se tratando de uma região montanhosa, de clima seco e frio, a desigual disponibilidade de água nos locais determina a existência de micro-ambientes com diferente capacidade produtiva. Um padrão típico de ocupação do espaço nessas aldeias é o caracterizado por três locais que estão delimitados, segundo seu uso. Perto do regato situa-se a área de “rastrojos” – lavoura. Em cima, no início da ladeira, localizam-se as moradas, muitas disseminadas ao longo de uma estrada. Nesse espaço também se encontram as construções e prédios de uso comunitário como: a capela, o salão comunitário, o campo de jogo, a escola, etc., como se fosse o ‘centro’ do povoado. Por último, mais afastado encontra-se o campo de pastagem, localizado nas montanhas. Como são várias horas de caminhada até lá, é comum que, nas aldeias com maior vocação pecuária, as famílias tenham uma precária casa denominada “puesto” – casebre–, onde reside no verão o membro responsável de levar o rebanho.

Segundo os depoimentos que obtive de alguns moradores do lugar, a superfície correspondente a cada aldeia esteve sempre mais ou menos delimitada e reconhecida pelos moradores do distrito. Em muitos casos estavam demarcadas por “mojones”, pedras ou rochas com algum sinal que delimitavam o fim do território de uma comunidad e o começo da outra. Com freqüência, existiam conflitos de territorialidade entre membros de diferentes aldeias. Nos casos em que não conseguiam resolver sua controvérsia intervinha o “juez rural” – juiz rural. Trata-se de um morador do lugar que tem a delegação de um juiz de cabeceira do distrito judicial para mediar na resolução dos conflitos de terra e de água na jurisdição, com o resguardo da Polícia Federal.

A partir da sanção da nova Constituição Nacional, os membros das diferentes aldeias da Puna iniciaram os trâmites legais para obter o título de propriedade comunal da terra. Esse processo implicou a demarcação dos limites externos e internos de cada aldeia, assim como a realização de um censo para que definissem quem era membro da comunidad26. Em decorrência

desse processo, surgiram em alguns lugares da Puna importantes disputas territoriais entre membros das diferentes aldeias, fato que por sua vez atualizou e fortaleceu o sentido espacial da noção de comunidad. No caso das aldeias estudadas nesta pesquisa, os moradores teriam chegado a um acordo na demarcação dos limites das comunidades na maioria dos casos. Registrei apenas, a partir do relato de um morador de Sanlucar, um litígio entre os membros dessa aldeia e os da vizinha Yavi. Porém, no momento da realização do trabalho de campo, pareceria que esse “desentendimento” não tivesse sido vivenciado como conflituoso pelos moradores de ambas as aldeias, muitos deles com residência em uma e possuindo suas parcelas de lavoura na outra.

26 A demarcação dos limites internos da comunidad remite ao reconhecimento de algumas poucas parcelas cujos

donos têm o título de propriedade. Na tramitação do título da propriedade da terra, essas parcelas ficam fora da posse comunitária e permanecem sob propriedade individual.

No documento Download/Open (páginas 53-55)